segunda-feira, 25 de abril de 2022

Em Abril de 74 Lisboa converteu-se na capital da nossa alegria


A revolução portuguesa de Abril de 1974 não foi apenas um marco importante na história de Portugal.  Teve, sobre ela,  o olhar do mundo. 
Hoje recordamos, através da introdução a um pequeno romance, o olhar de um notável  escritor espanhol da actualidade, nascido em 1956.

Carta aos leitores portugueses
por Antonio Muñoz Molina
" Por vezes precisamos de escrever para nos darmos conta de como certas coisas na vida foram importantes para nós . Se eu não tivesse escrito este livro não saberia agora,  ou não me recordaria, da importância que teve para mim. , há mais de vinte anos, a notícia  da Revolução de Abril, e do modo como as ideias mais sentimentais  da minha adolescência  sobre a liberdade perduram em mim associadas, e para sempre, a Portugal,  às fotografias  de carros de combate  rodeados por multidões fervorosas , de soldados jovens com os punhos erguidos e cravos nas bocas das espingardas.
Desde o 25 de Abril de 1974 que muitos de nós, espanhóis , vivíamos  imaginariamente e à distância  uma parte da nossa vida, e enquanto  o regime franquista perdurava  numa imobilidade mineral nós já vivíamos as peripécias , os  sobressaltos, os entusiasmos diários de uma revolução mais pacífica e mais bela não só que as revoluções da História mas também que as dos sonhos. Em Setembro de 1973 Santiago do Chile tinha sido a nossa capital da dor; em Abril de 74, Lisboa converteu-se na capital da nossa alegria.
Mas em nada disso pensava eu , quando me pus a escrever "O Dono do Segredo". (...)
Escrevi umas primeiras linhas , sem inventar nada , sem saber para onde dirigir-me.  E o acto de escrever, como me acontece com frequência , fez disparar os mecanismos da memória: recordei-me , enquanto escrevia , da tarde de Abril de 1974 em que recebi a notícia da revolução portuguesa, e precisamente nesse momento produziu-se, creio, a cristalização de imagens e recordações de que surgiu " O Dono do Segredo", a mescla de confissão  pessoal, autobiografia fictícia e tristeza política que depois se foram desenvolvendo  ao longo da história. Para o seu protagonista, o 25 de Abril é uma festa ausente , uma data  de ilusões futuras que nunca chegou  a acontecer nos calendários espanhóis. Nós , os democratas da minha geração, os que naqueles  anos misturávamos os sonhos sentimentais  da adolescência  com imaginações  temerárias de revolução social , não temos nenhum 25 de Abril de que nos recordar , porque seria demasiado sinistro comemorar o dia em que morreu um ditador  que ninguém expulsou do Poder. Não tivemos hinos nem heroísmos , nem despertares de alegria, nem manifestações  gozosas nas praças  públicas: mas todas essas coisas as vivemos vicariamente  através dos acontecimentos portugueses, e já não queríamos  ir a Cuba, nem a Paris, nem a Moscovo, mas aqui ao lado , a Lisboa, a uma cidade de que até então nunca tínhamos sabido nada, a um país que para nós tinha sido invisível.
(...) Nessa altura os espanhóis de esquerda iam a Lisboa em peregrinação revolucionária, para participar nas manifestações do 1º de Maio, desfraldar bandeiras vermelhas e comprar livros e cartazes proibidos em Espanha. Eu não tinha dinheiro para empreender essa viagem, e por isso cheguei a Lisboa muitos anos depois, procurando os lugares onde iria decorrer o final do romance. Mas é agora , ao publicar em Portugal este livro, que tenho a sensação de que restituo em parte  a minha dívida de sedução com aqueles tempos com o entusiasmo e a melancolia do 25 de Abril, do seu futuro e das suas comemorações. Gostaria que o leitor português  encontrasse  em algumas passagens de " O Dono do Segredo" um testemunho de gratidão, e mesmo de fraternidade. O mais lírico de todos os nossos sonhos de então foi sem dúvida o da revolução dos cravos: e também o mais perdurável, apesar dos anos e do esquecimento.  
                                                    António Muñoz Molina
António Muñoz Molina, in "O Dono do Segredo", Editorial Caminho, Setembro 1995, pp. 7,8,9,10

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