terça-feira, 2 de julho de 2019

Maria


«Vi-a pela última vez, oh! há já tanto tempo! estava eu a banhos em Santo Amaro. Porém, desses banhos sujos e pobres nem vale a pena falar. Apetece-me, sim, recompor a minha conversa com a Maria. Não digo que tintim por tintim mas, enfim, recompô-la.
A Maria levava um menino, o seu menino ao colo.
Maria, Maria, quem te viu e quem te vê... pensei, mas sem lho dizer.
Era uma tarde quase morta e os lugares tristes e feios, pesados; não como estes do lado de cá, dobrado São Tiago. Povos miseráveis, do fim do mundo, currais humanos e cerros agrestes, onde os vilões ricos vão caçar no tempo.
Maria!
Admiro-me de a encontrar, mas porquê, se ela daqui é, se estou à vista do seu povo?
Não te esperava, lhe digo.
De menino ao colo, meio dormente, ela sorri-me. Mas com que beiços e com que olhos? Oh! nanja com os seus antigos. Onde irão bem eles e os seus perdidos jeitos?
Que fazes, rapariga? Deixei de te ver...
Não tornei lá, nada não...
Então?
Agora guardo um velho, sabe a senhora, fico de vela a ele, e toda a noite, ergo-o e deito-o por mor de... a senhora bem me entende, como já não tenho que perder...
E o teu menino?
Muito 'costipadinho'! Passa a noite comigo, enrolado nuns farrapos. Eu não me deito.
E o pai dele?
Ó!
A Maria vira a cara, retraída, repetindo-me: ó! ó!
Porém o narizinho curvo da criança, como um biquinho de papagaio, é perfeitamente o do lojista seu pai. Que o repudia, necessariamente. Ele, a mulher e os irmãos e cunhadas de cada um dos lados.
A Maria é de quem na quis e de quem na quer! declarava em baixo duro a senhora Teresinha, sua patroa, P!... De noite recebia o meu na cama, dijem, e de dia, e de dia? quem no sabe, lá por onde ela andava?
E a Maria, ali parada na minha frente, desluzida como a própria hora em que a surpreendo, naquela passagem escura e afogada de uma canadita da serra, pedregosa, húmida, está esperando a minha esmola... Ah! Maria, Maria, quem te viu e quem te vê!
O seu menino triste, muito entrapado, mas com o biquinho de papagaio visível, só me lembra o pai.
Estás marcado, penso. Mas não lhe quero mal, porque lhe havia eu de querer mal? Por mais que te reneguem estás marcado! E o lojista seu pai aparece-me. Pesadão, barrigudo, de coses caídos, de alpergatas desatadas, de olhar baço, sem freguesia, encostado ao balcão sobre um tapete de papéis, trapos e fiapos de lã churra. Pai daquele anjinho pária... desfrutador daquela mulher que foi uma aurora... depressa apagada pelo desprezo de todos e pela fome.
Ele não te dá nada? pergunto-lhe.
Ó! fui-me lá a chorar, pró quê? atiraram-me c'uma  manta velha e más palavras, e que se eu tornasse...
Chamavam a guarda?
É como diz.
Adeus, Maria, adeus.
Que sítios, que pobreza e que aridez! Fragas, mato, rijos giestais... São Tiago à vista, altaneiro, e por trás dele, serra dentro, os grandes maninhos e os baldios despovoados, às corcovas, imensos, onde os rios nascem e uivam os lobos...
Em que buraco se há-de meter o coração de quem tudo isto vê? Um panorama aflitivo e augusto, esmagador, e uma miséria rasteira.
O menino morre e a mãe dele, mirrada, já feia, é uma candeia a apagar-se também.
E estaria escrito, porque tudo assim aconteceu. Foi-se o seu menino, mais um anjinho para o céu, sem que ninguém quase disso desse fé, e após ele a mãe: um alívio para a terra.
Ó serra impiedosa!
A Maria ia à Guarda, uma lonjura, talvez esmolar. De menino sobraçado. E também fazer um pneumotórax. Um pneumotórax!
As cidades, até mesmo as serrenhas, têm os seus luxos e contemplações com os pobres que apanham a tuberculose.» 
Irene Lisboa, «Solidão II»,  Editorial Presença, pp.132-134 

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