quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Um luminoso sinal

Trigésima sexta carta a M.M.

Eu amo. Eu apenas sei dizer que amo
como se o meu amor não tivesse objecto
e no entanto ele é um barco onde vou com todos vós
sulcando o deserto que resplandece e que nos ofusca
mas é aí que partilhamos o pão e o vinho
e a água fresca que os cactos absorvem
e vemos o horizonte nu sobre a areia infindável.
Eu amo e sei a quem amo mas ao mesmo tempo o meu amor é vago
e tão indefinido como uma nuvem sem rumo
perdida sobre uma ilha deserta onde as lágrimas de um náufrago
se transformaram num pássaro negro ferozmente solitário.
Sim, eu sei a quem amo, a todos vós e é por isso que não me sinto perdido
embora o esteja porque espero de nada esperar,
porque estou à beira de ser não sei sendo o quê, ou maravilha ou monstro,
iluminado ou cego ou uma coisa e outra, ou tudo ou nada,
e só o meu amor é um sim , um luminoso sinal
na nulidade de ser e de não ser quem sou.
António Ramos Rosa, in " Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira" Ed. Livros do Mundo,2ª edição, Maio 2011

No Prefácio destas " Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira" Varela Pires escreve : "Dois poetas - António Ramos Rosa, já hoje considerado o mais premiado dos poetas portugueses vivos e Manuel Madeira, outra referência marcante da poesia moderna portuguesa - tornam públicas 134 cartas , das muitas que trocaram entre si, ao longo da vida.
São textos poéticos de reflexão, de auscultação, de intimidade, nascidos de um conhecimento mútuo destes dois poetas. São epístolas iluminadas por uma confidencialidade deliberada, expressão do estranho modo de conceber e partilhar, assente na poeira dos dias e no anseio da luz contemporânea da suprema arte de revelar os seres e as coisas.(...) Este discurso poético a duas mãos - as cartas trocadas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira - é algo de singular no nosso tempo, espelho de fascínio e complexidade, colóquio pensante, osmose quase perfeita entre realidade e palavra, assunção do verso como expressão intimista (...) um monumento ímpar na Poesia Epistolar portuguesa do nosso tempo." Varela Pires, in Prefácio das "Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira" Ed. Livros do Mundo, 2ª edição, Maio 2011


Trigésima sexta carta a A.R.R.

Será o amor apenas um sentimento platónico
de que se absorve e transmite o perfume e o sabor
envoltos em palavras que perduram
enquanto os aromas e os sabores persistem
nas formas musicais das flores e dos frutos
e que depois de secos os frutos e perdidos os sons e as cores
se torna impalpável como as sensações
presentes embora nas dobras da memória
e se escoa lentamente como o fumo e a água?
O amor procura a personificação
nasce de uma ausência e do desejo de encontrar
uma presença viva que preencha o vazio
e fertilize o deserto em suculentos sulcos
para que a harmonia floresça e frutifique e cante
em vez da solidão de uma voz exausta
sobre si dobrada como sobre um poço.
Manuel Madeira, in " Cartas Poéticas entre António Ramos Rosa e Manuel Madeira", Ed. Livros do Mundo, 2ª edição, Maio 2011

1 comentário:

  1. Dizia o Eduardo Prado Coelho que "toda a poesia é feita para secar o excesso de emoção"... em "A Poesia Ensina a Cair", removendo este título de um verso da... (Quem?!... Vejam se se lembram dela!...) da Luíza Neto Jorge, mulher-poeta nascida no Algarve, mas vivendo quase toda a sua vida em Lisboa. Quem se recorda dela nos primeiros anos da sua juventude em Faro?!... Pois, quanto "excesso de emoção foi secado" por estes dois poetas, ramos Rosa e Manuel Madeira?!... Hoje, "Livres Pensantes" quis dedicar a sua Página a dois grandes poetas, ambos nascidos no Algarve, Manuel Madeira, em São Bartolomeu de Messines, e António Ramos Rosa, em Faro. Ramos Rosa dispensa quaisquer palavras, tantos são as teses de Mestrado e de Doutoramento que se têm desenvolvido sobre a sua Poesia, e tal a sua importância na Poesia portuguesa Contemporânea. Gigante entre outros gigantes da palavra poética. Manuel Madeira, da mesma idade e companheiro de tantas "batalhas" poéticas e políticas com Ramos Rosa tem-se assumido como um outro valor na nossa novel Poesia. Os dois poetas correspondem-se de um modo tão singular, que diríamos com toda a certeza serem caso único, em Portugal, nos nossos dias. As cartas traduzem afinidades raras na forma poética, especialmente a poesia Rosiana. Recomendo, pois, a sua leitura a quem não teve ainda a oportunidade de conhecer as "Cartas Poéticas". O Eduardo P. Coelho e a Luísa Neto Jorge, mais novos, já a lei da morte os foi levando. Aos poetas Ramos Rosa e Manuel Madeira, a nossa saudação, pois à beira dos 90 anos, ainda nos fazem companhia e vão publicando o melhor da sua Poesia.

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