quinta-feira, 15 de setembro de 2022

Bom dia...

 
Pequena ode , em anotação quase biográfica

Bom dia, cão e gata,
por essa saudação e de manhã,
o corpo de veludo, a língua suave,
em simultânea tradução:
bom dia
 
Bom dia, sol, que entraste aqui,
me ofereces este espelho
onde me vejo agora, e tão de frente,
tornaste um pouco clara a folha de papel
e nela: em faixa transparente,
o tempo
 
Bom dia, coisas todas que brilham na varanda,
folha de japoneira, o nome cintilante,
o som daquele pássaro,
como se o mundo, de repente,
se fizesse mais mundo, e de maneira tal
que nunca mais se visse
escurecente o dia
 
Bom dia, gente pequenina
que não consigo olhar desta cadeira,
mas que está: formigas e aranhas,
minúsculos insectos
que hão-de morrer, mas aqui nascerão,
todos os dias
 
Bom dia, minha filha, igual a girassol,
quantas mais vezes te direi bom dia,
olhando o corredor,
tu, já não de baloiço, mas de amor
e pura filigrana,
eu, quase entardecendo
 
Bom dia, meu sofá,
onde me sento à noite, e devagar,
as flores que ora não são, ora às vezes
povoam esta mesa, a porta em vidro,
iluminada, em mais pura esquadria,
livros e quadros, curtas
fotografias em breve
desalinho
 
Bom dia, a ti também,
pelo perfume em fio que me trouxeste,
como se encera um chão rugoso de madeira,
os veios de uma planta desejosa de folhas,
ou mesmo as falhas na paz que me ofereceste,
e que desejo tua
 
Mesmo no tom cruel
que é acordar todos os dias
para um mundo sem sol em tantas mãos,
mesmo nesse desmando e tão violento curso
que é o mundo,
ainda assim, esta pequena anotação
de abrir os olhos e dizer bom dia,
e respirar de fresco o ar de tudo
em tudo –
Ana Luísa Amaral, in E todavia, Assírio & Alvim, 2015

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