quinta-feira, 24 de junho de 2021

E onde está toda a gente?


Hamnet, de Maggie O’Farrell é «Um romance histórico excepcional.», escreve The New Yorker. Foi o vencedor do Women's Prize for Fiction 2020. Numa narrativa que mistura realidade e ficção, a autora irlandesa cria uma das mais importantes obras literárias deste início do século XXI.
Hamnet é um romance sobre o filho de Shakespeare. Mas esse é apenas o ponto de partida para Maggie O’Farrell construir uma obra actual, que interroga a origem da dor e envereda por caminhos menos conhecidos do amor e da maternidade."
Eis um excerto :

Hamnet
por Maggie O’Farrell
“Um rapazinho desce um lanço de escadas. A passagem é estreita e em ângulo. Avança em passos vagarosos, deslizando o corpo pela parede; as botas assentam em cada degrau com um ruído surdo. Perto do fundo detém‑se um instante a olhar para trás, para o caminho por onde veio. Depois, tomando uma resolução súbita, salta os três últimos degraus, como é seu hábito. Tropeça ao aterrar e cai sobre os joelhos no chão de lajes. Está um dia abafado, sem vento, de final de Verão, e a divisão do rés‑do‑chão é sulcada por longas faixas de luz. O sol olha‑o do exterior com hostilidade, as placas de treliça das janelas, em amarelo, fixadas ao estuque. Levanta‑se, esfregando as pernas. Olha para um lado, para o cimo das escadas; olha para o outro, incapaz de decidir que caminho tomar. A divisão está vazia, o lume cogita na sua grade, brasas alaranjadas sob o fumo suave que sobe em espiral. As rótulas feridas latejam ao mesmo ritmo da pulsação. Tem uma mão pousada na aldraba da porta das escadas, e a ponta de cabedal coçado da bota arrebitada está pronta para andar, para voar. O cabelo, de cor clara, quase dourado, eleva‑se da fronte em tufos. Não há ali ninguém. Suspira, inalando o ar tépido e poeirento, atravessa o aposento, sai pela porta da frente e está na rua. O ruído de barris, cavalos, vendedores, pessoas que chamam umas pelas outras e de um homem que atira um saco de uma janela superior não o atinge. Segue pela frente da casa e penetra na porta contígua.
O cheiro da casa dos avós é sempre o mesmo: um misto de fumo de lenha, cera, cabedal, lã. É semelhante, porém indizivelmente diferente do apartamento anexo, de duas divisões, construído pelo avô num espaço estreito ao lado da casa maior, onde ele vive com a mãe e as irmãs. Às vezes não consegue compreender porque assim é. As duas habitações, ao fim e ao cabo, estão separadas apenas por uma fina parede de tabique, mas o ar, num sítio e noutro, é de tipo diferente, de cheiro diferente e temperatura diferente. Esta casa assobia com correntes de ar e remoinhos, com as pancadinhas e marteladas da oficina do avô, com as batidas e chamamentos dos clientes à janela, com os ruídos e o rebuliço lá atrás, no quintal, e com o rumor dos tios a andar de um lado para o outro. Mas hoje, não. O rapaz detém‑se na entrada, à escuta de sinais de vida. Dali vê que na oficina, à direita, não está ninguém, os assentos junto às bancadas estão desocupados, as ferramentas indolentes nos balcões, um tabuleiro de luvas ao abandono, parecem reproduções de mãos deixadas ali para que todos as vejam. A janela das vendas está fechada e com todos os ferrolhos bem apertados. Não há vivalma na sala de jantar, à esquerda. Sobre a grande mesa, uma porção de guardanapos empilhados, uma vela apagada, um monte de penas. Nada mais. Ele chama, é um grito de saudação, um som inquiridor. Repete aquele som uma, duas vezes. Depois põe a cabeça de lado, à escuta de uma resposta. Nada. Apenas o ranger de vigas que se dilatam suavemente ao sol, o suspiro do ar a passar por baixo das portas, entre os quartos, o sibilar de tecidos de linho, o estalejar do lume, os ruídos indefiníveis de uma casa em repouso, vazia. Os seus dedos apertam‑se em torno do ferro do manípulo da porta. O calor do dia, mesmo a esta hora avançada, faz com que o suor se lhe escoe da pele da testa e lhe desça pelas costas. A dor nos joelhos aviva‑se, agudiza‑se, depois esmorece de novo. O rapaz abre a boca. Um por um, chama pelos nomes de todos quantos ali vivem, naquela casa. A avó. A criada. Os tios. A tia. O aprendiz. O avô. Experimenta todos, um após outro. Por um instante, passa‑lhe pela ideia gritar o nome do pai, chamar por ele, mas o pai encontra‑se a milhas, a horas e dias de distância, em Londres, onde ele nunca esteve. Mas onde, gostaria de saber, estão a mãe, a irmã mais velha, a avó, os tios? Onde está a criada? Onde está o avô, que não costuma sair de casa durante o dia, que normalmente se encontra na oficina, massacrando o aprendiz ou registando os lucros no livro‑razão? Onde está toda a gente? Como é possível que ambas as casas estejam desertas? Avança pelo corredor. À porta da oficina, pára. Lança um olhar rápido por cima do ombro para se certificar de que não está ali ninguém, e depois entra. A oficina de luvas do avô é um sítio onde raramente lhe é permitido entrar. Mesmo deter‑se à porta é proibido. Não estejas aí a mandriar, rugirá o avô. Já um homem não pode fazer o seu honesto trabalho diário sem que alguém fique embasbacado a olhar para ele? Não tens nada melhor para fazer do que ficar aí parado, às moscas? A mente de Hamnet é expedita: não tem qualquer dificuldade em perceber as lições do mestre‑escola. É capaz de compreender a lógica e o sentido daquilo que está a ser dito, e consegue memorizar prontamente. Lembrar‑se dos verbos, da gramática, dos tempos, da retórica e dos números e cálculos acontece‑lhe com uma facilidade que pode, por vezes, atrair a inveja dos outros rapazes. Mas a sua mente também se distrai facilmente. Uma carroça que passe pela rua durante uma aula de Grego desviará a sua atenção da ardósia para conjecturas como, por exemplo, para onde irá a carroça e o que transportará, e que poucos dias antes o tio lhe proporcionou, assim como às suas irmãs, um passeio numa carroça de feno, e que bom que foi, o cheiro e as picadelas do feno acabado de cortar, as rodas que giravam ao ritmo dos cascos fatigados da égua. Nas últimas semanas foi açoitado mais do que duas vezes na escola, por não estar com atenção (a avó disse que, se isso acontecer outra vez, uma só que seja, mandará recado ao pai). Os mestres não conseguem compreender. Hamnet aprende depressa, é capaz de recitar de cor, mas não se mantém concentrado no trabalho. O ruído de um pássaro no céu pode fazer com que ele pare de falar, a meio de uma frase, como se o próprio firmamento o tivesse tornado surdo e mudo de um momento para o outro. Ver, pelo canto do olho, uma pessoa entrar numa sala pode levá‑lo a interromper aquilo que está a fazer — a comer, a ler, a copiar o trabalho escolar — e a ficar pasmado a olhar para ela, como se trouxesse alguma mensagem importante precisamente para ele. Tem tendência para sair dos limites do mundo real e tangível que o rodeia e penetrar noutro lugar. Estará sentado numa sala, corporalmente presente, mas a sua cabeça encontrar‑se‑á noutro sítio, noutra pessoa, num lugar que só ele conhece. Acorda, filho, gritará a avó, estalando os dedos para lhe chamar a atenção. Regressa à terra, sibilará a irmã mais velha, Susanna, dando‑lhe um piparote na orelha. Presta atenção, gritarão os seus mestres na escola. Onde é que tu foste?, sussurrar‑lhe‑á Judith, quando ele finalmente regressar à terra, quando voltar a si, quando olhar em redor para se certificar de que está de volta à sua casa, à sua mesa, rodeado pela família, enquanto a mãe olha para ele, meio a sorrir, como se soubesse exactamente onde ele esteve. Do mesmo modo, agora, ao entrar no espaço proibido da oficina de luvas, Hamnet perdeu a noção daquilo que lhe competia fazer. Soltou‑se momentaneamente das suas amarras, do facto de Judith não estar bem e precisar de alguém que fosse cuidar dela, e de que o seu objectivo era encontrar a mãe ou a avó, ou outra pessoa que soubesse como proceder. Há peles penduradas de um varão. Hamnet sabe o suficiente para reconhecer o couro às manchas cor de ferrugem de um veado, a delicada e maleável pele de cabrito, as peles mais pequenas, de esquilos, a grosseira e hirsuta pele de javali. Conforme se aproxima delas, as peles começam a rumorejar e a balançar nos seus ganchos, como se ainda restasse nelas alguma vida, só um pouquinho, apenas o suficiente para o ouvirem aproximar‑se. Hamnet estica um dedo e toca na pele de cabra. É incrivelmente macia, como a carícia das algas do rio nas suas pernas, quando vai nadar nos dias quentes. Oscila suavemente para cá e para lá, com as pernas abertas, esticadas, como se voasse, idêntica a um pássaro ou a um vampiro. Hamnet volta‑se, inspecciona os dois assentos junto à bancada: o almofadado, de cabedal, polido pela fricção das bragas do avô, e o banco duro, de madeira, para Ned, o aprendiz. Vê as ferramentas suspensas de ganchos na parede, por cima da bancada. Sabe identificar as que são para cortar, as que são para esticar e as que servem para prender e para coser. Vê que o esticador de luvas mais estreito — para as de mulher — está fora do lugar, foi deixado sobre a bancada onde Ned trabalha, com a cabeça inclinada e os ombros curvados, e dedos ansiosos e velozes. Hamnet sabe que basta uma pequena provocação para que o avô grite com o rapaz, ou talvez pior, por isso pega no esticador de luvas, tomando o peso ao objecto de madeira cálida, e arruma‑o no respectivo gancho. Prepara‑se para abrir a gaveta onde as bobines de fio estão guardadas, e as caixas de botões — com muito cuidado, pois sabe que a gaveta vai ranger —, quando um ruído, um leve movimento ou um arranhar, lhe chega aos ouvidos. Em poucos segundos, Hamnet escapuliu‑se dali e atravessou o corredor até ao quintal. Voltam‑lhe à cabeça as suas incumbências. O que anda a fazer, a charaviscar na oficina? A irmã sente‑se mal e a obrigação dele é encontrar alguém que lhe acuda. Abre ruidosamente, uma a uma, as portas que dão para a cozinha, para a cervejaria, para a lavandaria. Todas elas desertas, os seus interiores escuros e frescos. Chama de novo, desta vez um pouco rouco, tem a garganta arranhada da gritaria. Encosta‑se à parede da cozinha e dá um pontapé numa casca de noz, fazendo‑a atravessar o quintal num ápice. Sente‑se muito intrigado por se encontrar tão só. Devia estar ali alguém, está sempre ali alguém. Onde será que estão? O que há‑de fazer? Como é possível que todos tenham saído? Como é possível que a mãe e a avó não estejam em casa, como normalmente estão, a abrir as portas do forno, a mexer uma panela que está ao lume? Fica especado no quintal, olhando em volta, para a porta que dá para o corredor, para a da cervejaria, para a que vai para o apartamento dele. Onde haverá de ir? Quem devia chamar para pedir ajuda? E onde está toda a gente? Todas as vidas têm o seu cerne, o seu eixo, o seu epicentro, de onde todas as coisas dimanam, ao qual todas as coisas regressam. Este momento é o da mãe ausente: o rapaz, a casa vazia, o quintal deserto, o grito não ouvido. “
Maggie O’Farrell, in Hamnet, , Relógio D’Água Editores, 05/2021, pp.15-19, Preço em promoção: 16,20 €

SOBRE A AUTORA:
Maggie O’Farrell

"Maggie O’Farrell nasceu em Maio de 1972 ,na Irlanda do Norte e cresceu no País de Gales e na Escócia. Teve várias profissões, como a de jornalista no The Independent ou Sunday. Foi também professora de Escrita Criativa na Universidade de Warwick e na Goldsmith’s College, em Londres. É autora de oito romances, vários deles premiados. O primeiro, After You’d Gone, recebeu o Betty Trask Award. Venceu, em 2010, o Costa Book Award com The Hand That First Held Mine. A sua obra está traduzida em mais de trinta línguas. Vive actualmente com a família em Edimburgo."

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