quinta-feira, 8 de setembro de 2022

O assombro da criação

 

É o poeta quem guarda e multiplica a força vital da palavra. Nele, as palavras antigas mantêm  a sua ressonância , e as novas ascendem  da obscuridade  activa  da consciência individual à luz comum do exterior. O poeta cria numa semelhança com os deuses. O seu canto é construtor de cidades; as suas palavras têm esse poder que,  acima de todos os outros, os deuses negam ao homem, o poder de conceder vida duradoura.
                    George Steiner , Linguagem e Silêncio

Eugénio Lisboa acaba de publicar um  livro de poesia.  Poeta   inquieto e insubmisso  continua a laborar,   ao sabor de uma inspiração que lhe vem de um eterno e sempre constante  assombro. A singularidade com que assume a força da palavra fere-nos pela beleza e pela perfeito desafio que coloca em cada poema.
Apresentamos alguns dos  sonetos que foi tecendo, durante o período que este espaço esteve encerrado.  

Apagamento

Se o grande sol que nos alumia
fosse tão eterno, como parece,
isso, de algum modo, permitiria
acreditar que nem tudo fenece.

Se o sol eternamente durasse,
haveria maneira de supor
que a Terra por mais tempo ficasse
vivificando-se com o seu calor.

Mas o sol tem os seus dias contados,
mesmo que os dias sejam milhões de anos.
E, quando esses anos forem passados,

memória de gregos e de troianos
ter-se-á de todo desvanecido
deste planeta para sempre esquecido.
                         07.09.2022
Eugénio Lisboa

As perguntas simples
 
Se tudo não significasse nada,
se não houvesse sentido nenhum
em que a vida fosse continuada,
com vista a propósito algum,
 
não tendo sentido fazer sentido,
se  ser em vez de não ser se entendesse,
enfim, se o nada fosse intuído,
algo palpável que se conhecesse!
 
Prás perguntas simples não há resposta,
só com as outras, se pode tentar.
As simples esbarram com uma crosta
 
que é impossível atravessar.
As perguntas feitas pela criança
abalam toda a nossa segurança.
                                 30.08.2022
Eugénio Lisboa

                                                                ....
King's Row

 
Era “Em cada coração um pecado”
o título brasileiro da obra
e “King’s Row” o do filme aclamado.
De tudo isso, agora, o que sobra?
 
Sobra muito: uma funda emoção,
a descoberta de um mundo sinistro,
o incesto, o sadismo, a reacção
ao contacto do magistral registro.
 
A descoberta gritada do sexo,
a fundura secreta do desejo,
a estranha doçura do amplexo,
 
a viagem à índia de um beijo!
A felicidade e a tragédia
e a loucura, nessa enciclopédia.
                         27.08.2022
Eugénio Lisboa

O assombro

Ao Onésimo, bom amigo
e bom perscrutador


É no assombro que tudo começa.
É ele que nos abre todas as portas.
Não existe obstáculo que impeça
o assombro de escancarar comportas.

Assombrar-nos é vermos para além
do exíguo espaço em que estamos.
Espantar-nos é votar desdém
ao pequeno reino em que moramos.

O assombro é a sala de espera
dos fazedores do conhecimento.
O assombro desvela na quimera

a luz nova e forte de um portento.
O assombro desflora terra virgem,
penetrando, de tudo, a origem.
25. 08.2022
Eugénio Lisboa

                                                                      ....

Distância

A nossa vida é feita de lonjura,
ficando quanto queremos a distância.
Por todo o lado se tece conjura
que ao desejo trava, mesmo a infância.

A vida recusa quanto promete
e, se dá o que dá, é com medida.
A plenitude do sonho remete
pra outra vida nunca acontecida.

A força do desejo é contida
por muralha chinesa reforçada:
nos poderes que podem, está retida

a raiva que trava o doce à vida.
Mas vale, de Sísifo, o penedo
empurrar, à vida não tendo medo.
                          24.08.2022
Eugénio Lisboa


Rimas para um tempo de guerra

Diz-me com que rimas, dir-te-ei quem és.
Há rimas que são bem reveladoras,
porque mostram claramente o revés
das coisas, tornando-se acusadoras.

Dou, como exemplo, a palavra guerra,
que rima com tanta coisa que é feia:
rima – é só um exemplo – com berra,
mas rima igualmente com enterra.

Porque, se a guerra enterra e berra,
é verdade que ela também ferra
e tanta, tanta coisa boa encerra.

A guerra, em tudo o que visa, erra,
deixando revolvida toda a terra.
E até Napoleão perdeu a guerra!
                      17.08.2022
Eugénio Lisboa

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