terça-feira, 2 de setembro de 2025

Morreu Luís Veríssimo, cronista maior

Lia-o há muito. Deliciava-me  com as suas crónicas . Era uma voz que vinha de longe e estava aqui tão perto. Nunca o associei ao pai, Erico Veríssimo, que li muito na minha juventude. O mérito deste escritor nada tinha a ver com herança genética ou antes pelo facto de ter tido um pai que foi e é um  dos grandes nomes  da Literatura Brasileira.
Luís Fernando Verissimo construiu uma carreira literária distinta e de grande sucesso, não só como cronista, mas como um grande escritor que soube expandir-se, com mestria, pelo conto, poesia , romance. De acordo com o Diário de Pernambuco, publicou mais de 70 livros, ao longo de mais de 60 anos que somam 5,6 milhões de cópias vendidas, e tornou-se um dos cronistas mais lidos do país, com colunas publicadas em jornais como “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e “Zero Hora. Desenvolveu, com inequívoco talento,  colectâneas de crónicas, como a célebre série “Comédias da Vida Privada”, que foi adaptada para a televisão, com grande sucesso nos anos 90.
Com textos marcados por um  humor refinado, também é o criador de personagens célebres  como  o Analista de Bagé, a Velhinha de Taubaté e Ed Mort, detective pobretão e atrapalhado, que foi adaptado para o cinema na década de 1990.
Na imprensa, começou justamente no jornal gaúcho, onde foi revisor em 1966, anos antes de lançar o primeiro livro, “O Popular”, em 1973.
Morreu neste sábado , 30 de Agosto de 2025, aos 88 anos. Nascera no dia 26 de Setembro de 1936, em Porto Alegre e estava internado na UTI de um hospital da mesma cidade natal, Porto Alegre,  com princípio de pneumonia.
Para recordar a sua bela prosa e em jeito de homenagem, publicamos  uma pequena crónica e estas dez inspiradas frases, entre tantas que nos deixou:

Vou morrer sem realizar o meu grande sonho: não morrer nunca.

Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas.

Conhece-te a ti mesmo, mas não fique íntimo.

A vida é a melhor coisa que eu conheço para passar o tempo.

Eu não sei para onde caminha a humanidade. Mas, quando souber, vou para o outro lado.

Meu medo é que tenha outra vida após a morte, mas que seja só para debater esta.

O mundo não é ruim, só está mal frequentado.

Escrever não me dá prazer, gosto mesmo é de soprar saxofone.

A biblioteca é o lugar onde começamos a nos conhecer.

Não há nada que um homem possa fazer no espaço que uma máquina não possa fazer melhor, a não ser morrer.

Sozinhos
por Luís Fernando Veríssimo
"Esta ideia para um conto de terror é tão terrível que, logo depois de tê-la, me arrependi. Mas já estava tida, não adiantava mais. Você, leitor, no entanto, tem uma escolha. Pode parar aqui, e se poupar, ou ler até o fim e provavelmente nunca mais dormir. Vejo que decidiu continuar. Muito bem, vamos em frente. Talvez, posta no papel, a ideia perca um pouco do seu poder de susto. Mas não posso garantir nada. É assim:
Um casal de velhos mora sozinho numa casa. Já criaram os filhos, os netos já estão grandes, só lhes resta implicar um com o outro. Retomam com novo fervor uma discussão antiga. Ela diz que ele ronca quando dorme, ele diz que é mentira.
– Ronca.
– Não ronco.
– Ele diz que não ronca – comenta ela, impaciente, como se falasse com uma terceira pessoa.
Mas não existe outra pessoa na casa. Os filhos raramente visitam. Os netos, nunca. A empregada vem de manhã, faz o almoço, deixa o jantar e sai cedo. Ficam os dois sozinhos.
– Eu devia gravar os seus roncos, pra você se convencer – diz ela. E em seguida tem a ideia infeliz. – É o que eu vou fazer! Esta noite, quando você dormir, vou ligar o gravador e gravar os seus roncos.
– Humrfm – diz o velho.
Você, leitor, já deve estar sentindo o que vai acontecer. Pare de ler, leitor. Eu não posso parar de escrever. Às ideias não podem ser desperdiçadas, mesmo que nos custem amigos, a vida ou o sono. Imagine se Shakespeare se  tivesse  horrorizado com as suas próprias ideias e deixado de escrevê-las, por puro comedimento. Não que eu queira me comparar a Shakespeare. Shakespeare era bem mais magro. Tenho que exercer este ofício, esta danação. Você, no entanto, não é obrigado a acompanhar-me, leitor. Vá passear, vá tomar um sol. Uma das maneiras de controlar a demência solta no mundo é deixar os escritores falando sozinhos, exercendo sozinhos a sua profissão malsã, o seu vício solitário. Você ainda está lendo. Você é pior do que eu, leitor. Você tinha escolha.
Sozinhos. Os velhos sozinhos na casa. Os dois vão para a cama. Quando o velho dorme, a velha liga o gravador. Mas em poucos minutos a velha também dorme. O gravador fica ligado, gravando. Pouco depois a fita acaba. Na manhã seguinte, certa do seu triunfo, a velha roda a fita. Ouvem-se alguns minutos de silêncio. Depois, alguém roncando.
– Rarrá! – diz a velha, feliz.
Pouco depois ouve-se o ronco de outra pessoa, a velha também ronca!
– Rarrá! – diz o velho, vingativo.
E em seguida, por cima do contraponto de roncos, ouve-se um sussurro. Uma voz sussurrando, leitor. Uma voz indefinida. Pode ser de homem, de mulher ou de criança. A princípio – por causa dos roncos – não se distingue o que ela diz. Mas aos poucos as palavras vão ficando claras. São duas vozes.
É um diálogo sussurrado. “Estão prontos?”
“Não, acho que ainda não…” “Então vamos voltar amanhã…”

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