quinta-feira, 14 de março de 2024

Carta ao Pai

 
Carta ao Pai
por Franz Kafka
                                                                             Silésia
“Queridíssimo pai,
Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente, de forma mais ou menos lógica. E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolhem diante de ti e porque, enfim, a importância do assunto ultrapassa, de longe, a minha memória e o meu entendimento. As coisas sempre se te afiguraram muito simples, pelo menos a avaliar pelo que disseste à minha frente e, indiscriminadamente, à frente de muitos outros. Parecia que, para ti, era qualquer coisa do género: trabalhaste arduamente toda a vida, sacrificaste tudo pelos teus filhos, sobretudo por mim, vivendo eu, por isso, «à grande e à francesa», tive toda a liberdade para estudar o que quisesse, nunca tive de me preocupar com o sustento, nem ter outras preocupações, de resto; nunca exigiste gratidão em troca, sabes como é a «gratidão filial», mas pelo menos alguma amabilidade, algum sinal de simpatia; em vez disso, desde sempre me escondi de ti, no meu quarto, no meio dos livros, no meio de amigos loucos, no meio de ideias extravagantes; nunca falei contigo abertamente, não fui ter contigo ao templo, nunca te fui visitar a Franzensbad, nem nunca, de resto, tive espírito de família; não me preocupei com o negócio nem com outros assuntos teus, empurrei-te para a fábrica para depois te abandonar; defendi a Ottla na sua teimosia e, enquanto por ti não mexo um dedo (nem sequer um bilhete para o teatro te ofereço), pelos estranhos faço tudo. Se resumires o teu juízo a meu respeito, dirás que até não me acusas de nada de propriamente indecente ou perverso (com excepção, talvez, dos meus últimos planos de casamento), mas de frieza, alheamento, ingratidão. E, na verdade, censuras-me como se a culpa fosse minha, como se eu, com uma volta ao leme, por exemplo, tivesse podido mudar tudo, enquanto tu não tens a mínima culpa, a não ser a de teres sido bom de mais para comigo.
Só considero correcta esta tua concepção habitual na medida em que também eu acredito que estás completamente inocente quanto ao nosso afastamento. Mas também eu estou completamente inocente. Conseguisse eu fazer-te admitir isto, não digo que fosse possível uma vida nova, pois já estamos velhos de mais para isso, eu fazer-te admitir isto, não digo que fosse possível uma vida nova, pois já estamos velhos de mais para isso, mas uma certa paz, não o fim, mas talvez um abrandamento das tuas constantes acusações.
Mas, curiosamente, até tens uma certa ideia daquilo que eu quero dizer. Disseste-me, por exemplo, há pouco tempo: «Sempre te quis bem, mesmo quando parecia não agir contigo como os outros pais, precisamente porque não sou capaz de fingir como os outros.» Ora eu, pai, nunca duvidei, em geral, da tua benevolência para comigo, mas considero a observação incorrecta. Não consegues fingir, é certo, mas querer afirmar, apenas nesta base, que os outros pais fingem ou é uma atitude dogmática que não admite discussão, ou — e essa é, de facto, a minha opinião — a expressão velada de que entre nós algo não está bem, para o que também tu contribuíste, embora sem culpa. Se, na verdade, pensares assim, então estamos de acordo. Claro que não quero dizer que aquilo que sou se deve apenas à tua influência. Seria um grande exagero (e eu até tenho tendência para estes exageros). É bem possível que, mesmo se tivesse crescido completamente fora da tua influência, não conseguisse vir a ser um indivíduo a teu contento. Ter-me-ia tornado, talvez, um indivíduo mais fraco, mais ansioso, mais indeciso, mais inquieto, nem um Robert Kafka, nem um Karl Hermann, mas um ser completamente diferente daquilo que sou, e teríamos conseguido darmo-nos às mil maravilhas. Ter-me-ia sentido feliz por te ter como amigo, chefe, tio, avô, e até mesmo (se bem que com alguma reserva) como sogro. Só que como pai foste forte de mais para mim, sobretudo atendendo a que os meus irmãos morreram de tenra idade, e que só muito mais tarde viriam as minhas irmãs, pelo que tive de aguentar o primeiro embate completamente sozinho, sendo eu fraco de mais para isso. Compara-nos os dois: eu, para me exprimir de forma breve, um Löwy com um certo fundo dos Kafkas, mas que, em vez de ser impelido pela vontade de viver, de negociar e de conquistar dos Kafkas, sinto antes o aguilhão dos Löwys que, da forma mais oculta, mais tímida, actua noutro sentido, levando, muitas vezes, ao fracasso total. Tu, pelo contrário, um autêntico Kafka em força, saúde, apetite, voz sonante, dotes oratórios, satisfação consigo mesmo, sobranceria, perseverança, presença de espírito, conhecimento dos homens, uma certa generosidade, naturalmente também com todos os defeitos e fraquezas inerentes a tudo isto, nos quais te precipitas pelo teu temperamento e, muitas vezes, pela tua irascibilidade. Talvez não sejas bem um Kafka na tua mundividência, tanto quanto posso comparar-te com os tios Philipp, Ludwig e Heinrich. É estranho, também neste caso não vejo as coisas com toda a clareza. Todos eles eram mais joviais, mais vivos, mais espontâneos, mais estouvados, menos severos do que tu. (Nesse aspecto, de resto, herdei muito de ti e administrei bem a herança, sem, no entanto, ter na minha natureza o necessário contrapeso como tu tens.) Mas, por outro lado, a este respeito, passaste por diversos períodos, talvez fosses mais jovial antes de os teus filhos, especialmente eu, te desiludirem e atormentarem lá em casa (com estranhos tu eras diferente) e também talvez te tenhas tornado novamente mais jovial, já que os netos e o genro voltam a dar-te algum daquele calor que os filhos, com excepção da Valli talvez, não foram capazes de te dar. Em todo o caso, éramos tão diferentes e, nessa diferença, tão perigosos um para o outro que, se alguém tivesse querido prever de que modo eu, a criança em lento desenvolvimento, e tu, o homem feito, iríamos comportarmo-nos um com o outro, poderia supor que irias simplesmente aniquilar-me, até que nada restasse de mim. Tal não aconteceu, a vida não se deixa calcular, mas talvez tenha acontecido algo pior. Insisto, porém, em pedir-te para não esqueceres de que de forma alguma acredito que tenhas a mínima culpa. Agiste comigo como tinhas de agir, só que devias deixar de considerar uma maldade especial da minha parte o facto de eu ter sucumbido a essa actuação.
Eu era uma criança ansiosa mas, decerto, também obstinada, como são as crianças; é verdade ainda que a mãe me mimava, mas não posso crer que eu fosse particularmente difícil de levar, não posso crer que uma palavra meiga, um suave dar-a-mão, um olhar bondoso não tivessem conseguido de mim tudo quanto se quisesse.”
Franz Kafka, in  Carta ao pai,  Relógio D’Água Editores, 2004,  pp.7-11 
Franz Kafka ,(1883-1917)
Sobre o autor:
“Franz Kafka nasceu em 1883, em Praga, no seio de uma família da pequena burguesia judia de expressão alemã. Começou a escrever os seus primeiros textos em 1904. Em 1906, terminou os seus estudos universitários, doutorando-se em Direito. Em vida, publicou apenas sete pequenos livros e alguns textos em revistas. De entre estes livrinhos e textos, destaca-se A Metamorfose, que veio a lume em 1915. Esta pequena novela viria a afirmar-se como uma das suas obras de referência. A 3 de Junho de 1924, não resistindo à tuberculose diagnosticada em 1917, morre em Kierling, a poucos quilómetros de Viena, deixando três romances fragmentários, que seriam publicados postumamente pelo seu amigo e testamenteiro Max Brod: O Processo (1925), O Castelo (1926) e América (1927), a que se seguiram volumes com contos, cartas e diários. A sua obra, centrada no homem solitário moderno, refém de uma vida absurda, tornar-se-ia uma das mais influentes do mundo literário do século XX.”

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