terça-feira, 30 de setembro de 2025

Ele só pensa em gramática

Sexa
por  Luís Fernando Veríssimo
"– Hmmm?
– Como é o feminino de sexo?
– O quê?
– O feminino de sexo.
– Não tem.
– Sexo não tem feminino?
– Não.
– Só tem sexo masculino?
– É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.
– E como é o feminino de sexo?
– Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.
– Mas tu mesmo disseste que tem sexo masculino e feminino.
– O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra “sexo” é masculina. O sexo masculino, o sexo feminino.
– Não devia ser “a sexa”?
– Não.
– Por que não?
– Porque não! Desculpe. Porque não. “Sexo” é sempre masculino.
– O sexo da mulher é masculino?
– É. Não! O sexo da mulher é feminino.
– E como é o feminino?
– Sexo mesmo. Igual ao do homem.
– O sexo da mulher é igual ao do homem?
– É. Quer dizer… Olha aqui. Tem o sexo masculino e o sexo feminino, certo?
– Certo.
– São duas coisas diferentes.
– Então como é o feminino de sexo?
– É igual ao masculino.
– Mas não são diferentes?
– Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo, mas não muda a palavra.
– Mas então não muda o sexo. É sempre masculino.
– A palavra é masculina.
– Não. “A palavra’ é feminino. Se fosse masculina seria “o pal…”
– Chega! Vai brincar, vai.
O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:
– Temos que ficar de olho nesse guri…
– Por quê?
– Ele só pensa em gramática."
Luís Fernando Veríssimo (Porto Alegre - Brasil, 26 de Setembro de 1936 - 30 de Agosto de 2025), in  Crónicas

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Da mui antiga arte da desleitura


Da mui antiga arte da desleitura
por Eugénio Lisboa
                       
Dedico este texto aos meus assíduos desleitores

"Uma das competências que as escolas e até as universidades deviam dar aos alunos que as frequentam seria a da leitura. Saber ler um texto é uma competência essencial, na vida.
Infelizmente, a maioria dos estudantes sai das escolas e muitos deles das universidades, com diploma em riste, evidenciando uma total incapacidade de interpretar correctamente um texto. Saber ler um texto serve a professores, médicos, juízes, engenheiros,enfermeiros, biólogos, astrónomos, informáticos, mecânicos, electricistas, empresários, serve, em suma, a toda a gente, nos mais diversos caminhos da vida.
Porém, quando lemos jornais, livros, comentários nas notórias redes sociais,pasmamos com a manifesta iliteracia da assim chamada geração mais qualificada de sempre. O mais grave é que tal iliteracia roça,muitas vezes, pela mais rotunda boçalidade.Muita desta gente que não sabe ler um texto muito claro mostra um total desrespeito por quem sabe, reagindo com os mais destemperados dislates, nos palcos mediáticos que lhes são oferecidos e que se tornam verdadeiros focos infeciosos de desinformação e de deseducação. O espectáculo é simplesmente assustador, mas nós lá vamos, cantando e rindo, exibindo uma aparatosa e cintilante estatística de diplomas e conquistas académicas. Cada um consola-se como pode e com o que tem…
Tenho tido uma vasta, triste e dolorosa experiência de assédio, às vezes ideológico, outras vezes, simplesmente inepto e grosseiro, outras vezes, ainda, as duas coisas ao mesmo tempo, sendo raríssima a cara lavada de um comentário minimamente asseado. Faz pena, porque é um retrato muito claro de uma suposta elite, o qual não augura nada de bom para o futuro do desenvolvimento deste país, no concerto das nações europeias. Reage-se a uma sátira, como se fosse um texto erudito, analisa-se um soneto como se fosse um ensaio ideológico, arrasa-se boçalmente um texto, do mesmo passo que se revela uma aflitiva ignorância do assunto que o texto glosa, enfim, uma paisagem de grosseria contentinha e de ignorância que se ignora. A desleitura é quem mais ordena. Mas há mais grave: a desleitura é, muitas vezes, enviesada e usada como torpe arma de difamação. Com uma total falta de escrúpulos, reveladora de que se trata provavelmente de executar uma “ordem de serviço” dimanada de algum departamento com uma missão a cumprir.
Tudo isto é muito mau, muito vil e muito feio.
Neste milieu cheio de miasmas, a elegância é quem menos ordena. Sem educação e sem educação cívica (que alguns pais rejeitam), a nossa sociedade evolui assintoticamente para um futuro paraíso de selvagens, como aquele que retratou o grande Melville numa das suas narrativas."
Eugénio Lisboa,06.07.2023

domingo, 28 de setembro de 2025

Ao Domingo Há Música


Neste quarto tão pequeno
Que eu pensava ser só meu, 
Infiltra-se um tal veneno
Que é a solidão e eu. 

Juntos não somos um todo, 
É sufocante o vazio.
E eu já nem sei de que modo
Foi invadido plo frio. 

Agora já somos três 
Mas esses não fazem um, 
Nem ao entrares tu me vês, 
Este quarto é de nenhum. 

Coração que se partiu, 
Que está sem nada pra dar, 
É este quarto vazio 
Onde nem lá cabe o ar.
Carminho

Há vozes que nos fazem render pela intensa  musicalidade e pela inconfundível  sonoridade que transportam, fazendo delas a voz de um  momento  único e  distinto de qualquer outro. 
É  assim a voz que seleccionámos para este início de Outono e já no ocaso de um agitado Setembro. Uma fadista jovem , mas com uma  longa carreira de sucessos ,  que acaba de divulgar mais um novo e singular single.

Carminho , em  o quarto ( fado Pagem ).Letra: Carminho . Música: Alfredo Marceneiro. Produzido por Carminho. Gravado por Joaquim Monte, assistido por Rúben Baião e Rodrigo Lopes, nos Estúdios Namouche, em Lisboa .Misturado por Joaquim Monte e Carminho. Masterizado por Ars Lindberg Mastering.
Carminho, em Balada do País que dói.  O novo  single  do próximo Álbum, com Letra de  Ana Hatherly e  Música de Carminho.
“Balada do País que Dói” é uma canção produzida por Carminho, gravada por Joaquim Monte e Miguel Peixoto nos Namouche Studios, em Lisboa, e misturada por Joaquim Monte. A masterização ficou a cargo de Bob Weston. A riqueza instrumental é central neste single: a guitarra portuguesa de André Dias dialoga com a guitarra elétrica de Pedro Geraldes e a viola de fado de Flávio César Cardoso, sustentadas pelo baixo acústico de Tiago Mata. A voz de Carminho é desdobrada através do vocoder, criando camadas vocais que se misturam com sonoridades raras — o mellotron, o cristal baschet e as ondes martenot — tocados por João Pimenta Gomes. Visualmente, este trabalho contou com a direção criativa de Raphael Tepedino, a fotografia de Mariana Maltoni, o styling de Antonio Frajado, a beleza de Guilhermo Casagrande e o design gráfico de Sometimes Always & Solenn Robic. A produção executiva foi assegurada por Carminho em parceria com Miguel Isaac, reforçando o carácter profundamente autoral e cuidado deste lançamento." (Glam Magazine)
Balada do país que dói
O barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o corpo cai
o corpo dói

português vai
português cai

o barco vai
o barco vem

português vai
português vem

o país cai
o país dói

o tempo vai
o tempo dói

português cai
português vai
português sai
português dói
Ana Hatherly
   
“‘Balada do País que Dói’ constrói-se através do diálogo que Carminho provoca entre instrumentos de famílias tão diferentes como uma guitarra portuguesa, uma guitarra elétrica e o Cristal Baschet, entre a sua voz e outras vozes (que na verdade é sua voz tornada múltipla). Diálogos esses que atravessam diversos tempos: os tempos da história e da tradição do fado, dos seus compositores, letristas e intérpretes, mas também os tempos das disciplinas da música e da poesia. Nessa travessia, através da qual somos conduzidos por Carminho, aprendemos que o tempo da música não é um tempo cronológico marcado por calendários e horas do dia, mas uma temporalidade construída pelas notas e pelas texturas sonoras, nascida das palavras escritas por Ana Hatherly e depois ditas e cantadas por Carminho. A que se junta o tempo de quem ouve esta Balada, a repete, trauteia e guarda na memória. Balada é um fado construído através da sobreposição de camadas de tempos a dialogar entre si que põem em relação o antes e o agora, o antigo e o instante presente e dá início a um processo dialético de diálogo. E é este vai-e-vem entre diferentes tempos, palavras e sons heterogéneos que marca não só este tema, mas percorre subterraneamente todo o novo disco de Carminho.” — Nuno Crespo (Critico de Arte)

sábado, 27 de setembro de 2025

Os Amantes da Humanidade



 
Os Amantes da Humanidade

Os homens que amam a humanidade
detestam as pessoas, uma a uma.
Esse amor convive bem com crueldade
e vive, hirto, em penosa bruma.
 
O amor abstracto é confortável,
porque tem muito poucas exigências.
É um amor frio e pouco afável,
que não se desgasta em minudências.
 
É amor distante e algo sinistro,
incapaz de um orgasmo verdadeiro.
É um despacho seco de ministro,
 
um amor que ao amor é estrangeiro.
Amar a humanidade, em geral,
é um amor castrado e doutrinal. 
Eugénio Lisboa, 05.07.2023

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

É assim com o nosso passado

“É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora de seu domínio e do seu alcance, em algum objeto material (na sensação que nos daria esse objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só de acaso depende que o encontremos antes de morrer, ou que não encontremos nunca.
Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei porquê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na vala estriada de uma concha de São Tiago. Em breve, maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena.
Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou o meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes as vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo. Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal. De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligado ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde aprendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada demais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela, mas em mim.
A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a chávena e volto-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar: criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar na sua luz…”
Marcel Proust, in Em Busca do Tempo Perdido. Volume 1. No Caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006. Págs. 71 e 72. Tradução de Mario Quintana.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

terça-feira, 23 de setembro de 2025

A Linguagem Crítica


A Linguagem Crítica e a Linguagem oracular
por Eugénio Lisboa

O comunismo, como todas as religiões reveladas, é
largamente feito de profecias.
 H. L. Mencken

“O que o grande humorista americano disse do comunismo pode também dizer-se de muita linguagem alegadamente crítica, que grassa em meios intelectuais, dentro e fora das universidades. Em vez de uma prosa lavada, escorreita e isenta de miasmas oraculares, uma prosa que visa iluminar e não obscurecer, temos, frequentemente, um delírio obscurantista, que tenta iluminar um quarto escuro, apagando a luz e mergulhando-o numa triunfal escuridão.
A prosa de Agustina é muitas vezes – demasiadas vezes – desta natureza obscurantista, sibilina, fazendo supor grandezas abissais, onde se encontra apenas o delírio do arbitrário. E o escrever sobre Agustina convoca, um igual número de vezes, uma prosa crítica que nada ilumina, antes obscurece mais o já de si obscuro. Também se chama a isto “linguagem”. Eu prefiro pensar que a linguagem serve para esclarecer e não para confundir. Como dizia António Sérgio, com aquela intrépida inteligência que ainda hoje lhe não perdoam os cultores e amantes da prosa arrebicada, um eclipse do sol é uma obscuridade, mas a explicação científica de um eclipse deve ser uma claridade. Um bom professor deve ser um senhor que esclarece e não que obscurece. Os grandes e lendários professores, como Ortega y Gasset ou Bergson, enchiam as suas aulas até à rua, com a sua linguagem lavada, despretensiosa e sedutora. Por outras palavras, enchiam as salas e as almas de luz.
Quando deparo, por todo o lado, com fraseado delirante que aspira a frenesi mais ou menos oracular, desanimo, quanto ao futuro do milieu intelectual lusíada. Ainda hoje, num artigo dedicado ao centenário do grande poeta Mário Cesariny, num prestigioso diário lisboeta, leio isto e empalideço : “Quando olhamos as suas pinturas, sabemos que há nelas um segredo sagrado e uma potência electromagnética que as torna ímanes do Deus desmedido que apenas se aproxima de nós – e existe – naquelas cores que o fazem nosso ou naquelas formas que o fazem dele.” Se, a partir deste arrazoado frenético e epilético, alguma coisa se fica a saber da pintura de Cesariny e do que nela podemos encontrar, agradeço o favor de mo explicarem, mas em linguagem que me não ponha a mim epilético.
Cada vez mais a linguagem crítica prevalecente anda mais preocupada com espanejar-se, “criativamente”, do que com esclarecer empenhadamente o objecto estudado. Em tomar de assalto o palco que, de direito, lhe não pertence. Pede-se humildade: entender e fazer entender. Acrobacias parolas de linguagem não ajudam.”
Eugénio Lisboa, 09.08.2023

domingo, 21 de setembro de 2025

Ao Domingo Há Música

 

Uma ou duas ideias, numa vida,
desde que sejam ideias das boas, 
valem bem uma vida investida
Eugénio Lisboa, A Arte de insistir in "sonetos ,modo de usar"

Duas belas peças musicais de um talentoso compositor que soube construir , ao longo dos anos , uma carreira de meritoso sucesso.

Prayer, composição de HAVASI,  interpretada por  HAVASI  ao piano, no violoncelo Zoltán Onczay, acompanhados pela Budapest Art Orchestra  e a  VoiceStation Choir Artistic, dirigido pelo Maestro  Panna Pejtsik, no  Official Concert Video.
 
Let Your Voice Be Heard, composição e interpretação de HAVASI.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Sobre a Palavra

A Palavra

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo
e o substituiria.
Mais sol do que o sol,
dentro da qual vivessemos
todos em comunhão,
mudos,
saboreando-a.
Carlos Drummond de Andrade, in A Paixão Medida, Companhia das Letras,  p 47


Sobre a Palavra

Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada

Interminavelmente
Eugénio de Andrade, in Véspera da Água, Assírio & Alvim, 2014

Palavras


Golpes
De machado que fazem soar a madeira,
e os ecos!
Ecos partem
Do centro como cavalos.

A seiva
Jorra como lágrimas, como a
água lutando
Para repor seu espelho
Sobre a rocha

Que cai e rola,
Crânio branco
Comido por ervas daninhas.
Anos depois as encontro
Na estrada —

Palavras secas e sem rumo,
Infatigável bater de cascos.
Enquanto
Do fundo do poço estrelas fixas
Governam uma vida.
Sylvia Plath, (1932-1963),in The Collected Poems | Sylvia Plath © 1981 The Estate of Sylvia Plath Editorial material
Ai, palavras, ai, palavras

Ai, palavras, ai, palavras
Que estranha potência a vossa!

Todo o sentido da vida
Principia a vossa porta:
O mel do amor cristaliza
Seu perfume em vossa rosa;
Sois o sonho e sois a audácia,
Calúnia, fúria, derrota…

A liberdade das almas,
ai! Com letras se elabora…
e dos venenos humanos
sois a mais fina retorta:
frágil, frágil, como o vidro
e mais que o aço poderosa!
Reis, impérios, povos, tempos,
pelo vosso impulso rodam…
Cecília Meireles, in Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985 (fragmento).

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Parabéns, Pai



 A emoção é sempre  nova, mas as palavras usam-nas desde sempre:
 daí a impossibilidade de exprimir a emoção.
                                      Victor Hugo

Nem sei quantas vezes tentei dizer-lhe,  querido pai, quanta falta nos faz. Neste mundo, que se agudiza a cada minuto, não o ter entre nós é uma ausência que marca e dói.  Talvez estivesse ainda mais alarmado com o desenho que  este nosso planeta tem agora nas mãos e nos actos de alguns senhores do mundo. É um desenho que é também um grande esquisso de várias tormentas vindouras, embora muitas existam já  para sofrimento de quem é obrigado a enfrentá-las. Pois, querido pai, a guerra anda por aí. Matando, arrasando e chacinando à ordem de alguns facínoras que querem dominar o mundo.
Sei que teria muita dificuldade em compreender este mundo, após o caos que foi a última guerra mundial. Mas o Homem é um predador , embora sendo a criatura mais dotada de inteligência. Regressa sempre à hegemonia do mal e persegue-a sem piedade.
Oxalá o pudéssemos ter entre nós, para hoje,  dia do seu aniversário, dar voz à emoção e dizer-lhe que a vida foi a maior dádiva que nos ofereceu, ao ensinar-nos o caminho que a acarinha.
Parabéns. E obrigada , querido pai. 

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

Viajar pelas Maravilhas do Vietname

Maravilhas do Vietname| Onde o Tempo Flui Diferente | Os Lugares Mais Incríveis do Vietname | 4K, pelos Epic ExplorationsTV PT
"Descubra os lugares mais bonitos do Vietname neste documentário abrangente que o guiará pelas maravilhas ocultas deste país extraordinário. Do Norte ao Sul do Vietname, exploraremos juntos os locais imperdíveis e os destinos mais autênticos que fazem do Vietname um destino único no mundo. Esta jornada mostrará o que ver e fazer em cada região: da majestosa Baía de Ha Long às antigas lanternas de Hoi An, dos terraços de arroz de Sapa aos mercados flutuantes do Delta do Mekong. Um guia visual de viagem que o levará pelas principais atrações do Vietname e os seus tesouros menos conhecidos. Visitaremos as maravilhas mais famosas do Vietname, como as cavernas de Phong Nha, a cidadela imperial de Hue e o fascinante caos de Hanói, mas também descobriremos destinos fora do circuito turístico como Ha Giang, Mu Cang Chai e a remota Phan Rang."

domingo, 14 de setembro de 2025

Ao Domingo Há Música

Segredos para usar

O segredo há de estar
em coisas muito vulgares,
em palavras com vagar,
sem desejo de negares,

em mistérios muito claros,
em claridades que escondem
recônditos muito raros
e amores que respondem.

As leis da felicidade
são leis sem complicação:
simplificar a verdade
que vive no coração.

Gostar de homens e bichos,
que em tudo são iguais;
descobrir os certos nichos,
nos lugares mais banais!
          19.08.2023
Eugénio Lisboa


Uma peça musical  e  um  poema, um convite à descoberta das leis da felicidade.  Descobri-la nos lugares mais banais sem negar  a clara evidência é talvez o segredo ou a solução, assim recomenda o poeta.

Khatia Buniatishvili interpreta Piano Concerto No.2 in C Minor, Op. 18: 2. Adagio sostenuto, de Sergei Rachmaninoff ( 1 de Abril de 1873, Semyonovo,Rússia- 28 de Março de 1943, Beverly Hills, California,USA).

sábado, 13 de setembro de 2025

Celebrar Natália Correia no seu 102º aniversário

Filme sobre Natália Correia, “A Mulher que Morreu de Pé”, estreia hoje nos cinemas
"Um ensaio visual sobre Natália Correia, intitulado “A Mulher que Morreu de Pé”, realizado por Rosa Coutinho Cabral, estreia-se hoje nos cinemas portugueses, na mesma semana em que a escritora celebraria 102 anos.
Mais do que um documentário, este filme é um ensaio poético e ficcionado, que convoca atores, amigos e testemunhos para revisitar Natália Correia (1923-1993), figura incontornável da liberdade de pensamento e criação em Portugal, antes e depois do 25 de Abril, segundo os produtores.
Trata-se de uma “viagem pelas múltiplas facetas de Natália Correia”, de poeta a cronista, passando por dramaturga, editora, feminista, política e provocadora, construída a partir do arquivo da autora: fotografias, imprensa, crónicas, teatro, obra ensaística e poética.
Neste filme, Rosa Coutinho procurou não apenas reconstruir uma memória, mas reencontrar uma mulher movida pela liberdade, profundamente ligada à sua “açorianidade” e a uma ideia radical de poesia como gesto político.
Entre ‘castings’ de atores, materiais de arquivo, poemas e testemunhos, “A Mulher que Morreu de Pé” tenta não encerrar Natália Correia numa narrativa fixa, e conta com um elenco composto por nomes como Lídia Franco, Soraia Chaves, Joana Seixas e João Cabral.
Este documentário ficcionado, apresentando como um “casting poético”, teve estreia na última edição do Olhares do Mediterrâneo e desde então tem sido exibido em vários festivais, como o Porto Femme 2025, no qual venceu o prémio de Melhor Documentário da Competição Nacional.
Nascida nos Açores em 13 de setembro de 1923, Natália de Oliveira Correia foi uma escritora e poeta portuguesa, antifascista, movida pela liberdade contra qualquer forma de opressão. Deputada à Assembleia da República, interveio politicamente ao nível da cultura e do património, na defesa dos direitos humanos e dos direitos das mulheres. Morreu no dia 16 de março de 1993." Lusa

Violência e Paixão
por Fernando Pinto do Amaral 
"Quando se percorre a poesia escrita por mulheres ao longo do século XX português, o nome de Natália Correia continua a surgir como um dos que causaram uma repercussão mais duradoura, quer pela sua personalidade forte e polémica, quer pelo alcance da sua obra literária, na qual sempre se manifestou uma vocação poderosamente dionisíaca e por isso excessiva, capaz de apreender magicamente a realidade e de a transfigurar mediante uma rica imaginação metafórica, sobretudo a partir de Dimensão Encontrada (1957), já que os seus primeiros livros (Rio de Nuvens, de 1947, e Poemas, de 1955) exprimiam ainda uma atitude lírica mais tradicional.
É antiga a questão de saber até que ponto Natália Correia poderá ou não considerar-se uma escritora surrealista, embora nunca tenha pertencido a qualquer movimento com esse nome: definida algures por Claude Roy como «la violence surréaliste faite femme», a própria Autora terá admitido alguma proximidade com a visão surrealista do mundo, essencialmente no que toca a uma «identificação entre a poesia e a magia», na medida em que ambas procuram o acesso a uma alquimia libertadora. Trata-se, no fundo, de uma radical vontade criadora, de um desejo de libertar a linguagem de todos os constrangimentos e de dar livre curso à imaginação, como podemos sentir num texto que nos fala de uma ressurreição apta a transformar a morte em vida e a tristeza em alegria: «A harpa do vento / e os meus dedos de ventania / compuseram uma canção / da mais fantástica alegria. // (...) // É uma onda de magia / onde se enrolam os mortos / erguidos da terra fria / dum rosto que lhes pintou / a nossa melancolia.»
Foi sob o efeito do irresistível impulso dessa «onda de magia» que se construiu o essencial da escrita de Natália, em que um dos traços mais flagrantes consiste numa posição (sempre reafirmada) de rebeldia diante das instituições e dos poderes estabelecidos ou de quaisquer regras impostas pela força. Até certo ponto, é como um sinal dessa rebeldia que se compreendem as incursões da Autora no campo da poesia satírica e humorística, dirigida contra figuras ou acontecimentos da esfera política, como sucede na sequência das «Cantigas de Risadilha» — composta por poemas que ridicularizam episódios da vida parlamentar que Natália acompanhou enquanto foi deputada —, assim como em toda a Epístola aos Iamitas (1976), cujos sonetos constituem reflexões ora entusiásticas, ora sobretudo corrosivas, a respeito do Portugal pós-25 de Abril e disso a que na altura se chamou o P.R.E.C. (Processo Revolucionário Em Curso), perante o qual se manifesta por vezes uma dolorosa desilusão: «E veio Abril: cravos camonianos / aparelharam da liberdade as barcas. / Do verde pinho as flores foram-me enganos, / as tecelãs do sonho eram as parcas. // Da podridão variam os estados: / magicamente os nomes são mudados; / intacto o pasto vil das varejeiras.»
A mesma faceta surge igualmente em certos poemas isolados, como a célebre «Queixa das Almas Jovens Censuradas», fazendo eco de um profundo grito de revolta que preza, acima de tudo, a liberdade do poeta contra todas as formas de sujeição. E é também isso a estar em jogo num outro texto muito conhecido («A Defesa do Poeta»), aliás escrito com a intenção de ser lido no Tribunal Plenário que no tempo da ditadura acusou Natália Correia: «Senhores juízes sou um poeta / um multipétalo uivo um defeito / e ando com uma camisa de vento / ao contrário do esqueleto. // (...) // Sou (...) / uma avaria cantante / na maquineta dos felizes. / (...) // Sou uma impudência a mesa posta / de um verso onde o possa escrever. / Ó subalimentados do sonho! / A poesia é para comer.»
Lido este excerto, convirá atender a dois aspectos: por um lado, mesmo levando em conta o intuito profundamente afirmativo do texto (que desenvolve a vigorosa declaração: «sou um poeta»), o lugar de quem escreve poesia surge relacionado com uma excepcionalidade inquietante ou perturbadora, já que se identifica com um «defeito» ou uma «avaria cantante / na maquineta dos felizes», que corresponderiam à cinzenta maioria; por outro lado (e refiro-me agora aos dois últimos versos), acentua-se a dimensão gustativa, sensorial ou carnal da poesia, inscrevendo-se num entendimento global do mundo em que «o espírito é tão real como uma árvore», pressupondo uma integração harmoniosa na natureza. Ficamos, portanto, dentro de uma unidade fundamental entre todas as coisas humanas e cósmicas, naturais e divinas: «Vem das estrelas o sangue que nos guia / E na amorosa perfeição da carne / Está toda a eternidade resumida.»
Perante versos como estes, pode dizer-se sem grande exagero que Natália Correia nos deu, do princípio ao fim da sua obra, uma visão religiosa da existência, alicerçada não em qualquer adoração de um Deus ou num rito eclesiástico específico, mas numa espécie de comunhão pagã entre o eu e tudo o que o rodeia, religando-se a um universo do qual pretende auscultar os sinais, como se estivesse diante de um segredo que só a alguns é permitido desvendar e que a poesia aguarda, como se esperasse «o romper da manhã na noite mística». De facto, na escrita de Natália o conhecimento quase nunca se produz pela via intelectual e corresponde, acima de tudo, ao amor: fiel à tradição lírica portuguesa e à sua predilecção por temas amorosos, a Autora convoca sentimentos simultaneamente carnais e espirituais, porque neste caso é a partir dos sentidos que se intui a hipótese (ou a certeza?) de um sentido que os excede — veja-se o início do poema «Pórtico»: «Corpo, alma, razão, já os cantei, / estreme, sem me isentar em pseudónimos. / Antífrases de mim as assinei. / Contrários indaguei: eram sinónimos. // O Espírito agora cantarei. / Corpo, alma, razão lhe são compósitos.»
Também enquadrado no mesmo propósito de união e ampla comunhão universais está um politeísmo estrutural que leva a poesia desta «feiticeira cotovia» a celebrar a beleza do mundo, conotando-a com a presença do sagrado que o povoa e assim reflecte os poderes de uma pluralidade de deuses e deusas cujo culto, em vez de exigir submissão — «Os deuses não nos querem de joelhos» —, nos convida, pelo contrário, a um esfusiante cântico da vida e do amor, do qual podem ser emblemas os Jardins de Adónis, onde se recusam os labirintos da racionalidade e se declara a superioridade das sensações, tornadas elas mesmas divinas: «Sentir nos baste. Ideias são reveses. / Da vida, as naturais disposições, / Sigamos, Flávio. Até que sejam deuses / As nossas sensações.»
Perto das sensações mais vibrantes se encontram, aliás, todos os elementos de uma natureza cujo incognoscível daimon feminino se condensa na famosa imagem da «Mátria», nem sequer demasiadamente erotizada no sentido mais comum que atribuímos à sexualidade humana, mas sobretudo transmissora de paz, de bem-estar e de reconciliação com um estado primitivo, maternal ou genesíaco do universo: «E se o mundo em ti principiava, / No teu mistério entre astros absortos, / Suavemente, ó mãe, tudo termina.» Também o Amor (com maiúscula) ultrapassa, deste modo, as habituais fronteiras que limitam a consciência individual, elevando-se ao mais alto grau de gnose mística e adquirindo o estatuto de uma sabedoria esotérica comparável à de uma verdadeira alquimia: «Indemne atravessei as labaredas / porque o Amor faz a Obra / e o fogo faz o Amor.»
Para concluir, digamos que toda a poesia de Natália Correia configura um «ofício das trevas», mergulhando nas águas de mistérios que não ousa decifrar e assentando numa ideia (surrealista) de libertação total do ser, num processo de comunhão iniciática. Trata-se de um ritual posto em jogo não apenas graças aos já mencionados poderes alquímicos da escrita, mas também por uma abertura à «Saudade» portuguesa que sempre fascinou a Autora — essa «retráctil flor da ausência», cujo místico perfil se recorta sobre o passado e sobre o futuro, parecendo conferir ao conjunto da obra de Natália Correia uma indestrutível crença em qualquer coisa que extravasa os mesquinhos limites da razão humana. Na esteira dos românticos ou dos seus herdeiros surrealistas, é sempre muito para lá de tais limites que esta poesia nos deseja convocar, arrastando-nos para uma dimensão soberanamente libertadora da realidade e da linguagem — como se lê no texto final dos Sonetos Românticos, que funciona como um «credo»:
«Creio nos anjos que andam pelo mundo, / Creio na Deusa com olhos de diamantes, / Creio em amores lunares com piano ao fundo, / Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes, // Creio num engenho que falta mais fecundo / De harmonizar as partes dissonantes, / Creio que tudo é eterno num segundo, / Creio num céu futuro que houve dantes, // Creio nos deuses de um astral mais puro, / Na flor humilde que se encosta ao muro, / Creio na carne que enfeitiça o além, // Creio no incrível, nas coisas assombrosas, / Na ocupação do mundo pelas rosas, / Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen»."
Fernando Pinto Amaral , in prefácio a "Antologia Poética", org. Fernando Pinto do Amaral, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002 – p. 19-25.

OS NUMES DOS NOMES

Não por acaso Natália me puseram:
minha mãe que era fada lá sabia.
Posta a graça ao afino do mistério
para estar sempre a nascer é que eu nascia.

Da avó que era louca veio o Rego
em conduta dos anjos que ela via.
Desvairanças aladas bom emprego
São, se herdadas em grão de poesia.

Pelo avô, do matagal de nomes,
Sai-me o Raposo. Aqui ninguém me apanha.
Inomeável três vezes é o Esposo,
para fazer de solteira há que ter manha.

Também é fortuita a Oliveira
De folhas de ouro no meu nome oclusa:
a alma é paz de ideias à lareira
que o pudor em mau génio não acusa.

E Medeiros, medeiros quantas medas
de trigo sideral para que em signo
apurada a espiga entre as estrelas
Fecundo seja meu trigal de Virgo.

Vem por fim a justiça na Correia:
perdoar vendilhões só a chicote.
Absolva-os a Virgem que faz meia.
Não eu. Adivinhai-me. Eu dei o mote.

Natália Correia de "O Espírito É Tão Real Como Uma Árvore", in "O Dilúvio e a Pomba", Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979.



Cântico do País Emerso

Não sou daqui. Mamei em peitos oceânicos
Minha mãe era ninfa meu pai chuva de lava
Mestiça de onda e de enxofres vulcânicos
Sou de mim mesma pomba húmida e brava.

De mim mesma e de vós, ó Capitães trigueiros
Barbeados pelo sol penteados pela bruma!
Que extraístes do ar dessa coisa nenhuma
A génese a pluma do meu país natal.

Não sou daqui das praias da tristeza
Do insone jardim dos glaciares
Levai minha nudez minha beleza
E colocai-a à sombra dos palmares.

Não sou daqui. A minha pátria não é esta
Bússola quebrada dos impulsos.
Sou rápida     Sou solta     talvez nuvem
Nuvens minhas irmãs que me argolais os pulsos!
Tomai os meus cabelos     Levai-os para a floresta.

É lá que o meu amigo pastor de estrelas pasce
O marulho das folhas com pássaros nas vozes
O sol adormecido nos braços da giesta
A manhã rarefeita na corrida do alce
O luar orbitado no salto da gazela
Os animais velozes do sítio onde se nasce...

Levai-me, peixes da minha pele itinerante!
Quero ir à pesca colher no espelho da laguna
O lírio da nudez a perdida inocência
O coração do bosque a dar-se sem penumbra
Visto através da minha transparência.

Levai-me, ó minhas mãos branco exílio de ramos!
Meus dedos virtuais folhas de palma!
Sois os órgãos sensíveis da choupana
Onde quero deitar a minha alma.

Levai-me, olhos meus implícitas montanhas
Florescência de cumes para poisarem águias!

Quero ter pensamentos que me cheirem a lenha
Esfregar o espírito em plantas aromáticas
Uma alma com pétalas guerrilheiras selvagens

Abertas a uma lua de prata verdadeira
Uma alma que seja verde que tenha asas
E dance nua para os deuses da fogueira...

Jogai, jogo do arco laço azul infância coisas
Que o desencanto confisca e abandona na cave!
Como uma criança joga papagaio     jogai
Este farrapo de ânsia poeira da cidade
onde ninguém tem pressa de ser ave;

E tu, anjo de pedra do meu grito!      Anjo
Esculpindo em pranto seco!      Anjo enxuto!
Tu que me afogas o olhar no infinito
e as mãos no lodo dum gesto irresoluto

Tece, ó aranha de luz no esconso da garganta!
Coração de andorinha estrangulada!
O luar o jardim a cigarra que canta
O leito de verdura para eu me dar à esperança,
Rosa que aspiro num esquivo vão de escada.

Natália Correia ,in "Cântico do País Emerso", Lisboa: Contraponto, 1961

quinta-feira, 11 de setembro de 2025

Dez Pensamentos sobre Prémios Literários

Dez Pensamentos sobre Prémios Literários

I – Um escritor que aceita um prémio literário desonra-se.

Paul Léautaud

II – Os prémios literários dão um complexo de superioridade aos membros do júri e um complexo de inferioridade aos eleitos.

 Georges Perros

III – O Goncourt é um pouco como a eleição de Miss França. Sem futuro.

Patrick Mondiano

IV – O comércio de livros inventou os prémios literários, para estimular as vendas, não para recompensar o mérito.

Michael Moorcock

V – Vocês podem ter uma data de prémios, seguidores e dinheiro. Eu tenho a minha luta.

Avijeet Das

VI – Tudo o que tens a fazer para ganhares o Pulitzer [de jornalismo] é passares a vida a correr de um lugar horrível para outro lugar horrível e escreveres sobre todas as coisas horríveis que vires. O mundo civilizado lê, depois esquece, mas põe-te em destaque pelo que fizeste e dá-te uma recompensa, por não teres mudado coisa nenhuma.

David Baldacci

VII – Como é que os juízes do Book Award podem estar certos, quando sabemos que, se submetermos os mesmos livros a diferentes painéis, os vencedores serão diferentes?

Mouloud Benzadi

VIII – O mundo é glacial, quando chega a altura de reconhecer o talento.

Stewart Stafford

IX – Mas nada, na vida humana, é sem misturas e as honras inevitavelmente equilibram-se com a auto-dúvida. Toda a gente sabe que as medalhas

são de borracha.

Donald Hall

X – Não é a honraria que deves levar contigo, mas a herança que legas.

Branch Rickey 

NOTA: Os pensamentos que lego acima, na sua aliciante diversidade, são da responsabilidade dos seus autores e não da minha. Seria pois aconselhável que não se iniciasse tiroteio nesta direcção, como fizeram, por vezes, espectadores de teatro que, confundindo actor com personagem, perante um actor encarnando o personagem de vilão, subiram indignados ao palco e encheram-no de pancada. A minha reacção a estes dez pensamentos varia de pensamento para pensamento, mas revejo-me sobretudo no pensamento V, apesar de já ter recebido vários prémios.

Selecção e tradução

         de Eugénio Lisboa, em 15.12.2023

quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Pausa musical

  

Freezing, de 'Songs From Liquid Days' (1986) [Philip Glass]. Music by Philip Glass. Words by Suzanne Vega. Vocals by Linda Ronstadt. With the Kronos String Quartet. Fractal animation by Eric Bigas.

  FREEZING
 If you had no name
 If you had no history
 If you had no books 
 If you had no family 

 If it were only you
 Naked on the grass
 Who would you be then? 
 This is what he asked 
 And I said I wasn't really sure 
 But I would probably be
 Cold

 And now I'm freezing 
 Suzanne Vega 

terça-feira, 9 de setembro de 2025

Frase do dia

 




Frase do dia, proposta por Eugénio Lisboa
Um pensamento para esta guerra
 
More than an end to war, we want an end to the beginning of all wars, yes, an end to this brutal, inhuman and thoroughly unpractical method of settling differences between governments.
 
(Mais do que um fim da guerra, desejamos um fim do começo de todas as guerras, sim, um fim deste método brutal, inumano e nada prático de resolver diferenças entre governos.)
           Franklin D. Roosevelt

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Quem se lembra hoje da história de Onfália Benoiton

Onfália Benoiton
por Eça de Queiroz
"Quem se lembra hoje da história de Onfália Benoiton, uma mulher nervosa, e de Estevão Basco, um homem vencido e esquecido, e que todavia foi um homem?
As cartas que contam essa história de martírios reais e de falsas glorificações, tenho eu a alegria mefistofélica e bárbara de as copiar aqui.
A primeira carta assinada unicamente por uma letra — Z. — é o documento incisivo e lúcido da Sra. Onfália Benoiton. É assim:
“A Sra. Onfália Benoiton, meu caro, é descendente das belezas gregas. A mesma materialidade de forma correcta e fria. Somente as mulheres gregas eram musas, cantavam nos festins ao modo jónio, coroadas de mirtos; discutiam com os sábios e com os filósofos, celebravam com as túnicas soltas as Elêusis de Baco, edificavam cidades, eram os modelos da arte e a inspiração dos tiranos. E a Sra. Onfália Benoiton, com os seus vestuários onde há uma provocação especuladora, as suas atitudes masculinas, os penteados disformes que lhe dão uma aparência de animalidade audaz, com a sua pele colorida, acumulações da sua vida de fadiga trivial e de aparato sonolento, lembra uma daquelas Vénus de corpos harmónicos, que depois de ter atravessado este exílio moderno, a velhice, a miséria, e o vício imbecil — se vestisse de roupas bárbaras e grotescas, para parecer ainda, de longe, à luz soluçante do gás, um ídolo material — aos idiotas!
A Sra. Onfália Benoiton é um pouco magra e nervosa. E um corpo alto, coberto de estofos, pedestal de um crânio vazio. As suas formas, dignas talvez do biscuit, sem contorno inteligente e espiritual, não conseguem encobrir o lodo primitivo. Nenhuma ideia nas atitudes e nos gestos: só a retórica da futilidade. Tem uma graça oficial; compõe um olhar com o mesmo trabalho compassado e métrico com que um poeta arcádico cinzela um verso. Tem sempre a pele admiravelmente colorida: tem o segredo do rosado da face casta e transparente.
Desenha as sobrancelhas com a delicadeza de um artista chinês. Põe em redor do olhar uma cor de sépia ligeira semelhando a fadiga, invejável para uma imagem de Impéria ou de Vinon.
A sua fisionomia bela e trivial tem a vaga intenção das aves de rapina. Toma umas atitudes de tédio e de indolência, semelhantes às que têm os viciosos de absinto.
Caminha com o seio erguido, com a pompa de quem arrasta atrás de si toda a atmosfera e o ar de todos os peitos. Dança com os movimentos melodiosos que teria Juno se tivesse passado dois séculos a frequentar os casinos. Tem uma bela fragilidade muscular, um apetite vasto e um amor cálido das bebidas. As indústrias têm maculado aquele corpo: o gás amoleceu-lhe o olhar, os espartilhos de Birmingham desvaneceram-lhe o modo feminino. Pelo materialismo idiota é muito inferior aos ídolos egípcios, pela originalidade risível do vestuário superior às caricaturas chinesas.
É toda a síntese do nosso tempo: é a entrevista grotesca dos erros modernos. O olhar metálico é o símbolo do dinheiro. A boca é nervosa e móbil, os dentes acerados e de um branco morto: é a difamação, a intriga, a palavra fútil que corrói as construções da alma.
A mão delgada, flexível, magra, adunca, significa a agiotagem, o materialismo avaro e covarde.
Onfália Benoiton é a tragicomédia da afectação e da vaidade. Para modelar a sua alma seria necessário inventar uma lama. Colocada inferiormente, prende-se a todas as ideias oficiais, aristocracia, realeza, elegância, moda, com a mesma insistência violenta e vaidosa com o que o pó se prende ao veludo.
Tem uma maneira insultante e vã de fazer os seus vestuários — de tal sorte que o seu chignon parece uma carranca feita ao céu, e as suas caudas beijos dados à lama. A sua existência é pintar-se, fazer-se, trocar friamente recepções e diálogos, transfigurar o vestuário numa celebração misteriosa, decorar a comédia das modas, passear ostentosamente, errar pelas óperas, pelos casinos, pelos saltimbancos, dançar, envolver-se no combate da beleza e da seda, dar-se à fadiga dissolvente do lucro. Eu pôr-lhe-ia por epitáfio: Aqui jaz o ruído de um bocejo.
Tem todos os prejuízos do seu tempo. Tem o espírito das pequenas maquinações femininas, das ironias dolorosas, dos escárnios inteligentes. Adora os romances dramáticos de sangue, pelo mesmo motivo por que as damas romanas aplaudiam a morte dos gladiadores. Todos os dias as suas belezas lhe dizem: “Oh Cesaréia, os que vão morrer saúdam-te!” Prefere Leotard a Shakespeare — isto contém um caráter.
Copia o modo de falar das actrizes. Há só uma coisa que a distrai de admirar os saltimbancos, é ter de pensar na libré dos lacaios.
Para ela a Natureza é uma decoração; a alma uma impertinência dos pobres; o cemitério uma infâmia de Deus.
Assim vive na comédia do luxo, radiosa, contente, idiota, desfolhando o corpo, pensando nos vestuários, criando enfeites, até que Deus, por entre as névoas do cemitério, lhe mostre o último figurino, o supremo adorno sinistro — a mortalha à Benoiton!
A segunda carta, escrita por A., o melhor de nós todos, espírito criador e lógico, fala largamente do escritor Estevão Basco:
“Estive ontem”, dizia a carta de A., “com Estevão Basco. É uma alma justa e sã, mas tímida e apaixonada, forte para o sacrifício, cheia de nobres morais latinas, mas idealista e nervosa, tendo assim toda a antiga virtude estoica com muitos dos dolorosos erros modernos.
Este homem, antes que os seus livros fossem comentados e estudados, antes de ser a voz alta e sensata para que correm todos os espíritos novos, como para a lição visível das almas, antes de ter o seu jornal incisivo, livre, cheio de pensamentos e de revelações — teve uma existência de miséria, numa trapeira, sem sol, sem repouso, sem amizades purificadoras. Sentiu, uma a uma, as sete dores que a vida costuma cravar nas almas possuídas do ideal.
Criança, tinha sofrido todas as tristezas incisivas da escola, espécie de prólogo chorado sobre a tragicomédia humana: mais tarde, nos positivismos da família, tinha sentido aquela luta íntima do ideal e do real, que deixa no espírito eternas feridas, que sangram e que alumiam. Depois, tinha vivido, escuramente, no pequeno jornalismo, caricatura fluida da vida cerebral, e ali tinha sofrido a intriga, a difamação, o escárnio e a fome. Muito tempo o seu corpo chorou pelo calor e pelo repouso, como a sua alma chorava pelo ideal e pela fé.
Hoje entre esta geração sonolenta, nocturna, inútil e fraca, homens entorpecidos pela retórica, pelos textos, pelas regras, que petrificam as livres palpitações do ser, que passam um traço negro sobre o ideal, que são os fechos da Bíblia humana…
Existe sobretudo em Nova Iorque, Paris, Londres e S. Petersburgo. É o último resultado das civilizações violentas. Aqui está traçado arrebatadamente, à maneira das pinturas de Goya. No entanto existe, idiota e inofensivo, e sobretudo inofensivo, sacristães da arte e os glorificadores de toda a víscera morta — ele, Estevão Basco, é o único que, voltado contemplativamente para as augustas claridades da ciência da arte, concentrado como um solitário antigo, vivendo pelo verdadeiro e pelo belo, vai lentamente, com dores resistentes, levando os entendimentos para o útil, para o justo, para o verdadeiro e para o racional.
Leu-me os seus estudos sobre a história e sobre a arte. E um livro poderoso e cheio de vida. Combate os petrificadores conservadores da história, cujo intento é imobilizar nos arquivos as atitudes superficiais dos reis e das cortes. Ele quer que a história seja a reconstrução da alma do passado, uma ressurreição humana. Não podem bastar à consciência crescente do homem as crónicas escassas e concisas de batalhas de diplomacias, de aparatos e de vingança. Estevão Basco pensa que, há muito, na história se tem afastado sempre para os últimos planos a grande figura do povo: e é ele, a sua alma ambiciosa e progressiva, as suas livres palpitações, as suas transfigurações e as suas misérias, que a história deve surpreender, através das literaturas e da arte. Sob este ponto de vista ele aceita na arte todas as escolas, ou manifestações de uma tendência espiritual, ou expressão de um estado de animalidade e de materialismo, ou resultado de uma doença idealista e nervosa (1830) — logo que eles representem fielmente a sua época e sejam os documentos das almas extintas. Lerás em breve este livro eloquente: provam-se as últimas folhas.
Mas o que fará a sua voz, cheia de equidade que lhe enche o peito neste tempo de instintos animais e de consciências fluidas?
Felizmente, a sua alma tem ficado pura e isolada na torre de marfim do ideal, no meio desta vida moderna, e as sacerdotisas do luxo e todos os errantes da ambição. E ele afasta-se sempre de todo este movimento sonoro e coberto de luz, onde há o vago rir descorado, a retórica da graça e a largura das saias e das consciências, para ir pensar, só, no silêncio da alma, na família, na maternidade, no sossego, e naquela união do homem e da mulher, limitada e divina — em que ambos estendem a alma sobre o mundo, para Deus passar por cima! Não te lembras daquelas estampas alemãs em que os pares silenciosos, que parecem ter a loucura elegíaca do amor, enquanto a quermesse ruge nos primeiros planos, se afastam e se perdem no fundo indefinido da folhagem — para se irem sentar à sombra do cruzeiro? Assim é ele. Estevão Basco todavia, na sua serenidade superior não faz a sátira do luxo e da meiga farsa dos estofos e das pedrarias. Ele, o grande obreiro desperto das ideias, apenas se ri alegremente dos dormentes do luxo. Síbaris nunca conseguiu mais do que provocar o riso protector de Esparta.
Para ele, não vale nada, como sintoma, este triunfo estéril e momentâneo do luxo.
Segundo ele, o luxo audacioso, violento, bárbaro, idiota, é apenas um pequeno desmentido grosseiro, dado à alma, tão risível como a vaidade de um sportman que quisesse raspar Deus da Bíblia.
Dizia-me ele que as saias das mulheres não podem, como receiam os juvenais da caricatura, ser o prólogo de uma decadência. Os sintomas das transformações espirituais não podem partir dos jornais de modas. Graças a Deus, um figurino ainda não é o cartaz de uma revolução. Existe sim um luxo animal, um apodrecimento calculado de tudo o que é Justiça e Beleza — mas isto é apenas uma doença da forma. A serenidade justa da alma nada tem com as pequenas borbulhas que vêm à pele. São furúnculos que se curam pela supuração. A bela saúde vital permanece na sua pureza e na sua força. E segundo Estevão Basco nada pode haver mais risível e mais inofensivo do que as tiranias que se vestem à militar, ou as decadências que se vestem à Benoiton.
E todavia Estevão Basco odeia aquelas mulheres, sem eletricidade e sem magnetismo, inertes e materiais, pendidas na fadiga trivial do aparato, que foram anuladas pelo luxo, cobertas da cabeça aos pés por um vestuário — epitáfio da graça.
Receio mais as tabuinhas do seu leque, disse-me ele, do que as grandes tábuas do esquife. Porque enfim, morrer é dissolver, é transformar-se: e transformar-se é ainda viver, ter seiva, força, sol e consciência. Mas prender-se a uma daquelas mulheres é assistir em roda de si à queda dolorosa e ao desvanecimento dos nossos sentimentos, das nossas ambições espirituais, das nossas ideias, das nossas criações. O seu amor é como uma mortalha: colada ao corpo, deixa ainda pressentir que a forma existe, e manifesta que a alma se dissipou. Diante destas mulheres, disse ele, sinto que em lugar do coração se me vem colocar um pedaço de cérebro. Evito-as. Não quero dar aos meus olhos o hábito da nódoa. Não quero que elas me esfarrapem a alma para fazer mortalhas às suas consciências. Assim diz. Realmente naquele olhar cheio de Natureza não fazem falta os rostos pintados. Naquela alma povoada de Deus, não fazem falta os figurinos.”
A terceira carta que eu abro para copiar, já triste, é de Jacques, um pobre artista, escultor medíocre, imitador dos gregos, que diz descaradamente os fatos desta história miserável:
“Estamos ainda surpreendidos, meu amigo, pelo desenlace desta farsa humana.
Estevão Basco tinha conhecido numa igreja Onfália Benoiton. Cantava-se o Requiem de Mozart. Era um ofício clerical em dia de mortos. Tinha sido dominado por aquela beleza escultural e nervosa, toda coberta de preto. Depois encontraram-se numa daquelas festas em que sempre me pareceu que as camélias, flores do tédio, olham idiotamente, sem alma, para as inquietações soluçantes do gás. Estevão Basco numa sala distante da multidão magnética das mulheres, fazia a sátira dos penteados disformes, das caudas e das cintas modernas onde pendem argolas. Estava com o escritor Sérgio, com o antiquário Salinas, com Sarça o cinzelador. Onfália Benoiton, que tinha escutado, pediu-lhe que lhe escrevesse uma palavra na vara branca do leque.
Estevão escreveu:
Oh, Satã tenebroso, trágico fulminado, Tu vencerás em mim o íntimo Deus bom, Não com as armas bíblicas com que bateste outros: Mas vindo unicamente vestido à Benoiton!
Onfália levou-o pelo braço para as iluminações feéricas, para a ação eléctrica dos espelhos, para a claridade magnética dos ombros nus, transformou-o com as suas exalações lânguidas, com as irradiações doentias do olhar, com aquela essência nervosa dos seus cabelos falsos, que deviam ser mais macios ao contacto que a pura plumagem da cabeça das rolas. Onfália Benoiton, com aquela voz abafada e velada que ela tem às vezes, que parece que lhe estão dando beijos no coração, disse a Estevão Basco que lhe limpasse o vestido, enlameado nas ruas do jardim. Estevão limpou o pó, a humidade e a lama!
Desde então, Estevão Basco tirou lentamente da alma, uma a uma, as santas ideias castas, a Justiça, a Beleza, a Razão, a Honra, para dar lugar à imagem coberta de sedas e de cabelos mortos de Onfália Benoiton.
Estevão, com o seu trabalho severo e robusto, dava o pão a três irmãs puríssimas e a sua mãe, velha, doente, triste, meia desvanecida em Deus.
As doces raparigas, meigas e delicadas, como as mais lindas virgens de ouro fino. Este tipo infelizmente não existe em Portugal. Devemos lamentar esta inferioridade absoluta.
Existe em Paris, em Berlim, na Itália, na Irlanda. É a última salvação das decadências. Aqui está traçado transparentemente à maneira de Ary Scheffer. No entanto existe, sublime e criador — sobretudo criador, que se pintavam nos livros de legendas, tinham vestidos de cassa, e todo o dia trabalhavam nos seus castos paraísos, cheias das vozes dos canários. Ele passeava sempre com elas, nas alamedas silenciosas, como os antigos sábios das gravuras flamengas. Desde então Estevão Basco nunca mais passeou nas alamedas. Desamparou a casa, a família e a alcova cheia da celebração do estudo. Perdido entre as despesas do luxo deixou ao abandono a mãe e as três irmãs. Não havia dinheiro em casa.
Elas, as tristes silenciosas, bordavam, costuravam, vendiam ramos aos floristas.
No Inverno, não havia lume. Nem sempre havia pão. Roxas de frio, esfomeadas, cosiam e choravam. Foram viver para uma trapeira, batida do vento e da chuva. Ali morreu a mãe, aquela doce alma dolorosa, numa tarde, ao escurecer. O Sol talvez, ao ir-se, levou aquela alma por engano, como uma pureza e uma virtude da sua luz. Ninguém tão amante, tão triste e tão casta. Foi enterrada no cemitério, entre a erva comum, com uma cruz. Talvez agora sobre aquela cruz cantem rouxinóis.
As raparigas tinham cabelos magníficos, indomáveis e compridos: venderam os seus cabelos. Estevão, com Onfália Benoiton, errava pelas óperas, pelos casinos, pelas salas, entre as sedas, os tules e as festas. Renegou as fortes e sãs amizades do estudo e da ciência. O seu jornal acabou desamparado e espoliado. Fez contratos terríveis com os editores para livros futuros de crítica e de moral. Mas não escrevia, não pensava, não vivia pelo espírito.
Enfim casou com Onfália Benoiton. Tiveram dois anos carnais e contentes. Por fim, ele tinha assinado letras, foi penhorado nas mobílias. Voltou ao pequeno jornalismo. Criou uma folha de difamação. Insultava a tanto por linha. Veio-lhe à alma a esterilidade. Embranqueceram-lhe os cabelos. Onfália Benoiton andava de noite com um vestido de chita. Estevão, esmagado, desesperado, vendeu-se de corpo e de alma a um jogador terrível — Mincoso. Roubou. Voltaram os magnetismos do luxo. Onfália namorou-se do cinzelador Sarça, espírito frio e retórico. Depois deu- se ao tenor Vidalleti.
Estevão soube. Tinha um materialismo sem dignidade. Comprou- lhe a fidelidade com vestidos. Estevão dava o vestido: ela cedia o homem. Voltou a miséria. A casa de jogo foi dispersa pela polícia. Veio a fome. Estevão escrevia cantigas obscenas para um editor de almanaques imbecis e infames. Um dia encontrou Onfália com um saltimbanco. O saltimbanco atirou-lhe dinheiro. Estevão contou-o e saiu assobiando.
Um dia encontrou a irmã que era florista e tinha casado com um homem trigueiro do trabalho, alma sã e vivificadora como o Sol. Estevão pediu-lhe para pão. “Tu não me desprezas ao menos, não é verdade?”, disse ele. A irmã olhou-o tristemente. “Não é verdade que me não desprezas?” — “Muitíssimo”, disse ela. Onfália Benoiton fugiu com o jogador Mincoso. Estevão foi viver para uma trapeira, com um coveiro e com um palhaço. Adoeceu. Durante a febre o coveiro cosia os seus botões, cantando o ofício dos mortos: o palhaço para estudar os saltos pulava por cima da enxerga de Estevão. Ele tinha então uma amante, corista de um casino. Ela ia todos os dias dar-lhe um caldo. O coveiro e o saltimbanco às vezes não vinham à trapeira durante dias. Uma dessas vezes a corista não veio. Estevão tinha sede. Chamou. A água estava em cima de um vão do telhado, numa bilha. Ele chorava de febre, de sede e de tristeza. Anoiteceu.
No pátio da casa havia uma laranjeira. De noite, no silêncio, ele ouviu cantar um rouxinol. Teve a visão da sua vida de estudo e de serenidade. Chorava de sede. Ergueu-se tremendo e arrastou-se: no primeiro degrau da escada do vão, caiu. O sangue caía-lhe da testa e entrava-lhe na boca, com as lágrimas. Ao outro dia estava quase a expirar.
Melhorou todavia. Andou pedindo de porta em porta, com os antigos orgulhos, que lhe dessem o pão do trabalho. Ninguém lhe deu nada.
Um dia encontrou um dos antigos camaradas das festas, a cavalo com outros. O camarada do luxo veio para ele e atirando-lhe o chapéu ao chão, com a ponta do chicote: “Estás calvo, pobre homem”, disse, rindo. “Tens tu fome?” — “És bem curioso”, disse Estevão voltando as costas, sereno. E foi-se, assobiando.
A corista levou-o para o teatro. Ganhava ali o pão, fazendo de urso numa mágica.
Caíram-lhe os dentes. Andava roto, com a barba crescida, lívido, e um casaco preto, diáfano, lustroso, colado à magreza do corpo.
Conheceu então uma linda rapariga de treze anos, clara e loura, que pedia na rua.
Estevão deu-lhe um lugar na trapeira. Tomou-lhe um lugar puro e todo paterno. Para se embrutecer começou a beber aguardente. Tinha a vista debilitada, trazia uns óculos escuros; tinha feridas nos ouvidos e trazia-os cheios de algodão. Vivia fazendo cantigas grosseiras, para o velho editor dos almanaques. A rapariguinha adoeceu. Era a fome, a miséria e a febre. Ele velava junto dela, triste, chorando, e compondo os versos imundos.
À rapariga piorava. Tremia de frio na enxerga. Ele procurava aquecê-la com o hálito: a pobre miserável, que tinha ainda a sensibilidade e o olfato, fugia com o rosto, porque o hálito era mau. A rapariga morreu.
Nesse dia ele tinha bebido longamente na taverna. Quando subiu à trapeira e viu a triste, inerte, fria e hirta, deu com a ponta do pé no corpo inanimado, gritando: “Pouch! coisa morta!” Passado pouco tempo voltou-lhe a consciência da vida. Caiu numa tristeza dolorosa. Veio-lhe uma saudade profunda da rapariga, morta na trapeira. Ia vê-la ao cemitério, à vala dos pobres onde ela estava. Como ela não gostava que ele bebesse, e ele se lembrava das lágrimas dela, não voltou às tavernas de noite.
Ia levar rosas e rainúnculos ao cemitério, ao lugar onde ela apodrecia debaixo da erva. Era necessário tirá-lo com violência. Chorava pela fome que ela tinha tido, pelo frio com que ele tinha estremecido.
Ficava junto do muro do cemitério, de noite, ajoelhado, perdido numa saudade imensa como a noite e mais doce que a Lua.
Dormia pelos adros e pelos portais. Tinha um companheiro, um cão, com quem se embrulhava na mesma manta. O cão morreu. Ele adoeceu e foi recolhido ao hospital.
Ali não era o escritor Estevão Basco, era o nº 27 da sala de Santo Amaro. Uma madrugada, teve um estremecimento e morreu. Ao outro dia de tarde foi levado para a vala dos pobres numa tumba da Misericórdia.”
Eça de Queiroz, in "Onfália Benoiton "  de " Contos", edição crítica preparada por Marie-Hélène Piwnik, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, Março de 2009, pp. 95-106