quarta-feira, 7 de setembro de 2022

A casa que me deixou a avó



Tempo de confissão
por Maria Ondina Braga
«Querida Isa: Invento-te aqui, agora, às onze e meia da noite de um Janeiro enluarado e gélido, na casa que me deixou a avó e que se esfarela roída pela formiga branca. O terrível insecto, que se supõe exclusivo dos trópicos, há muito tomou conta deste arrabalde da cidadezinha onde nasci e nenhum veneno consegue exterminá-lo. Os chalés brasileiros, por vezes casarões de dois pisos e águas-furtadas, entortam grotescamente por aí acima: a cabeça à banda dos telhados, o olho mirolho das sacadas, a perna manca de um alpendre. No quarto do Pedrinho, por enquanto também o meu, da janela virada a nascente só se podem abrir as portadas: do lado de fora, alastrando-se pela vidraça, avulta uma espécie de tumor penhascoso, o ninho, o núcleo dos nossos invisíveis atacantes, e os alicerces do rés-do-chão vão aluindo ao longo da fachada. Nessa colmeia · não ousamos nós mexer. Dizem que, se lhe mexêssemos, a praga se espalharia, não podíamos mais aqui viver. Dizem ainda que, das raras vezes em que chove e dá sol ao mesmo tempo, estão as feiticeiras a pentear-se, a raínha do enxame morre subitamente, a sociedade termiteira decompõe-se, anarquiza, fácil libertarmo-nos espetando ali, rápido, um prego em brasa. Histórias da carochinha! E como? Se chuva e sol ao mesmo tempo não duram mais que um instante? Na rua, o silêncio a esta hora é de longe em longe cortado pelo rodar de um automóvel, que o último autocarro passou às dez, ou por miados de gatos da vizinhança. E pela neve. Está a gear lá fora, geada preta, o alcatrão da estrada envidraçado. Cá dentro, o silêncio seria perfeito, não soubesse a gente desse sorrateiro .e infindável exército a errar pelo labirinto dos roda-pés, as ombreiras das portas, os secos das varandas, a minar as raízes fundas da casa na colina, a esburacar-lhe as quatro fontes da quadrada cabeça- até que, em dia de disparado vento, amanheçamos todos vestidos de poeira, o silêncio consumado, o silêncio total de campo-santo. Minha avó costumava bater com os nós dos dedos nos lambrins de cana da sala-de-jantar: "Oh, Inimigo! Eu vos esconjuro, destruidor fantasma!" A casa: dote dos padrinhos residentes no Pará, que ela nunca conheceu pessoalmente. Orfã, minha avó instalou-se aqui com uma criada velha, aos quinze anos, e começou a bordar o enxoval. Então, na noite de núpcias, desejando oferecer delicadamente ao noivo uma bebida, dirigiu-se à arca de castanho, levantou o tampo, tirou uma toalhinha, soltou um grito: todo o bragal, toalhas adamascadas e de baínhas abertas, naperons bordados a ponto- -de-cruz e a Richelieu, tudo furado de baixo a cima, um crivinho em espiral, como a escada em caracol hoje intransitável da torrinha. "Oh, inimigo! Oh, fantasma destruidor!" A verdade é que ninguém ouve os vorazes bichos. Apenas, de onde em onde, o estalido da madeira e o folhear do caderno em que te escrevo. O João deve dormir a sono solto, tal o menino no quarto. do medonho e empedernido favo. Finalmente decidida, desci pé ante pé, sentei-me à secretária com lápis e papel -lápis não resiste, vai-se apagando com os anos - e principiei a escrever-te, a sentir-te a presença reconfortante.
Perguntarás por que te nomeio Isa e não Isabel ou Isaura, como se pronunciasse só metade do teu nome. Escolhi Isa precisamente pela brevidade da palavra, um sopro, digamos, um suspiro. Chamo por ti sem bem chegar a chamar por ninguém. E se anteponho ''querida'' não é por afectação nem desfastio, antes por uma teimosia, uma saudade de amar. Desesperado apelo este "querida". Igual à vida que imito viver. Igual à minha alma hirta e oca como árvore morta. »
Maria Ondina Braga, texto publicado na revista Sema nº4, com desenho de Margarida Madaíl, retirado do blog dedicado a Maria Ondina Braga, escrito por José António Barreiros. 

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