quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Ode à Diferença e O desterro dos poetas

Ode à Diferença
Felizmente.
Somos todos diferentes. Temos todos
o nosso espaço próprio de coisinhas
próprias, como narizes e manias,
bocas, sonhos, olhos que vêem céus
em daltonismos próprios. Felizmente.
Se não o mundo era uma bola enorme
de sabão e nós todos lá dentro
a borbulhar, todos iguais em sopro:
pequenas explosões de crateras iguais.
Assim e felizmente somos todos Poemas. Poesia. 
diferentes. Se não a terapia
em grupo era um sucesso e o que é certo
é sermos mais felizes a explorar
solitários o nosso próprio espaço
de manias, de traumas, de unhas dos pés
invaloradas pela nossa cultura
(que lá no Oriente o pé é o caso sério,
motivo sensual e explorativo).
Começa por aí: o mundo di-
vidido por atávicos ritmos
— e outras coisas somenos como guerras
ou fomes (Note Bem: a criatura
é céptica e tem um gosto péssimo,
mas veja-se outros textos que redimem
em sério o que aqui diz. Cf. por ex.
o que quiser, mas deixe a criatura
regalar-se por se pensar — coitada —
incómoda e sonora). Prova evidente
de que somos diferentes, felizmente.
Começa por aí: no mundo divi-
dido — e continua em raças e
raízes. Nós somos portugueses,
tão felizes, com tanta história atrás
e tantos feitos, tantas coisinhas próprias
de delícia: o mar que nos gerou,
e o resto tudo, são bolas pequeninas
de sabão a atestar da diferença
do nosso irmão do lado, esse infeliz
cheio de recalques de tradições e línguas,
paella e calamares. Tem boca como
nós: não canta o fado. Tem pernas como
nós: não dança o vira. Contenta-se
— coitado — com flamencos chorados
e falanges doridas. Somos todos
diferentes, felizmente (Note Bem:
[se a sua paciência ainda não
fugiu despavorida — é sem dê,
mas ela insiste em respeitar
o ritmo —]: isto que a criatura
repete e reafirma, quando em quando,
não deve ser tomado em ligeireza
como sinal senil [aliterou!],
mas como tentativa suicida
de oferecer unidade ao que o não tem,
moralizar o texto a pouco e pouco,
dar-lhe uma ideia igual, ser um mote
formal a contrabalançar a tal
prova evidente. Que de diferenças
estamos todos cheios e isto
pretendia-se uma ode e não foi).
Felizmente.
Ana Luisa Amaral, in Minha Senhora de Quê, Quetzal Editores 

O desterro dos poetas

Nada vos quisera dizer que sonegasse o encanto
mas transito por um mundo sombrio
e por caminhos degradados.
Já não vejo flores nas campinas
nem lírios à beira das estradas,
já não ouço o cantar dos pássaros
nem o murmúrio das fontes.
Restou-nos a paisagem decepada e nua,
de quando em quando, pequenos bosques solitários
e o sibilar melancólico do vento.
 
Viandantes milenares da estesia e do mistério,
hoje somos seres desgarrados e silentes.
Nossas imagens foram abatidas,
nossos símbolos calcinados,
globalizaram as metáforas,
plastificaram as rosas,
poluíram as estrelas.
 
Restaram-nos o espanto e os pressentimentos,
e, nessa patética realidade,
entre rimas e a paixão pelo lirismo,
a poesia mendiga descalça pelo mundo,
trajando seu rosário de versos encolhidos.
Nossas páginas já não são abertas,
já não publicam nossos livros,
declamamos num palco de figurantes,
e ante os versos desse drama,
não há público nem aplausos…
Versejar é uma vocação solitária,
uma chama delirante que se apaga no coração dos homens.
 
Apesar de tanto desencanto,
nada vos direi que sonegue a esperança,
mas digo que os poetas jamais silenciarão seu canto,
porque ninguém poderá desterrar o sonho e a beleza
e porque sempre haverá um poema de amor a ser escrito.
Os poetas cantam desde a aurora dos tempos,
pela glória de Aquiles e pela paixão por Beatriz.
 
Cantam para gestar uma “Ode Triunfal”,
para compor “Uma Canção Desesperada”,
ou para erguer uma bandeira libertária.
Cantam para denunciar os calvários de chumbo que
                                            [sangraram tantas pátrias 
e para que o esquecimento não sepulte a história dos
                                                                      [vencidos.
Cantam para acusar os tiranos e consagrar os mártires,
e para reunir na memória os punhos da bravura.
Os poetas sempre haverão de cantar,
enquanto a luz parir a vida, eles cantarão…
cantarão para abrir as janelas do infinito
e para semear novos sonhos nos herdeiros do amanhã.
 
Machucado por tanto desamor,
por esses acordes tolos e nocivos a malhar meus tímpanos,
e perante essa estética do absurdo,
a essa irreverência que empesta os ares
e proscrito por um tempo que confunde os nossos passos,
saio em busca do Eldorado
Quero um cântaro de luz para beber a vida,
um sol de abril para iluminar meu rumo.
Quero meu veleiro, meu farol, meu porto, minha aldeia,
e “onde estiver meu coração, sei que lá estará o meu tesouro”.
 
“Vou-me embora pra Pasárgada”
levando minhas ternuras e uma fé inabalável.
Minhas velas vão rasgando o desencanto,
navegando nas lágrimas do mundo
e nesses mares de naufrágios.
Sei que quando o impasse se acabar,
as flores repovoarão os campos
uma rosa purpurina se abrirá no teu canteiro
e a estrela da manhã surgirá num novo céu.
E eis que uma aurora de luz há de beijar a Terra,
o amor abraçará os filhos da esperança,
e só então a paz será um eterno banquete festejando a vida.
Vos digo que num só “idioma” se entenderão os povos,
que a música renascerá na melodia,
que uma nova literatura deslumbrará a alma
e que o nosso canto, sedutor e palpitante, reviverá no coração
 [dos homens.
                        Curitiba, 20 de agosto de 2014
Manoel de Andrade , in As Palavras no Espelho, Editora Escrituras, São Paulo, Brasil, pp.251-253

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