quinta-feira, 21 de março de 2024

No Dia Mundial da Poesia

 
Luís Represas, Ricardo Ribeiro , Ser poeta (Live)
  
Há no mundo uma conjura geral e permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes da ordem de perseguir a outra. 
                 Gustave Flaubert , Correspondência

Ser Poeta
Ser Poeta é ser mais alto, é ser maior
Do que os homens! Morder como quem beija!
É ser mendigo e dar como quem seja
Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!

É ter de mil desejos o esplendor
E não saber sequer que se deseja!
É ter cá dentro um astro que flameja,
É ter garras e asas de condor!

É ter fome, é ter sede de Infinito!
Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim…
É condensar o mundo num só grito!

E é amar-te, assim, perdidamente...
É seres alma, e sangue, e vida em mim
E dizê-lo cantando a toda a gente!

Florbela Espanca,in Sonetos de Florbela Espanca. Mem Martins: Edições Europa-América. 1985i”

Tempo de Poesia

Todo o tempo é de poesia.

Desde a névoa da manhã
à névoa do outro dia.

Desde a quentura do ventre
à frigidez da agonia.

Todo o tempo é de poesia.

Entre bombas que deflagram.
Corolas que se desdobram.
Corpos que em sangue soçobram.
Vidas qu'a amar se consagram.


Sob a cúpula sombria
das mãos que pedem vingança.
Sob o arco da aliança
da celeste alegoria.
 
Todo o tempo é de poesia.
 
Desde a arrumação do caos
à confusão da harmonia.
António Gedeão, in Poesias Completas , Sá da Costa Editora, p.19
 

Liberdade

O poema é
A liberdade

Um poema não se programa
Porém a disciplina
— Sílaba por sílaba —
O acompanha

Sílaba por sílaba
O poema emerge
— Como se os deuses o dessem
O fazemos
Sophia de Mello Breyner Andresen, in  O Nome das CoisasAssírio&Alvim
 
O Poeta  é um fingidor
 
Exprimo o que já não sinto.
Escrevo o que já pensei.
Em arte , se sofro, minto:
registo o que já não sei.
 
Fazer é ter já sofrido
o que hoje não é sofrer.
já não faz nenhum sentido,
a dor dita no escrever.
                                            
Eu finjo que já sofri,
com arte que sou capaz,
aquilo que eu vivi,
no tempo de ser rapaz.
 
Viver é um luxo passado,
perdido, já sem sentido,
que eu terei recuperado
no texto agora mentido.
 
O poeta é um fingidor:
finge tão completamente,
que finge de fingidor,
no momento em que mente.
                      Londres, 15.05.82
Eugénio Lisboa, in a matéria intensa, Editora Peregrinação, Suíça, p 52
 

Sobre um poema

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
– a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

– Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.
– E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
Herberto Helder, in Poemas Canhotos,  Porto Editora

Palavra puxa palavra,uma ideia traz outra,
e assim se faz um livro,
um governo, ou uma revolução,
alguns dizem mesmo que assim
é que a natureza compôs as suas espécies.”
Machado de Assis,in Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884. 

A um Jovem Poeta

Procura a rosa.
Onde ela estiver
estás tu fora
de ti. Procura-a em prosa, pode ser

que em prosa ela floresça
ainda, sob tanta
metáfora; pode ser, e que quando
nela te vires te reconheças

como diante de uma infância
inicial não embaciada
de nenhuma palavra
e nenhuma lembrança.

Talvez possas então
escrever sem porquê,
evidência de novo da razão
e passagem para o que não se vê.
Manuel António Pina, in  “Todas as Palavras”, Assírio&Alvim

Apontamento em Voo

Não conseguiu o tempo
do poema
coincidir-lhes voo,
um vento atrás:

ao das jovens cegonhas
pelo céu,
lisas e puras

Só tentar-lhes compasso
em arremedo

E o passo arrastado
do poema
ficou-se nesse atraso:

o motor raso,
os dedos sob a asa —
do avesso

rasgando, sem rasgar,
o dúctil ar
da folha —
Ana Luísa Amaral, in “O Olhar Diagonal das Coisas”, Assírio&Alvim

Cinco Palavras Cinco Pedras

Antigamente escrevia poemas compridos
Hoje tenho quatro palavras para fazer um poema
São elas: desalento prostração desolação desânimo
E ainda me esquecia de uma: desistência
Ocorreu-me antes do fecho do poema
E em parte resume o que penso da vida
Passado o dia oito de cada mês
Destas cinco palavras me rodeio
E delas vem a música precisa
Para continuar. Recapitulo:
desistência desalento prostração desolação desânimo

Antigamente quando os deuses eram grandes
Eu sempre dispunha de muitos versos
Hoje só tenho cinco palavras cinco pedrinhas
Ruy Belo, in “Todos os poemas”, Assírio&Alvim


Vestígios

noutros tempos
quando acreditávamos na existência da lua
foi-nos possível escrever poemas e
envenenávamo-nos boca a boca com o vidro moído
pelas salivas proibidas – noutros tempos
os dias corriam com a água e limpavam
os líquenes das imundas máscaras

hoje
nenhuma palavra pode ser escrita
nenhuma sílaba permanece na aridez das pedras
ou se expande pelo corpo estendido
no quarto do zinabre e do álcool – pernoita-se

onde se pode – num vocabulário reduzido e
obsessivo – até que o relâmpago fulmine a língua
e nada mais se consiga ouvir

apesar de tudo
continuamos a repetir os gestos e a beber
a serenidade da seiva – vamos pela febre
dos cedros acima – até que tocamos o místico

arbusto estelar
e
o mistério da luz fustiga-nos os olhos
numa euforia torrencial
Al Berto, in “O Medo”, Assírio&Alvim

Pacto
Do pacto que o Verbo celebroiu comigo
há sempre um artigo que sem subsiste
 
Deixar que as palavras apenas exprimam
o que sem palavras tentava exprimir-se
 
Deixá-las que rompam da noite da vida
para que suspendam a morte do dia
David Mourão-Ferreira, Os remos,  in Obra Poética (19448-1995), Assírio & Alvim, 2019, p 624
 
Soneto do reencontro                                     
 
Na  primavera  tu  voltaste de mansinho
finda a tempestade, surgiste na bonança
me  conjugando o verbo  da esperança
num  íntimo  gesto  de  lírico carinho.
 
Tu foste  meu fuzil, o meu canto guerreiro
a  voz  peregrina  acesa  no  meu  peito,
ensina-me  a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
 
Combatente e amordaçada em meu destino
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta  anos  se  passaram,  dia-a-dia.
 
Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas  só  agora  eu  te encontrei de novo
para  nunca  mais  perder-te... ó poesia.                                                                                                               
                          Curitiba, dezembro de 2002
Manoel de Andrade, in Cantares , Escrituras Editora, São Paulo, Brasil
 
Alice Neto Sousa

Poeta

Eu era pequena,
Escola primária,
Inocente,
Mas curiosa nas palavras.
Peguei nos lápis,
Aqueles,
Com todas as paletas de cores,
Amarelo-torrado,
Azul-marinho,
Cor…
Com o lápis na mão,
Sem nem esconder a minha confusão,
Olhei para o lápis, e para mim,
Que eu ainda era da altura de a língua afiar,
Tocar os sinos presos na garganta,
Dizer o que sinto e me espanta:
— Professora.
— Sim.
— Que raio é um lápis cor de pele?
Levei uma reprimenda, uma criança de tão tenra idade
A questionar a autoridade,
E olhava para o lápis,
Olhava para a minha pele,
Olhava fixamente para aquele lápis cor… de pele.
Poeta.
Naquele dia, desisti de falar sobre unicórnios
E fazer citações,
Porque ser-se poeta é falar de emoções,
Mas bem podia citar Luís de Camões, Fernando Pessoa
Sem dizer um poeta preto.
Pensei em então citar Martin Luther King ou Nelson Mandela
Só para ficar bem na tela.
Ignorar o vazio do mundo,
Fazer dos ouvidos mudos,
Porque preferem um poema com o sol no canto do papel,
As nuvens pintadas a azul,
Sem a dor no fundo.
Falar do que incomoda?
Andar a afiar a língua,
O que é que isso importa?

Porque naquele dia fizeram de mim uma
Poeta cor de pele,
De lápis cinza aguçado acastanhado,
No nevoeiro dos mares
Dantes e sempre navegados,
A minha língua é o lápis
Onde escrevo a cor dos meus sentimentos,
Quem vai perder tempo a escrever versos de amor
Com estes tempos, estas tempestades, estes sismos, ismos
E eu sei, podia ser menos uma poeta a falar sobre racismo
Mas preferiram o quê?
Que em vez do lápis a carvão pegasse uma arma na mão?
Que caísse em tantas outras estatísticas, noticiários?
Que me escondesse por detrás dos armários?
Que nunca tivesse chegado a terminar o secundário?

“Falas tão bem português”, fecho os olhos a engolir todos os clichês.
“Mas não ouves kizomba, ah, claro que sabes dançar”, dizem enquanto meto os Arctic Monkeys a dar.
E já se sabe, quanto mais talento, mais se tolera a cor, porque a Beyonce pode ser preta afinal de contas o que importa, é o interior.

Ouço as palavras a fazer ricochete, 
Num corpo em bala,
Eu vejo,
De sol a sol,
Mantemo-nos fortes,
Que as mães têm calos de pensar,
Os pais as mãos a esbranquiçar.

Fazemo-nos de fortes,
Que mais poderíamos ser?
Numa sociedade de moldes,
A fingir entender,
A rir no eco a seguir,
A pensar que Black Lives Matter é mais um post para curtir.

Mas Muxima Uamiê está sofrendo,
Respira,
Mãos ao alto, levanta a poesia,
Esta poeta cor de pele,
já pintou a carta de alforria.
Alice Neto Sousa


Poesia e oralidade
por Manoel de Andrade
"A Poesia, ao longo do tempo, foi perdendo a nítida feição com que nasceu: a oralidade. Conta-se que há 2.500 anos, o poeta grego Simónides de Ceos — célebre pelo hino que compôs aos heróis das Termópilas e que treinou sua memória para correr a Grécia declamando os poemas de Homero, de Safo e de poetas que o antecederam — encontrou um dia seu discípulo e conterrâneo Baquílides, escrevendo suas odes sobre uma placa de cera e o acusou de trair a poesia cuja magia e encanto, dizia, estava em sua expressão declamatória e não na palavra escrita. “A Poesia, afirmava ele, é uma pintura que fala”. A poesia oral consta dos mais antigos registros literários da Grécia micênica e embora, no terceiro mundo, ainda se encontrem hoje culturas ágrafas, cuja expressão poética se manifesta apenas pela oralidade, é necessário lembrar que a literatura nasce da littera(letra), como pressuposto da escrita e da leitura. Assim, um fenômeno não pode excluir o outro e é tão importante valorizar a tradição oral da poesia, quanto reconhecer que sem a escrita, parte de todo o seu acervo histórico se perderia com o tempo. Nesse sentido tanto a poesia escrita, como a vocalizada ou dramatizada são expressões por onde permeia a mágica dimensão poética. Nas antigas culturas de tradição oral os poetas eram tidos como os receptores e transmissores do Conhecimento e reverenciados como os guardiões da Sabedoria e por isso considerados tão importantes como os reis, sendo que os reis podiam ser mortos, mas matar um poeta era considerado um sacrilégio. O premiado poeta nicaraguense Ernesto Cardenal, em seu notável Prólogo a la antología de la poesía primitiva, afirma que “ el verso es el primer linguaje de la humanidade. Siempre ha aparecido primero el verso, y después la prosa; y ésta es una espécie de currupción del verso. En la antigua Grécia todo estaba escrito en verso, aun las leyes: y en muchos pueblos primitivos no existe más que el verso. El verso parece que es la forma más natural del lenguaje”. (…) Nós, os poetas, temos plena consciência de que não podemos mudar o mundo, embora nosso DNA seja feito de sonhos. Por isso somos tão poucos e estamos cada vez mais sozinhos. Quem sabe por sermos os herdeiros solitários de tantas utopias!? A pós-modernidade aniquilou o homem. Tentou matar Deus, tentou matar a Verdade, está tentando matar a Arte e a Poesia. Na década de 70 perguntaram a Pablo Neruda o que aconteceria com a poesia no ano 2000. Ele respondeu que, com certeza, não se celebraria a morte da poesia. Que em todas as épocas deram por morta a poesia, mas que ela está sempre ressuscitada e que parece ser eterna. O grande poeta e revolucionário argentino Juan Gelman, prémio Cervantes de 2007, afirma que “Lo extraordinário es como la poesía, pese a todo, a las catástrofes de todo tipo, humanas, naturales, viene del fondo de los siglos y sigue existiendo. Ese es el gran consuelo para mí. Va a seguir existiendo hasta que el mundo se acabe si es que se acaba alguna vez”. (…) A poesia está inscrita no âmago da alma humana e ela é de todos os tempos. Desde Homero, há 3.000 anos, cantando as peripécias de Ulisses e os combates de Aquiles; desde Camões cantando a saga dos grandes descobrimentos, até Castro Alves cantando a liberdade para os escravos e Drummond de Andrade, dizendo-nos, poeticamente, que há sempre “uma pedra no caminho” de nossas vidas. A palavra, na poesia, foi e será sempre a mais bela forma de resistência contra um mundo desumano, e um profético aceno para um tempo melhor. (…) Eis porque nós, os poetas, sentimos que só resta a nossa própria plenitude, esse misterioso monólogo com a história e o incognoscível, porque habitamos o território do encanto e do amanhecer. Cantamos porque vivemos dessa partícula de sonho que nos sobrepõe ao real, como disse Ingenieros. Cantamos porque acreditamos na missão imperecível da beleza, apesar de todo esse desamparo e essa perplexidade ante um mundo cada vez mais violento e cruel. Cantamos “porque a canção existe” e essa é a nossa fortuna. Cantamos para dizer nossas verdades e repartirmo-nos em cada verso. Cantamos porque cada palavra, cada poema nosso é uma esperança de busca e de encontro, um mágico roteiro para a liberdade, uma
proposta de diálogo com o mundo, um gesto de amor para legitimar a condição humana e também nossa gota de lirismo para salvar a poesia de sua angustiante agonia. (...)”
Manoel de Andrade, poeta brasileiro, em ensaio publicado no Blog Palavras todas as palavras, Novembro 4, 2008


O Dia Mundial da Poesia comemora-se anualmente, a 21 de Março. A data foi instituída  na 30.ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), em 1999. O objectivo é salientar a importância da poesia enquanto manifestação artística comum a toda a Humanidade. Celebra-se também a criatividade, a pluralidade linguística e cultural e promove-se o ensino e declamação da poesia.

Saiba mais:

Dia Mundial da Poesia | Centro Cultural de Belém


10 ideias para celebrar o Dia Mundial da Poesia

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