sábado, 4 de março de 2023

O músico cego (cont.)

O músico cego (cont.)
EPÍLOGO
por Vladimir Korolenko
"Passaram-se três anos.
Um público numeroso, aproveitando a época dos Contracts em Kiev, dirigia-se a um concerto, dado por um músico muito original.
Era cego, mas corria que era dotado de um grande talento e que, sobretudo, o seu destino era extraordinário. Contava-se que, ainda criança, terá sido roubado a uma família abastada, por um bando de cegos, com os quais tinha andado de terra em terra, até que um célebre professor de música se interessou vivamente, ardentemente, pelo seu prodigioso talento.
Outros diziam que ele tinha abandonado a família voluntariamente, levado por um impulso puramente romântico. Duma maneira ou doutra, a sala do concerto estava à cunha e a receita, que era destinada a uma obra de beneficência ignorada, ultrapassava tudo o que se pudesse esperar.
Um silêncio profundo reinava na sala quando no estrado apareceu um homem novo, de rosto pálido e olhos grandes e belos. Ninguém o julgaria cego, se os olhos não ferissem pela sua imobilidade e se o músico não tivesse sido guiado por uma jovem loura, que parecia ser sua mulher.
— Nada admira que produza uma tão formidável impressão — disse na multidão um melómano, dirigindo-se ao vizinho. — Logo à primeira vista ele cativa pelo seu aspecto extremamente dramático.
Na verdade, essa figura pálida, de expressão sonhadora e grave ao mesmo tempo, com os olhos fixos, e toda essa distinta apresentação, faziam esperar qualquer coisa de singular, de desusado.
Em geral, o auditório ucraniano gosta e aprecia as canções populares. Mas nesta altura a multidão confusa dos Contracts comoveu-se imediatamente com a profunda sinceridade da expressão musical. O sentimento vivo do país natal, o sentido original e tocante das fontes directas da melodia popular, exprimiam-se da maneira mais encantadora na improvisação que, como uma corrente irresistível, escapava das mãos do músico cego. Rica de cores, leve e deliciosamente cantante, ondulava em arabescos sonoros, umas vezes elevando-se em hino solene, inundando a sala, outras vezes repetindo-se em motivos melancólicos, arrancados ao coração, e que mal se ouviam. Parecia que, por momentos, uma tempestade formidável crescia no firmamento e rolava sem obstáculo no espaço infinito. Por vezes, o vento da estepe rumorejava na erva sobre a colina e trazia em si os sonhos embaladores do passado distante.
Quando acabou, um trovão de aplausos frenéticos encheu a enorme sala.
O cego ficou com a cabeça inclinada, escutando, admirado, o alarido entusiasta. Mas eis que ele levanta novamente as mãos e toca no teclado. O auditório de milhares de cabeças tornou-se silencioso num momento.
Neste instante o tio Máximo entrou na sala. Lançou um olhar atento à assistência, presa pelo mesmo sentimento e que voltava os olhares ávidos e brilhantes para o cego.
O velho inválido compreendeu e esperou. Mais que ninguém de entre o auditório, ele compreendia o drama vivo que se reflectia claramente no tocar de Pedro. Receava que este improviso vigoroso, que se derramava com tanta facilidade da alma do músico, se interrompesse, como outrora, por uma questão de angústia dolorosa, capaz de abrir uma nova chaga sangrenta no coração do seu discípulo. Mas os sons aumentavam, estabilizavam-se, tomavam amplitude, impunham-se cada vez mais e ganhavam o coração da multidão enfeitiçada, arrebatada pela mesma alegria.
E quanto mais o tio Máximo escutava, mais nitidamente retinia nos seus ouvidos um motivo conhecido no toque do cego.
Sim, era bem ela, a rua barulhenta. Uma vaga muito avermelhada, retumbante, cheia de vida, rola, esparge, derrama chispas, dispersa-se em milhares de sons. Tanto sobe larga e robusta como cai em murmúrios longínquos e incessantes, conservando sempre o mesmo tom calmo, solene, impassível e frio. Subitamente, o coração do tio Máximo apertou-se. Como nos tempos passados, um gemido saltou das mãos do músico. Saltou, produziu um som pungente e morreu. E de novo foi o murmúrio repleto de vida, crescendo dum instante para o outro, forte, brilhante e inconstante, feliz e claro, claro...
Já não eram somente os queixumes do desgosto individual, os gemidos provocados pelas dores pessoais da cegueira. Lágrimas grossas deslizaram dos olhos do tio Máximo. Lágrimas corriam pelas faces dos seus vizinhos.
«Recobrou a vista... Sim, sim, achou-a!», pensou o velho.
Todavia, sobre a trama da melodia serena e animada, venturosa e livre como o vento dos campos e como ele descuidada, entre a algazarra colorida e atordoadora da vida, sobre o fundo, umas vezes melancólico, outras vezes majestoso, do motivo da canção popular, uma nota surpreendente, dolorosa, se destacava cada vez mais frequente, dominadora e forte.
«Muito bem, meu rapaz, muito bem!», encorajava o tio Máximo em pensamento. «Eles são felizes e contentes; dize-lhes então toda a verdade. Esse leitmotiv é justamente o que falta. Muito bem...»
Um instante depois só a canção dos cegos, majestosa e cativante, dominava a imensa sala e a multidão encantada.
«Dai... aos po... bres ce... gos...» Mas já não era uma súplica de esmola, um gemido choroso, que abafava o estrépito da rua. Não, tinha lá tudo o que dantes tinha quando, sob a influência da melodia, Pedro, não podendo mais, com a face crispada de emoção, fugia do piano, não tendo forças para lutar com a dor lancinante. Agora tinha triunfado na sua alma e vencia a alma dessa multidão, dizendo-lhe toda a profundidade e todo o horror da verdade que governa a vida...
Era a noite sobre o fundo da luz fascinante, era uma chamada à desgraça no meio da plenitude duma existência feliz. Dir-se-ia que um estrondo terrível retumbava por cima da multidão e que todos os corações tremeram, como se Pedro lhes tivesse tocado com os seus dedos vivos e rápidos. Apesar de ele ter acabado de tocar, a assistência continuava a guardar o mais profundo silêncio.
O tio Máximo baixou a cabeça e pensou: «Sim, ele vê. Ele substituiu os seus sofrimentos egoístas, cegos e insaciáveis por uma verdadeira e nobre noção do que é a vida. Já sente a ventura e a desgraça humana. Recuperou, enfim, a vista e saberá doravante lembrar aos felizes que existem desgraçados...»
E o velho soldado inclinou a cabeça, meditando ainda.
Ele próprio tinha executado tudo que as forças lhe consentiram. Então não tinha sido de mais na Terra. Asseguravam-lho os sons cheios de energia e convicção que enchiam e arrebatavam todo o auditório."
…………………………………………………………………………………………………
E assim começou o músico cego."
Vladimir Galaktionovich Korolenko, in O músico cegoPublicações Europa-América, Fevereiro de 1971, pp.211-215
Vladimir Galaktionovich Korolenko
Sobre a obra e o autor
De uma beleza extraordinária,  O músico cego é  uma obra notavelmente construída que narra  a história de uma criança cega, desde a nascença , Piotr ( Pedro na tradução), que tem de  aprender a viver com uma percepção diferente daquilo que o rodeia. Acompanhamo-lo até à idade adulta , numa viagem em que vai descobrindo o mundo através dos sons. Desde cedo , revela um dom natural para  a música.  A sua educação  é orientada para que possa vencer , de modo autónomo,  os desafios do quotidiano. Pretende-se que não seja mais um cego , no mundo dos cegos, mas um membro activo da sociedade. 
Sobre esta obra , o crítico russo Alexandre Skabitchevsky afirmou: “ O músico cego  é a última palavra da perfeição, uma das obras mais admiráveis com as quais o mundo literário já pôde contar. Impossível pensar   num tema tão simples, com menos artifícios, e ao mesmo tempo uma análise psicológica mais profunda”.
Vladimir Galaktionovich Korolenko nasceu na Ucrânia , em Jitomir, a 27 de Julho de 1853 e faleceu em Poltava, a 25 Dezembro de 1921. Contista, jornalista e activista dos direitos humanos russos e ucranianos foi considerado por Liev Tolstói “um dos principais contistas da literatura de língua russa” e comparado a Charles Dickens.
Em 1879, foi desterrado para a Sibéria e proibido de viver em Moscovo e Petrogrado.  Nunca deixou de defender os oprimidos  , afirmando-se como um  grande crítico do regime czarista e  mais tarde como um  forte crítico dos bolcheviques. Os seus  contemporâneos chamavam-lhe a “consciência da nossa época”. 

Sem comentários:

Enviar um comentário