que aportaram em países distantes
e conheceram homens de muitas raças...”
Manoel de Andrade, Canção para os homens sem face, 1968
in “ Poemas para a Liberdade”
No final dos anos sessenta, quando o Brasil e a América Latina viviam um obscurantismo democrático dominado por ditaduras infames, Manoel de Andrade foi obrigado a abandonar o seu país por motivos políticos.
“ O Bardo Errante ” é o retrato dessa época onde o poeta e memorialista de Curitiba vai relatando as vivências que o marcaram. Conforme já publicámos, Manoel de Andrade foi, em 1968, à descoberta do Nordeste brasileiro que não conhecia. O enorme mapa brasileiro composto por uma pródiga diversidade configurava uma difícil percepção da realidade física e humana de todo o seu território . "Nesse amplo contexto, o enredo político de minha história pessoal em 68 começa no primeiro dia de março. Cada vez mais ansioso para entender a dimensão sócio-económica e política brasileira e amadurecido ideologicamente pela leitura dos grandes teóricos de esquerda, contudo ignorando muito da nossa realidade social, decidi, no início daquele ano, conhecer a região nordeste para complementar minha educação política " recorda Manoel de Andrade em " O Bardo Errante".
A riqueza descritiva e a autenticidade da paisagem humana que nos são apresentadas nesta obra ainda em laboração, convocam-nos para publicar um novo excerto.
“ O Bardo Errante ” é o retrato dessa época onde o poeta e memorialista de Curitiba vai relatando as vivências que o marcaram. Conforme já publicámos, Manoel de Andrade foi, em 1968, à descoberta do Nordeste brasileiro que não conhecia. O enorme mapa brasileiro composto por uma pródiga diversidade configurava uma difícil percepção da realidade física e humana de todo o seu território . "Nesse amplo contexto, o enredo político de minha história pessoal em 68 começa no primeiro dia de março. Cada vez mais ansioso para entender a dimensão sócio-económica e política brasileira e amadurecido ideologicamente pela leitura dos grandes teóricos de esquerda, contudo ignorando muito da nossa realidade social, decidi, no início daquele ano, conhecer a região nordeste para complementar minha educação política " recorda Manoel de Andrade em " O Bardo Errante".
A riqueza descritiva e a autenticidade da paisagem humana que nos são apresentadas nesta obra ainda em laboração, convocam-nos para publicar um novo excerto.
"Quando tomei o rumo do nordeste, conhecia muito pouco do meu país e do meu povo. Foi uma inesquecível aventura de trinta dias, desde Curitiba até São Luís do Maranhão, pelo litoral e a volta pelo sertão, num percurso feito num fusca cobrindo catorze estados brasileiros que totalizou, com o regresso, quinze mil quilómetros.
Para um brasileiro do sul, o nordeste era, quarenta anos atrás, um país à parte. Outro clima, outra vegetação, outro povo, outra maneira de expressar-se musicalmente, poeticamente, religiosamente. Outra maneira de ver e de sentir a vida, um sentimento trágico e telúrico do seu mundo, vivenciado num cotidiano de abandono e, paradoxalmente, de esperança. (...) De todas as aventuras que passei, acontecimentos insólitos que presenciei, pessoas excepcionais que conheci e dos tantos fatos inesquecíveis, trago ainda, nas paisagens da memória, a expressão grata e audaciosa de dois retratos humanos: o jangadeiro do litoral e o vaqueiro do sertão.
Era meu primeiro dia em Fortaleza. O sol baixava avermelhado e a ventarola do carro me soprava o ar acariciador da brisa marítima. Passavam das seis da tarde quando cheguei à praia de Iracema, imortalizada pelo romance do escritor cearense José de Alencar. O mar quase calmo, de uma escura cor alaranjada, refletia as tonalidades metálicas do horizonte onde a luminosidade agonizava nos esplendores do crepúsculo. Todo o ambiente estava carregado dessa atmosfera aromática e refrescante que baixa no entardecer dos trópicos. Nas mesinhas dos bares as pessoas chegando e eu estacionando o carro para buscar o meu lugar. (...) Ali estava Iracema, com sua intimidade de praia pequena, sua areia finíssima e branca, fazendo justiça à fama que tinha pela sua beleza. Havia muitas jangadas na areia e algumas chegando, ao longe. Acheguei-me a um grupo de jangadeiros que conversavam em torno de um varal de redes onde alguns deles consertavam os furos das malhas.
– No Rio Grande do Norte vi algumas jangadas, mas eram bem menores que estas, disse ao homem fornido, de uns cinquenta anos, com um aspecto digno e comunicativo, estampado num rosto de bronze marcado por profundas rugas que corriam bem vincadas entre os pômulos e a boca.
– É que o Ceará é a terra dos jangadeiros --- exclamou ele sentando-se na borda de uma daquelas frágeis balsas de cortiça. Voltou a olhar-me, perguntando:
– De onde vem?
– Do Paraná – respondi.
– E que o traz tão longe? Não parece turista. – Comentou certamente vendo minha imagem empoeirada e em desalinho.
– Conhecer um pouco da nossa terra e especialmente o nordeste..., ouviu fazendo um gesto de aprovação com a cabeça. Aproveitei o momento de silêncio e perguntei- lhe:
– E pescam muito longe?
– Depende..., as jangadas pequenas saem de manhã e voltam à tardinha. Pescam entre dez e vinte milhas. Nós pescamos em alto mar, entre cinquenta e sessenta milhas da costa. Saímos num dia e voltamos no outro.
– E se lá no oceano vocês pegam uma tormenta?
– Já enfrentámos tantas, e muitas jangadas nunca voltaram. O mar tem suas manhas, mas nós crescemos em cima de uma jangada e se não pescamos, não temos como dar de comer aos nossos filhos.

Quantas coisas práticas, estranhas e lindas ouvi naquelas três horas de conversa sobre o mar e os jangadeiros. O jangadeiro é filho e neto de jangadeiro e essa descendência dificilmente trocará o mar pela terra. As jangadas menores medem três metros por oitenta centímetros e as maiores chegam a ter nove metros de comprimento por dois de largura. Manoel me disse que uma jangada pode emborcar, mas não submerge nunca, e as grandes jangadas podem suportar o peso de três a quatro mil peixes. Quando o sol nasce já navegam em alto mar. Às quatro horas da manhã já estão “botando pro mar” e no fim da tarde ou no dia seguinte “dão de vela” para a terra. Contaram-me que lá fora não se conversa, não se canta ou assobia. Qualquer som pode afugentar os peixes. O único que pode falar ou bramir sua cólera é o mar. Ouvir seu monólogo, sua voz de barítono, sentir seu balanço, sua quietude, sua dimensão horizontal, suas águas calmas beijarem carinhosamente seus pés, essa é a linguagem que fala à sua alma. Além da voz das águas, só o silêncio.
No sul diz-se que são supersticiosos, mas essa não foi a minha impressão.A sua pobreza e as arriscadas condições de trabalho fizeram dele um homem sem medo e sem outra crença que não seja a esperança de voltar com o que necessita para sobreviver. Manoel me contou histórias de grandes jangadeiros que eram chamados de mestres. Os relatos quase lendários contam de mestres que viram navios-fantasma atravessando por cima das jangadas e de estranhas canções que foram ouvidas em alto mar.
Para o jangadeiro cada viagem é uma aventura que se renova.A sua vida é uma batalha diária contra o mar e contra o vento. Alguns não regressam nunca mais, contudo o mar será sempre a sua vocação irresistível e a fatalidade faz parte da sua opção pelo mar. Amará o mar por toda a sua vida e sua alma está vinculada a essa singular fidelidade. Os nordestinos do sertão emigram para as grandes cidades da região e para o sul do país, mas os pescadores jamais deixam o litoral. Simples, anônimo, solitário e destemido, o jangadeiro é um titã. É o gigante da costa nordestina e poucos navegantes em todo o mundo poderão igualá-lo em ousadia e destreza.

Manoel de Andrade, in “ O Bardo Errante”, Livro de Memórias em laboração , Brasil (Curitiba).
AMIGO MANOEL, TIVE VÁRIAS VEZES A OPORTUNIDADE DE VISITAR O NORDESTE BRASILEIRO, CONVIVER COM OS JANGADEIROS, OUVIR SUAS HISTÓRIAS, MAS VOCE AS APRESENTOU AQUI COM TALENTO E MAESTRIA. PARABENS. ABRAÇOS DO AMIGO OSCAR ALVES
ResponderEliminarEis uma escrita recriada num Nordeste brasileiro quente, soalheiro e seco, escrita cheia, inundada de um realismo predominante, forte, vivente, esculpido na aridez da terra, focando a jornada quotidiana dos jangadeiros, quase com uma precisão de pontaria. Eis uma descrição atenta, observadora, fiel, centrada no sentimento e no diálogo, uma prosa firme, pictórica, que dá gosto a gente envolver-se nela, sonhar no andamento da sua leitura... Uma escrita de mérito, um homem do sul, de Curitiba, em terras do Nordeste, um autor - Manoel de Andrade - a relembrar mais vezes. - V. P.
ResponderEliminarMeu amigo, você continua sendo o 3M, contra a sua utópica vontade, que desgosta das multinacionais.... Manoel Menino Marinheiro. Sua descrição pintoresca da paisagem cearense revelou-me os olhinhos curiosos e maravilhados do segundo M, que passeava pelas praias de Santa Catarina para ver a corrida das tainhas. Invejei-o pelo passeio de jangada, que é a expressão mais rústica da marinhagem, troncos amarrados, vela e o remo do mestre a marcar seu rumo. Ainda não experimentei essa flutuação sobre as ondas, que deve ser deliciosa. Você, seu xará e a poesia que você sempre carrega no peito lembram os três entes referidos por Alencar em “Iracema”: “Onde vai a afoita jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terral a grande vela? Onde vai como branca Alcione buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano? Três entes respiram sobre o frágil lenho que vai singrando veloce, mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano; uma criança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem”.
ResponderEliminarCleto de Assis
Linda, romantica e emocionante a descrição sobre os jangadeiros. Um retrato fiel das nossas tradições.
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