sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Seremos puro amor do há

“ (…) Não. O que procuro é ver onde a continuidade do há se fractura, onde muda de registo e de sinais, e se há possibilidade de o dizer sem esperança, nem impostura. «Sem esperança», quer dizer sem ilusão garantida. Quando nos apercebemos que o há é há, não somos só parte dele. Acrescentamos-lhe um ver criador_____criamos, modificando-lhe a paisagem. Nenhum traço se perde, mesmo que tenda a apagar-se. O que hoje me cabe é ver sinais, e projectá-los com toda a força de impacto de que dispuser. Sobrepondo-os e entendendo as consonâncias que desenvolvem entre si. Deixar-me orientar pelo sentido melódico que lhes ouço e aceitar a significação ou senso que resulta, se resultar. Recomeçar o ver todos os dias, tentar que a energia que me gasta me dê mais energia, procurá-la nos filamentos mais ténues do real que tenho à mão, não recear servir-me do estranho que o meu corpo sente e pensa.
Esse estranho é somente um efeito da linguagem do cinismo positivista em que fui criada. Ver é fazer e desfazer. É criar linguagem. E criar-me. Tornar-me um «puzzle» onde um dia se desenha um labirinto, outro dia um morro elevado da paisagem, outro dia um quarto escuro fracamente iluminado pelos ruídos exteriores, outro dia um corredor de amor sereno que atravessa a rua onde se ouvem passos de cavalos por entre melodias e batidas de rock. Não perder o fio, sem ter a obsessão ou a angústia de o perder. E, na hora em que o há se fractura, deixar-me ir, ver onde sou levada, retomar a corrente, aceitar mudar de forma e, a partir dela, reaprender a ver. Nessa hora, dar a mão e sentir as figuras. Horas há em que seremos pura vontade______puro amor do há.”
Maria Gabriela Llansol, in "Inquérito às Quatro Confidências - Diário III", Relógio D´Água Editores, Novembro de 1996

1 comentário:

  1. A vida de Maria Gabriela Llansol, e sobretudo a sua profunda maneira de ser e de se apresentar - que muito apreciámos e respeitámos - daria para vários livros biográficos, estamos em crer. Era uma mulher muito sensível e em tudo discreta. Discretíssima!... Para além de poeta, de mulher que meditava, pensava, e emitia com uma humildade singular as suas opiniões, era alguém dotada do um espírito muito especial, e - todos concordavam - conversar com ela, um encanto!... Igualmente com o seu marido, muito dado ao desenho, à ilustração. O convívio com ela era agradável, mas a conversação diluia-se pausada, quase ciciante... Pareceu-me sempre estar pedindo continuamente licença à vida, sempre que alguém, algum de nós, lhe solicitava uma opinião. Maria Gabriela Llansol, uma bondade, um valor!... Infelizmente, já nos deixou. O seu companheiro, igualmente... Mulheres assim, mulheres de escrita, mulheres de talento literário, amando a filosofia, com este modo de estar tão subtil, carinhoso, benevolente, sadio, vão rareando... Uma escolha feliz, tê-la inserido em "Livres Pensantes"! Ela merece-o! E mereceria muito, muito mais!... Parece-nos que Gabriela ainda espera por nós, por todos os seus amigos e admiradores, para saborearmos o seu chá de um modo devagar, pausadamente, envolvidos no silêncio, ouvindo a sua voz baixa recitar textos, que nos ofereciam reflexão e adoração. Não aprecio dizer "adeus"! Porém, à Gabriela, digo-lho: "Adeus! Até breve!..." - V. P.

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