quinta-feira, 17 de junho de 2021

Foi no verão de 1994

«Foi no verão de 1994, faz agora seis anos, que ouvi falar pela primeira vez do fuzilamento de Rafael Sánchez Mazas. Três coisas acabavam de me acontecer por essa altura: a primeira foi o meu pai ter morrido; a segunda foi a minha mulher ter-me abandonado; a terceira foi eu ter abandonado a minha carreira de escritor. Minto. A verdade é que, dessas três coisas, as duas primeiras são exactas, exactíssimas, mas não a terceira. Na realidade, a minha carreira de escritor não havia maneira de arrancar, de modo que dificilmente poderia abandoná-la. Mais justo seria dizer que a tinha abandonado recém-iniciada. Em 1989 tinha publicado o meu primeiro romance; tal como o conjunto de contos surgido dois anos antes, o livro foi recebido com notória indiferença, mas a vaidade e uma resenha elogiosa de um amigo daquela época aliaram-se para me convencer de que poderia chegar a ser romancista e de que, para o ser, o melhor era deixar o meu trabalho na redacção do jornal e dedicar-me totalmente a escrever. O resultado desta mudança de vida foi cinco anos de angústia económica, física e metafísica, três romances inacabados e uma depressão pavorosa que me prostrou durante dois meses numa poltrona, diante do televisor. Farta de pagar as facturas, incluindo a do enterro do meu pai, e de ver-me olhar para o televisor apagado a chorar, a minha mulher saiu de casa assim que comecei a recuperar, e eu não tive outro remédio senão esquecer para sempre as minhas ambições literárias e pedir a minha reintegração no jornal.- uma vez que, para alguns jornalistas,
Acabava de fazer quarenta anos, mas felizmente – ou porque não sou um bom escritor, mas também não sou mau jornalista; ou , mais provavelmente, porque no jornal não dispunham de ninguém que quisesse fazer o meu trabalho por um salário tão exíguo como o meu  - aceitaram-me. Fui destacado para a secção de cultura , que é onde se colocam as pessoas que não se sabe onde colocar. Ao princípio, com o fim não declarado  mas evidente de castigar   a minha deslealdade – uma vez que, para alguns jornalistas , um colega que abandona o jornalismo para se dedicar ao romance, acaba por ser pouco menos que um traidor  -, fui obrigado a fazer de tudo , salvo trazer cafés do bar da esquina para o director , e só alguns  colegas não incorreram  em sarcasmos ou ironias à minha custa.  O tempo acabou por atenuar a minha infelicidade : rapidamente comecei a redigir pequenos artigos, a fazer entrevistas. Foi assim que em Julho  de 1994 entrevistei Rafael Sánchez Ferlosio, que naquele tempo estava a proferir , na universidade , um ciclo de conferências. Eu sabia que Ferlosio era extremamente relutante em falar a jornalistas , mas graças a um amigo ( ou melhor, a uma amiga desse amigo, que tinha organizado a estada de Ferlosiona cidade), consegui que acedesse a conversar um pouco comigo. Porque chamar àquilo entrevista seria excessivo ; se o foi, foi também a mais estranha que fiz na minha vida . Para começar Ferlosio apareceu na esplanada do Bistrot envolto numa nuvem  de amigos, discípulos, admiradores e turiferários; este facto ,unido ao descuido da sua indumentária e a um físico onde se misturavam de uma forma inextricável ar de aristocrata castelhano envergonhado de o ser e o de um velho guerreiro oriental –a cabeça poderosa, o cabelo revolto e entremeado de cinza, o rosto duro, emaciado e difícil , de nariz judeu e faces sombreadas de barba – fazia que um observador  desprevenido o tomasse por um guru religioso rodeado de acólitos. O pior é que, além disso, Ferlosio se recusou rotundamente a responder a uma única das perguntas que lhe formulei, alegando que nos seus livros tinha dado as melhores respostas de que era capaz.”
Javier Cercas
 , in  Soldados de Salamina, Tradução de  Helena Pitta, Edições Asa

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