sábado, 13 de setembro de 2025

Celebrar Natália Correia no seu 102º aniversário

Filme sobre Natália Correia, “A Mulher que Morreu de Pé”, estreia hoje nos cinemas
"Um ensaio visual sobre Natália Correia, intitulado “A Mulher que Morreu de Pé”, realizado por Rosa Coutinho Cabral, estreia-se hoje nos cinemas portugueses, na mesma semana em que a escritora celebraria 102 anos.
Mais do que um documentário, este filme é um ensaio poético e ficcionado, que convoca atores, amigos e testemunhos para revisitar Natália Correia (1923-1993), figura incontornável da liberdade de pensamento e criação em Portugal, antes e depois do 25 de Abril, segundo os produtores.
Trata-se de uma “viagem pelas múltiplas facetas de Natália Correia”, de poeta a cronista, passando por dramaturga, editora, feminista, política e provocadora, construída a partir do arquivo da autora: fotografias, imprensa, crónicas, teatro, obra ensaística e poética.
Neste filme, Rosa Coutinho procurou não apenas reconstruir uma memória, mas reencontrar uma mulher movida pela liberdade, profundamente ligada à sua “açorianidade” e a uma ideia radical de poesia como gesto político.
Entre ‘castings’ de atores, materiais de arquivo, poemas e testemunhos, “A Mulher que Morreu de Pé” tenta não encerrar Natália Correia numa narrativa fixa, e conta com um elenco composto por nomes como Lídia Franco, Soraia Chaves, Joana Seixas e João Cabral.
Este documentário ficcionado, apresentando como um “casting poético”, teve estreia na última edição do Olhares do Mediterrâneo e desde então tem sido exibido em vários festivais, como o Porto Femme 2025, no qual venceu o prémio de Melhor Documentário da Competição Nacional.
Nascida nos Açores em 13 de setembro de 1923, Natália de Oliveira Correia foi uma escritora e poeta portuguesa, antifascista, movida pela liberdade contra qualquer forma de opressão. Deputada à Assembleia da República, interveio politicamente ao nível da cultura e do património, na defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres. Morreu no dia 16 de março de 1993." Lusa

Violência e Paixão
por Fernando Pinto do Amaral 
"Quando se percorre a poesia escrita por mulheres ao longo do século XX português, o nome de Natália Correia continua a surgir como um dos que causaram uma repercussão mais duradoura, quer pela sua personalidade forte e polémica, quer pelo alcance da sua obra literária, na qual sempre se manifestou uma vocação poderosamente dionisíaca e por isso excessiva, capaz de apreender magicamente a realidade e de a transfigurar mediante uma rica imaginação metafórica, sobretudo a partir de Dimensão Encontrada (1957), já que os seus primeiros livros (Rio de Nuvens, de 1947, e Poemas, de 1955) exprimiam ainda uma atitude lírica mais tradicional.
É antiga a questão de saber até que ponto Natália Correia poderá ou não considerar-se uma escritora surrealista, embora nunca tenha pertencido a qualquer movimento com esse nome: definida algures por Claude Roy como «la violence surréaliste faite femme», a própria Autora terá admitido alguma proximidade com a visão surrealista do mundo, essencialmente no que toca a uma «identificação entre a poesia e a magia», na medida em que ambas procuram o acesso a uma alquimia libertadora. Trata-se, no fundo, de uma radical vontade criadora, de um desejo de libertar a linguagem de todos os constrangimentos e de dar livre curso à imaginação, como podemos sentir num texto que nos fala de uma ressurreição apta a transformar a morte em vida e a tristeza em alegria: «A harpa do vento / e os meus dedos de ventania / compuseram uma canção / da mais fantástica alegria. // (...) // É uma onda de magia / onde se enrolam os mortos / erguidos da terra fria / dum rosto que lhes pintou / a nossa melancolia.»
Foi sob o efeito do irresistível impulso dessa «onda de magia» que se construiu o essencial da escrita de Natália, em que um dos traços mais flagrantes consiste numa posição (sempre reafirmada) de rebeldia diante das instituições e dos poderes estabelecidos ou de quaisquer regras impostas pela força. Até certo ponto, é como um sinal dessa rebeldia que se compreendem as incursões da Autora no campo da poesia satírica e humorística, dirigida contra figuras ou acontecimentos da esfera política, como sucede na sequência das «Cantigas de Risadilha» — composta por poemas que ridicularizam episódios da vida parlamentar que Natália acompanhou enquanto foi deputada —, assim como em toda a Epístola aos Iamitas (1976), cujos sonetos constituem reflexões ora entusiásticas, ora sobretudo corrosivas, a respeito do Portugal pós-25 de Abril e disso a que na altura se chamou o P.R.E.C. (Processo Revolucionário Em Curso), perante o qual se manifesta por vezes uma dolorosa desilusão: «E veio Abril: cravos camonianos / aparelharam da liberdade as barcas. / Do verde pinho as flores foram-me enganos, / as tecelãs do sonho eram as parcas. // Da podridão variam os estados: / magicamente os nomes são mudados; / intacto o pasto vil das varejeiras.»
A mesma faceta surge igualmente em certos poemas isolados, como a célebre «Queixa das Almas Jovens Censuradas», fazendo eco de um profundo grito de revolta que preza, acima de tudo, a liberdade do poeta contra todas as formas de sujeição. E é também isso a estar em jogo num outro texto muito conhecido («A Defesa do Poeta»), aliás escrito com a intenção de ser lido no Tribunal Plenário que no tempo da ditadura acusou Natália Correia: «Senhores juízes sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. // (...) // Sou (...) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / (...) // Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever. / Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»
Lido este excerto, convirá atender a dois aspectos: por um lado, mesmo levando em conta o intuito profundamente afirmativo do texto (que desenvolve a vigorosa declaração: «sou um poeta»), o lugar de quem escreve poesia surge relacionado com uma excepcionalidade inquietante ou perturbadora, já que se identifica com um «defeito» ou uma «avaria cantante / na maquineta dos felizes», que corresponderiam à cinzenta maioria; por outro lado (e refiro-me agora aos dois últimos versos), acentua-se a dimensão gustativa, sensorial ou carnal da poesia, inscrevendo-se num entendimento global do mundo em que «o espírito é tão real como uma árvore», pressupondo uma integração harmoniosa na natureza. Ficamos, portanto, dentro de uma unidade fundamental entre todas as coisas humanas e cósmicas, naturais e divinas: «Vem das estrelas o sangue que nos guia / E na amorosa perfeição da carne / Está toda a eternidade resumida.»
Perante versos como estes, pode dizer-se sem grande exagero que Natália Correia nos deu, do princípio ao fim da sua obra, uma visão religiosa da existência, alicerçada não em qualquer adoração de um Deus ou num rito eclesiástico específico, mas numa espécie de comunhão pagã entre o eu e tudo o que o rodeia, religando-se a um universo do qual pretende auscultar os sinais, como se estivesse diante de um segredo que só a alguns é permitido desvendar e que a poesia aguarda, como se esperasse «o romper da manhã na noite mística». De facto, na escrita de Natália o conhecimento quase nunca se produz pela via intelectual e corresponde, acima de tudo, ao amor: fiel à tradição lírica portuguesa e à sua predilecção por temas amorosos, a Autora convoca sentimentos simultaneamente carnais e espirituais, porque neste caso é a partir dos sentidos que se intui a hipótese (ou a certeza?) de um sentido que os excede — veja-se o início do poema «Pórtico»: «Corpo, alma, razão, já os cantei, / estreme, sem me isentar em pseudónimos. / Antífrases de mim as assinei. / Contrários indaguei: eram sinónimos. // O Espírito agora cantarei. / Corpo, alma, razão lhe são compósitos.»
Também enquadrado no mesmo propósito de união e ampla comunhão universais está um politeísmo estrutural que leva a poesia desta «feiticeira cotovia» a celebrar a beleza do mundo, conotando-a com a presença do sagrado que o povoa e assim reflecte os poderes de uma pluralidade de deuses e deusas cujo culto, em vez de exigir submissão — «Os deuses não nos querem de joelhos» —, nos convida, pelo contrário, a um esfusiante cântico da vida e do amor, do qual podem ser emblemas os Jardins de Adónis, onde se recusam os labirintos da racionalidade e se declara a superioridade das sensações, tornadas elas mesmas divinas: «Sentir nos baste. Ideias são reveses. / Da vida, as naturais disposições, / Sigamos, Flávio. Até que sejam deuses / As nossas sensações.»
Perto das sensações mais vibrantes se encontram, aliás, todos os elementos de uma natureza cujo incognoscível daimon feminino se condensa na famosa imagem da «Mátria», nem sequer demasiadamente erotizada no sentido mais comum que atribuímos à sexualidade humana, mas sobretudo transmissora de paz, de bem-estar e de reconciliação com um estado primitivo, maternal ou genesíaco do universo: «E se o mundo em ti principiava, / No teu mistério entre astros absortos, / Suavemente, ó mãe, tudo termina.» Também o Amor (com maiúscula) ultrapassa, deste modo, as habituais fronteiras que limitam a consciência individual, elevando-se ao mais alto grau de gnose mística e adquirindo o estatuto de uma sabedoria esotérica comparável à de uma verdadeira alquimia: «Indemne atravessei as labaredas / porque o Amor faz a Obra / e o fogo faz o Amor.»
Para concluir, digamos que toda a poesia de Natália Correia configura um «ofício das trevas», mergulhando nas águas de mistérios que não ousa decifrar e assentando numa ideia (surrealista) de libertação total do ser, num processo de comunhão iniciática. Trata-se de um ritual posto em jogo não apenas graças aos já mencionados poderes alquímicos da escrita, mas também por uma abertura à «Saudade» portuguesa que sempre fascinou a Autora — essa «retráctil flor da ausência», cujo místico perfil se recorta sobre o passado e sobre o futuro, parecendo conferir ao conjunto da obra de Natália Correia uma indestrutível crença em qualquer coisa que extravasa os mesquinhos limites da razão humana. Na esteira dos românticos ou dos seus herdeiros surrealistas, é sempre muito para lá de tais limites que esta poesia nos deseja convocar, arrastando-nos para uma dimensão soberanamente libertadora da realidade e da linguagem — como se lê no texto final dos Sonetos Românticos, que funciona como um «credo»:
«Creio nos anjos que andam pelo mundo, / Creio na Deusa com olhos de diamantes, / Creio em amores lunares com piano ao fundo, / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, // Creio num engenho que falta mais fecundo / De harmonizar as partes dissonantes, / Creio que tudo é eterno num segundo, / Creio num céu futuro que houve dantes, // Creio nos deuses de um astral mais puro, / Na flor humilde que se encosta ao muro, / Creio na carne que enfeitiça o além, // Creio no incrível, nas coisas assombrosas, / Na ocupação do mundo pelas rosas, / Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen»."
Fernando Pinto Amaral , in prefácio a "Antologia Poética", org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002 – p. 19-25.

OS NUMES DOS NOMES

Não por acaso Natália me puseram:
minha mãe que era fada lá sabia.
Posta a graça ao afino do mistério
para estar sempre a nascer é que eu nascia.

Da avó que era louca veio o Rego
em conduta dos anjos que ela via.
Desvairanças aladas bom emprego
São, se herdadas em grão de poesia.

Pelo avô, do matagal de nomes,
Sai-me o Raposo. Aqui ninguém me apanha.
Inomeável três vezes é o Esposo,
para fazer de solteira há que ter manha.

Também é fortuita a Oliveira
De folhas de ouro no meu nome oclusa:
a alma é paz de ideias à lareira
que o pudor em mau génio não acusa.

E Medeiros, medeiros quantas medas
de trigo sideral para que em signo
apurada a espiga entre as estrelas
Fecundo seja meu trigal de Virgo.

Vem por fim a justiça na Correia:
perdoar vendilhões só a chicote.
Absolva-os a Virgem que faz meia.
Não eu. Adivinhai-me. Eu dei o mote.

Natália Correia de "O Espírito É Tão Real Como Uma Árvore", in "O Dilúvio e a Pomba", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979.



Cântico do País Emerso

Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos
Sou de mim mesma pomba húmida e brava.

De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros
Barbeados pelo sol penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
A génese a pluma do meu país natal.

Não sou daqui das praias da tristeza
Do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez minha beleza
E colocai-a à sombra dos palmares.

Não sou daqui. A minha pátria não é esta
Bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida     Sou solta     talvez nuvem
Nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos     Levai-os para a floresta.

É lá que o meu amigo pastor de estrelas pasce
O marulho das folhas com pássaros nas vozes
O sol adormecido nos braços da giesta
A manhã rarefeita na corrida do alce
O luar orbitado no salto da gazela
Os animais velozes do sítio onde se nasce...

Levai-me, peixes da minha pele itinerante!
Quero ir à pesca colher no espelho da laguna
O lírio da nudez a perdida inocência
O coração do bosque a dar-se sem penumbra
Visto através da minha transparência.

Levai-me, ó minhas mãos branco exílio de ramos!
Meus dedos virtuais folhas de palma!
Sois os órgãos sensíveis da choupana
Onde quero deitar a minha alma.

Levai-me, olhos meus implícitas montanhas
Florescência de cumes para poisarem águias!

Quero ter pensamentos que me cheirem a lenha
Esfregar o espírito em plantas aromáticas
Uma alma com pétalas guerrilheiras selvagens

Abertas a uma lua de prata verdadeira
Uma alma que seja verde que tenha asas
E dance nua para os deuses da fogueira...

Jogai, jogo do arco laço azul infância coisas
Que o desencanto confisca e abandona na cave!
Como uma criança joga papagaio     jogai
Este farrapo de ânsia poeira da cidade
onde ninguém tem pressa de ser ave;

E tu, anjo de pedra do meu grito!      Anjo
Esculpindo em pranto seco!      Anjo enxuto!
Tu que me afogas o olhar no infinito
e as mãos no lodo dum gesto irresoluto

Tece, ó aranha de luz no esconso da garganta!
Coração de andorinha estrangulada!
O luar o jardim a cigarra que canta
O leito de verdura para eu me dar à esperança,
Rosa que aspiro num esquivo vão de escada.

Natália Correia ,in "Cântico do País Emerso", Lisboa: Contraponto, 1961

Sem comentários:

Enviar um comentário