quarta-feira, 6 de setembro de 2023

AMÉRICA, AMÉRICA!

 
AMÉRICA, AMÉRICA!
por Eugénio Lisboa
 
                  Eu tremo pelo meu país quando penso que Deus é justo.
                                                Thomas Jefferson
 
O poeta Heinrich Heine disse um dia esta coisa tremenda: “Quando, à noite, penso na Alemanha, perco o sono.” Tinha razão e o que depois foi acontecendo na Europa mostrou que o poeta era também um muito credível profeta. Thomas Jefferson, que cito em epígrafe, parece também ter perdido o sono, ao pensar numa justiça transcendente que porventura visitasse o seu país. Ele lá sabia. Jefferson foi, como se sabe, um estadista americano, advogado, diplomata, arquitecto, filósofo e veio a ser o terceiro Presidente dos EUA, sendo hoje considerado um dos dez melhores, no cargo. Foi também o fundador da Universidade da Virgínia. Na sua redacção da Declaração de Independência condenou o negócio da escravatura e, em 1807, promulgou uma lei proibindo a importação de escravos, apesar de ele próprio ter sido proprietário de escravos e ter tido vários filhos de uma escrava. Eis um dos sinais das profundas contradições que roem as entranhas deste país poderoso e altamente criativo. O qual, seja dito, em abono da verdade, é o primeiro, na sua arte do cinema e da literatura, a fazer uma implacável crítica aos seus deslizes e mesmo aos seus crimes, dentro e fora de fronteiras. Um só exemplo: Archibald Cox, advogado, Professor de Direito, advogado geral do governo de Kennedy e, mais tarde, Procurador Especial, no escândalo Watergate, não hesitou em fazer esta avaliação contundente do seu próprio país: “Confesso que não consigo compreender como podemos intrigar, mentir, fazer batota e cometer assassinatos no estrangeiro e permanecermos humanos, respeitáveis, dignos de confiança e levados a sério, no nosso país.” Outro exemplo é o do muito conhecido Robert Audrey, dramaturgo e ensaísta, no campo das ciências sociais, que deixou dois clássicos – AFRICAN GENESIS e THE TERRITORIAL IMPERATIVE – e fez esta avaliação dolorosa do comportamento americano: “Na América, imediatamente depois da Segunda Guerra Mundial, o antissemitismo atingiu cumes nunca antes atingidos, apesar de todas as contribuições nazis para a nossa consciência universal; e a literatura desse período dar-me-á razão.” Não só a literatura, mas também o cinema, que deixou poderosos testemunhos desse ódio milenar.
É desta América, grande na literatura, no cinema, na ciência e na tecnologia, nas artes plásticas, na astronáutica, na música, que nos vêm também, para esta Europa, que logo as absorve, gulosamente, as maiores idiotices ligadas ao politicamente correcto, autoproclamado defensor dos direitos e sensibilidades das minorias. Aí, vale tudo. Os maiores desconchavos e atropelos passam a ser alvo do maior carinho. A discriminação positiva, como solução barata e expedita de um problema real que requer solução mais profunda e dispendiosa, a “purificação” dos textos clássicos feita por leitores “sensíveis”, a introdução obrigatória, nos thrillers, de comandantes de polícia negros a darem ordens firmes a brancos obedientes, que são amigos do coração de uma raça que, aparentemente, nunca os incomodou (qualquer dia, temos um Hamlet negro e filho de um governador negro do Mississipi, amante de uma americana loira e irmã de um Laertes paquistanês) – tudo isto é o pão que quotidianamente nos chega da América de Mark Twain, de Henry James, de O. Henry, de Eugene O’Neill, de Faulkner, de Dorothy Parker e Robert Benchley, de Tennessee Williams, de Hemingway, de Phillip Roth, que devem estar a dar voltas no túmulo a pensarem no que esperam as suas obras, entregues às mãos dos “purificadores” castrados. Vou só dar um exemplo muito recente e termino. Um muito conhecido editor americano recusou recentemente publicar um romance, alegando ser impossível fazê-lo pelo facto de o protagonista ser branco e heterossexual. De facto, era uma verdadeira afronta ao politicamente correcto. Já o grande Jorge de Sena, há cerca de cinquenta anos, dizia que a melhor hipótese de um jovem sem grande mérito ter acesso a uma universidade americana, aproveitando da discriminação positiva, era ser negro, zarolho e lésbico. Pascal tinha razão: há que saber fazer um bom aproveitamento das doenças, sendo aqui “doença” pura metáfora operatória para “desvantagem” (não vão os leitores “sensíveis” crucificar-me, e eu não tenho vocação para Cristo!)”
Eugénio Lisboa, em 05.09.2023

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