quarta-feira, 1 de março de 2023

O músico cego

 
O músico cego 
Capítulo  VII
por Vladimir Korolenko
"No mesmo Outono, Evelina anunciou aos pais a decisão irrevogável de se casar com «o cego do castelo». A mãe desfez-se em pranto. Quanto ao velho laskoulsky, começou por erguer orações ardentes aos santos familiares e disse logo que, na sua opinião, era justamente assim que o Todo-Poderoso exprimia a sua firme vontade!
Celebrou-se o casamento. Uma ventura juvenil e calma começou então para Pedro. Todavia, um certo desassossego se infiltrava no seu bem-estar; nos instantes mais serenos e descuidados na aparência sorria de tal forma que através desse sorriso se lia uma dúvida angustiosa, como se ele mesmo considerasse a sua felicidade como qualquer coisa de ilegítimo e instável. E quando lhe anunciaram que talvez fosse ser pai recebeu esta notícia com tanto pavor que nem procurava sequer dissimulá-lo.
Contudo, a vida quotidiana, que lhe impunha os esforços mais sérios e cuidados meticulosos referentes à mulher e ao futuro filho, não lhe permitia muito concentrar-se nas velhas e estéreis ocupações. Em certos momentos, no meio destes pensamentos, que lhe absorviam todo ou quase todo o tempo, subiam-lhe ao coração reminiscências ligadas estreitamente aos gemidos chorosos dos cegos. E então partia para a aldeia, em cuja extremidade se encontrava a nova cabana de Teodoro Kandiba. Este pegava na sua cozba, ao som da qual cantava de maneira que fazia correr as lágrimas. Às vezes conversava tranquila e longamente, e as inquietações de Pedro desfaziam-se como por milagre e os seus planos consolidavam-se.
Agora era bem menos sensível às sensações luminosas exteriores e a agitação interior de outrora tinha abrandado. Parecia que as forças orgânicas, que lhe comunicavam a perturbação, estavam adormecidas, e ele procurava não as despertar, graças ao trabalho assíduo da vontade, que lhe ditava, lhe sugeria, que reunisse num todo sensações diversas. E em lugar desses esforços inúteis e desagradáveis ele tinha agora fortes e seguras recordações vivas e esperanças actuais mais ou menos susceptíveis de ter realização. Mas quem poderia dizer se esta calma espiritual não era devida muitíssimo mais ao trabalho orgânico subconsciente que se impunha a toda a sua vida? É assim que nos sonhos a nossa cabeça cria ideias e imagens que não elaboraria nunca se fosse ajudado e criado pela vontade.
No mesmo quarto onde, um dia, tinha nascido Pedro reinava um profundo silêncio, interrompido somente pelos vagidos vagos e fracos dum recém-nascido.
Já tinham passado alguns dias após o seu nascimento e Evelina recobrara rapidamente as forças. Ao contrário, nesses dias, Pedro parecia esmagado pelo pressentimento duma desgraça próxima e iminente.
O médico tomou a criança nos braços, deu alguns passos com ela e aproximou-se da janela. Arredando rapidamente o cortinado, deixou penetrar no aposento um raio claro de sol e, com um instrumento de óptica na mão, inclinou-se para o recém-nascido. Pedro estava sentado no mesmo quarto, de cabeça baixa, acabrunhado, e parecia indiferente ao que se passava em torno de si. Como sabia de antemão o resultado, não prestava a menor atenção aparente ao exame do médico.
— É com certeza cego — repetia ele. — Não devia ter nascido.
O médico, novo ainda, não respondia e continuava as suas observações. Por fim pôs o oftalnioscópio de lado e ouviu-se no quarto a sua voz calma e bem timbrada:
— A pupila contraiu-se. Não há dúvida nenhuma: a criança vê bem.
Pedro estremeceu e levantou-se rapidamente. Este movimento demonstrava que tinha ouvido as palavras do médico, mas julgar-se-ia, pela sua expressão, que não tinha compreendido a significação delas. Apoiando-se com a mão trémula à ombreira da janela, conservou-se assim, com o rosto, pálido, erguido para o tecto e as feições absolutamente imóveis.
Até este momento tinha manifestado uma excitação insólita. Parecia não dar pela sua existência, embora todos os seus nervos só vibrassem e estremecessem de impaciência.
Sentia vivamente a escuridão que o rodeava como um mar. Reconhecia-a, sentia-a fora de si, em toda a sua imensidade. Movia-se por cima de si, e ele abraçava-a na imaginação, media-a, como se quisesse defrontá-la. Dirigia-se ao seu encontro, desejoso de defender o filho contra esse oceano formidável de trevas impermeáveis. Permaneceu neste estado de sobreexcitação extrema todo o tempo em que o médico fez os preparativos. Já estava inquieto mais cedo ainda, antes do nascimento do filho; mas umas veleidades de esperança viviam até aí na sua alma, ao passo que agora era tudo diferente. Hoje, a angústia, terrível e esgotante, tinha atingido o último grau, apossando-se por completo dos seus nervos, violentamente tensos, ao mesmo tempo que a esperança se lhe apertava no fundo do coração e ia morrendo, tímida, lânguida...
E, bruscamente, esta frase curta: «A criança vê bem...», tinha mudado completamente a sua disposição de espírito. Era um abalo brusco, um golpe formidável, que penetrava, como um raio fulminante, na sua alma entristecida. Teve a impressão de que as palavras do médico lhe deixavam um traço de fogo no cérebro. Uma centelha brotou, em qualquer parte, dentro de si e abrasou o fundo misterioso do seu ser... Tudo nele se pôs em movimento e ele próprio tremeu como uma corda fortemente esticada treme sob o efeito duma pancada inesperada. E a seguir, imediatamente a este relâmpago, fantasmas estranhos iluminaram-se subitamente diante dos olhos, que estavam extintos antes mesmo de ele nascer. Não podia distinguir se eram cintilações ou sons. Eram antes sons que nasciam milagrosos, tomavam formas cuja natureza se não podia perceber e se moviam, se dispersavam e se uniam em raios de luz. Brilhavam como a cúpula do céu; rolavam como sol brilhante na abóbada etérea; vibravam como vibra o murmúrio e o segredar duma estepe nova e verde; balançavam-se como a folhagem das faias em meditação.
Tal foi o primeiro momento, curto como um pensamento. Só as impressões entrecortadas e misturadas deste momento se fixaram na sua memória. Tudo o mais esqueceu ele em seguida. Mas não se cansava de afirmar que tinha visto durante esse instante.
Era absolutamente impossível saber o que ele tinha visto, como tinha visto e se na realidade vira alguma coisa. Alguns asseguravam que isso era impossível, mas ele insistia que tinha visto o céu e a terra, a mãe, a mulher e o tio Máximo.
Passaram alguns minutos sem ele se mexer, de cabeça levantada e a face mais pálida e mais serena do que nunca. Produzia uma impressão tão fantástica que todos se voltaram para ele e tudo se calou. Parecia que o homem que estava no meio do quarto não tinha semelhança nenhuma com aquele que eles conheciam havia muitos anos e, antes, era um outro ser, completamente diferente e desconhecido. O antigo Pedro tinha desaparecido, envolto num mistério que o penetrara e transformara de repente.
Este mistério pairou por cima dele durante uns breves instantes. Apesar de todas as contradições, Pedro conservou durante muito tempo a certeza inteira de que tinha recobrado momentaneamente a vista, o que lhe proporcionara uma sensação de alegria sem fim.
Era possível, realmente?
Era possível que ele tivesse visto com os seus olhos mortos o céu azul, o sol resplandecente e o rio transparente com a colinazinha ao lado, onde ele tinha experimentado tantas sensações delicadas, melancólicas, e onde chorara tantas vezes, na sua tenra infância? E depois o moinho, e as noites com o firmamento cheio de estrelas, quando ele se atormentava horrivelmente, e a Lua silenciosa, taciturna? E a larga estrada poeirenta, e a calçada, e a fila de carroças com as rodas cercadas de ferro, e a multidão heterogénea e multicor no meio da qual ele cantava a canção dos cegos?...
Ou era, talvez, a sua imaginação vigorosa que lhe tinha gerado imagens fantásticas no cérebro e lá lhe introduzira montanhas desconhecidas de todos, imensos e prodigiosos vales, árvores esplêndidas que não existiam em parte nenhuma, inundado todo o quadro de jorros de sol que tinham admirado inumeráveis gerações de antepassados?
Pode ser que tudo isso se agitasse em sensações nessa zona profunda do seu cérebro onde, segundo o tio Máximo, as cores reflectiam tão bem como os sons a satisfação ou a melancolia, a alegria ou a angústia.
Quem sabe?
Quanto a ele próprio, só se recordava duma coisa — desse momento para sempre inolvidável em que o mistério o tinha envolvido inteiramente. Nesse instante, resplandecentes e deslumbrantes, as visões sonoras, entrelaçadas e entremeadas profundamente, tinham vibrado, extinguindo-se depois — como vibra e vai morrendo uma corda tensa —, ao princípio mais nítidas e em seguida enfraquecendo, cada vez mais mal perceptíveis, fundindo-se num clarão gigantesco que desmaia numa noite...
O mistério caiu no fundo do oceano e... fez-se silêncio.
Noite plena e silêncio completo... Fantasmas indefinidos, esforçando-se ainda por renascer das sombras escuras, mas já sem forma, sem tintas nem cores. Somente os trilos duma escala de música ressoam tímidos, em qualquer parte, além, muito longe, em filas cerradas e fulgurantes, rasgam o crepúsculo e caem, enfim, por sua vez, no abismo.
Então parece que os ruídos vindos do outro mundo chegam aos seus ouvidos sob a forma habitual. Pedro tem o ar de quem desperta, mas permanece de pé e, radioso, feliz, aperta as mãos da mãe e do tio Máximo.
— Que tens, meu filho? — pergunta-lhe Ana Mikhailowna, com voz inquieta.
— Deus... Mas parece-me que eu... que vos vi a todos. Não estou a dormir, não é verdade?
— E agora? — inquiriu ainda a mãe, sempre comovida. — Lembras-te agora? Poderás recordar-te?
O cego suspirou profundamente.
— Não — respondeu ele enfim, fazendo um grande esforço... — Mas não importa, porque dei tudo isso... a ele... ao filho e a vós todos..."
Vladimir Galaktionovich Korolenko, in O músico cego, Publicações Europa-América, Fevereiro de 1971, pp.203-210
Vladimir Galaktionovich Korolenko
Sobre a obra e o autor
De uma beleza extraordinária,  O músico cego é  uma obra notavelmente construída que narra  a história de uma criança cega, desde a nascença , Piotr ( Pedro na tradução), que tem de  aprender a viver com uma percepção diferente daquilo que o rodeia. Acompanhamo-lo até à idade adulta , numa viagem em que vai descobrindo o mundo através dos sons. Desde cedo , revela um dom natural para  a música.  A sua educação  é orientada para que possa vencer , de modo autónomo,  os desafios do quotidiano. Pretende-se que não seja mais um cego , no mundo dos cegos, mas um membro activo da sociedade. 
Sobre esta obra , o crítico russo Alexandre Skabitchevsky afirmou: “ O músico cego  é a última palavra da perfeição, uma das obras mais admiráveis com as quais o mundo literário já pôde contar. Impossível pensar   num tema tão simples, com menos artifícios, e ao mesmo tempo uma análise psicológica mais profunda”.
Vladimir Galaktionovich Korolenko nasceu na Ucrânia , em Jitomir, a 27 de Julho de 1853 e faleceu em Poltava, a 25 Dezembro de 1921. Contista, jornalista e activista dos direitos humanos russos e ucranianos foi considerado por Liev Tolstói “um dos principais contistas da literatura de língua russa” e comparado a Charles Dickens.
Em 1879, foi desterrado para a Sibéria e proibido de viver em Moscovo e Petrogrado.  Nunca deixou de defender os oprimidos  , afirmando-se como um  grande crítico do regime czarista e  mais tarde como um  forte crítico dos bolcheviques. Os seus  contemporâneos chamavam-lhe a “consciência da nossa época”. 

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