segunda-feira, 1 de julho de 2019

Há 29 anos

Revisitámos o Diário de Eugénio Lisboa,  Aperto Libro - Páginas do Diário I, para descobrirmos uma entrada correspondente ao dia 1 de Julho. Encontrámos este interessante verbete , registado há vinte e nove anos.

Páginas de Diário
por Eugénio Lisboa
Londres, 01.07.1990 – Ontem, jantar em casa dos Guerra da Cal. Ela, bem, cheia de energia, apesar do recente problema com a coronária. Ele, sempre lúcido,mas ligeiramente mais murcho. Conta-nos  recordações de Unamuno. Um marxista perguntou-lhe, em certa altura, se ele não pertencia a nenhum partido, se não acreditava em partidos. Don Miguel, resoluto: “Não!” Porquê? “Porque sou inteiro!” Noutra ocasião, a propósito do modernismo, perguntaram-lhe  por que não era modernista. Resposta: “Yo soy eternista!” Régio teria gostado de ouvir isto.
Ernesto conta ainda um encontro que teve, em Princeton, com Einstein, apresentado por Américo de Castro. Einstein quis saber tudo sobre a guerra civil espanhola, com muita minúcia, fazendo muitas perguntas. Quando se falou dos seus (dele, Einstein) trabalhos, da sua busca teimosa de uma equação simples e unificadora do universo, ele respondeu com uma espécie de teimosia cansada: “That is a continuous struggle. That is perhaps just an idea of man… or an idea of God.”
Num jantar em casa de Einstein, a que Ernesto, à última hora, não pôde ir, por razões de doença na família, esteve no entanto presente Américo de Castro, que conta a seguinte história. O jantar começou com uma sopa eslava. No final da sopa, Einstein levantou-se da mesa bruscamente e o jantar prosseguiu até ao fim, sem ele. Lá para o final da noite, o casal Castro despediu-se da Sra. Einstein, visto que o marido continuava ausente. Um ou dois dias depois, ela telefonou, pedindo desculpas pelo acontecido e… explicando. Depois da saída dos Castros, na noite do jantar, foi à procura do marido e não o encontrou em lado nenhum. Alarmada, foi à casa de banho. Entreabriu a porta,mas Einstein disse-lhe que se fosse embora: estava ocupado e já saía assim que tivesse acabado o que estava a fazer. Passado um bocado, ela voltou: ele achava-se  sentado no chão, debaixo do lavatório, enchendo os azulejos de cálculos. O génio é isto: uma indómita obsessão. E, às vezes, ao contrário do que sugeria Buffon, é também uma grande impaciência…
Na conversa que anteriormente referi, entre Einstein e Guerra da Cal (então um jovem), o grande físico, ao saber que da Cal ensinava literatura, observou: “Que felicidade para si: trabalha só com intuições… Nós, os cientistas, trabalhamos com a razão…” O que, estrictamente, até nem correspondia à verdade. O próprio Einstein de certo modo desbaratou os últimos trinta anos da sua vida, tentando forçar a sua razão a tentar provar a beleza de uma intuição… provavelmente sem fundamento. Por exemplo, quando dizia que Deus não jogava aos dados com o universo, propunha apenas uma visão por assim dizer “artística” e intuitiva do cosmos, uma visão que nada tinha a ver com a razão. Não suportava  ou não concebia um universo governado por leis de probabilidade – mas a razão não lhe fornecia quaisquer provas para as suas convicções. Seja como for, a parte que se refere à literatura é verdadeira. A melhor crítica é, afinal, a crítica intuitiva ou impressionista. Gaspar Simões morreu vilipendiado mas tudo leva a crer que se está a voltar ao que ele defendia…
Segundo Ernesto, um amigo espanhol de Hemingway, Luis Quintanilla, era de opinião que todo o machismo ostensivo do grande ficcionista era um jogo de aparato e autodefesa. Hemingway tinha, segundo Quintanilla, um pénis de reduzida dimensão, que fazia sempre questão de ocultar. Não se desnudava nunca diante de amigos, tendo sempre uma preocupação meticulosa com esconder o pénis. O complexo de aí resultante era sobrecompensado pelo seu comportamento de macho agressivo: box, caça, guerra… O curioso é que Hemingway, no seu livro, A Moveable Feast, atribui esse mesmo terror ao “pénis curto” ao seu amigo e rival Scott Fitzgerald! Segundo alguns amigos, de resto, trata-se de pura invenção de Hemingway, que transferia para o amigo os seus próprios terrores. Pura “transferência”…
 (Eu disse lealmente ao Ernesto que, depois de falar com ele, vinha para casa e tomava notas da conversa: ele tem tanta coisa interessante a contar, que seria uma pena perder-se. Ele sorriu, lisonjeado e, suponho, contente.)
Denis Brian (in: The Faces of Hemingway): “Hemingway expressed his attitude to the truth in an unpublishjed manuscript in the Kennedy Library. He maintained that it was not unnatural for good writers to be liars, as lying or inventig is part of their trade, and that they even lie to themselves. He implied that he often lied unconsciously, and afterwards when he recalled having lied, suffered deep remorse. He found some consolation in realizing that all other writers are liars, too.” Hemingway ignorava, obviamente, o dito de Homero: “Os poetas mentem muito.”
Jeffrey Meyers (autor de uma conhecida e louvada biografia de Hemingway): “The level of incompetence of reviewing in America is unbelievable.” Havia de ver o que se passa em Portugal!» 
Eugénio Lisboa, in " Aperto Libro, Páginas  de Diário I - 1977-1990", Opera Omnia Editora, Novembro de 2018, pp.246-249 

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