quinta-feira, 14 de maio de 2020

Que direito tinha de sentir ciúmes?

" Haverá no mundo  coisa mais sem graça , mais depravada do que desejarmos uma mulher que nunca será nossa? Ao longo  de todas  essas semanas , os pensamentos  que obcecaram Flory  eram quase todos assassinos ou obscenos. É a normal consequência dos ciúmes. Outrora amara Elisabeth espiritualmente, com genuíno sentimento, desejando mais a sua simpatia do que as suas carícias; agora , que a perdera, era atormentado pela baixeza do desejo físico. Nem sequer a idealizava já. Vi-a agora praticamente como ela era - tola, pedante, de coração empedernido - mas isso  não contribuía para atenuar o desejo anelante que tinha dela.  Que diferença faz?  Noites havia , quando as passava insone, na cama que puxara para fora da tenda, na esperança de um pouco de ar fresco, a olhar para as trevas aveludadas , onde por vezes ressoava o latido de um gyi, em que se odiava pelas imagens  que lhe acossavam o espírito.  Era tão vil , aquela inveja sentida contra o homem  que o derrotara  por ser superior  a ele! Porque era inveja  pura e simples - chamar-lhe ciúmes era  ser demasiado brando. Que direito tinha de sentir  ciúmes?  Prendera-se a uma rapariga demasiado jovem e bonita e esta desprezara-o - com toda a razão.  Merecia o desdém  a que fora votado. A decisão era irrevogável; nada conseguiria restituir-lhe a juventude ou  apagar a marca que lhe sulcava o rosto e os dez anos passados em solitários deboches. Nada lhe  restava, a não ser  aguentar, ver o seu rival ganhar pontos e invejá-lo como ... não a alegoria  era demasiado forte.  A inveja é uma coisa horrível. Ao invés de todos os outros  tipos de sofrimento  não tem disfarce , não é sentimento que possa encontrar exaltação na tragédia. É mais do que uma simples dor, é repugnância. "
George Orwell, in " Dias da Birmânia", Moraes Editores, Lisboa, Portugal, Março  de 1983, pp. 260-261

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