sexta-feira, 4 de junho de 2021

Guardiões e passadores

Livraria El Ateneo, Buenos Aires , Argentina

Livraria Shakespeare & CO, Paris, França
Guardiões e passadores
por Daniel Pennac
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« Os alunos entram muitas vezes numa livraria como quem entra numa farmácia. Dirigem-se ao livreiro com a famosa “lista de livros a ler”, como um doente com a sua receita. Vêem o livreiro desaparecer no laboratório, de lista na mão, e reaparecer com uma pilha de obras “receitadas”. Diga-se de passagem que o termo “receituário” não me parece o mais indicado, tratando-se da difusão de livros. Cheira demasiado a remédio. A leitura não resulta de uma receita: “leiam três gotas de Mallarmé de manhã e à noite, num grande copo de interpretação… Um mês de Educação Sentimental e depois veremos o que darão as vossas análises… À procura do tempo perdido, não interrompam o tratamento antes de chegarem ao fim”. Abominável.
Com o seu lastro de literatura anual, o aprendiz de leitor regressa a casa sem nada saber da livraria de onde acaba de sair. Terminada a escolaridade, Mallarmé, Flaubert ou Proust terão ficado na sua memória quando muito como nomes ligados a recomendações de leitura. E em vez de protestar no dia em que a livraria do seu bairro for substituída por um fast-food, levará lá os filhos para não ter que viver entre livros esse momento de lazer.

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Esta concepção fármaco-terapêutica da livraria é a consequência de um ensino da literatura de tipo medicinal. Desde a noite dos tempos que o método é o mesmo; só os instrumentos mudam. Pegamos nos textos e esquartejamo-los na mesa de dissecação, na falsa esperança de que os alunos encontrem nas suas entranhas a beleza redentora e o sentido libertador. Esta prática médico-legal assusta muita gente. Por muito “escolhidos” que sejam, os nossos fragmentos de cadáver assustam os alunos. Os comentários que esperamos deles ficam-lhes entalados na garganta e nós concluímos apressadamente que eles não se interessam pela literatura. Se “não gostam de ler”, a responsabilidade não é nossa, é do mundo inteiro, com o seu cortejo de canais de televisão, de desemprego, de famílias monoparentais, de emigração intempestiva, de consumismo desenfreado, de ciber-tentações… A culpa é do sistema, a culpa é da modernidade, a culpa é de tudo o que quiserem menos nossa, nós que somos instâncias tão convincentes!
“Instâncias”… Mais outro termo extravagante quando se trata de dar a ler! (São incontáveis os estragos provocados nas escolas – e, portanto, nas cabeças – pela caixa de ferramentas da linguística). Como aqueles médicos especialistas que se interessam mais pela doença do que pelos doentes, nós, as “instâncias”, batemo-nos muitas vezes pelo “livro” sem nos preocuparmos em formar leitores. Armamo-nos em guardiões de um templo cujo esvaziamento deploramos, enquanto nos vamos regozijando por ele estar tão bem guardado.

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Guardião do templo… É o mais fácil de recrutar; o mais fácil de formar. (Em breve se dirá “formatar” – o que até será mais correcto). Peguem num livro, num autor, num movimento literário, retirem-lhe tudo o que faz dele um organismo vivo, suguem-lhe toda a substância, mumifiquem-no, transformem-no num culto e terão o vosso templo. Com alguma habilidade, até poderão ser o seu guardião.
Os guardiões do templo reconhecem-se por aquilo que decretam e por aquilo que lamentam.
Decretam a necessidade de ler, mas lamentam a morte da literatura. (Ah! nunca mais surgiu um romancista digno desse nome depois de Gide! Nenhum filósofo desde Sartre! Nada de novo desde o surrealismo…) Decretam a libertação através do livro e lamentam que a leitura não passe de um divertimento. Decretam a excelência, lamentam a mediocridade (quinhentos romances na rentrée e nem um que preste!)
Decretam e lamentam…
Mas não deixam passar nada.
Decretam e lamentam…
Fora de qualquer responsabilidade.
E porque haveríamos de nos sentir responsáveis, nós que tanto nos “batemos pelo livro”?
Todas essas sumidades que “se batem por” sem nunca se aproximarem da vida…

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Dito assim, “o livro” não significa grande coisa. Quando muito, a designação de um mercado, o departamento de um ministério, o nome de uma política, um orçamento, uma rubrica no canto de uma folha, um produto, um conceito… É isso, “o livro”. O que equivale a nada, em termos de vida. Sem os homens e as mulheres que dele fazem parte, sem toda essa vida que fervilha dentro dele e à volta dele, sem que o tenhamos lido, sem os poucos ou os muitos a quem iremos divulgá-lo, sem esse desejo de o fazer passar de mão em mão, o livro não é nada.
“Eu bato-me pelo livro”. Uma ova! Pára de te bater e dá-o a ler, morcão! Tenta-nos! Põe de lado o teu cabaz de decretos e passa-nos o último bom romance ou o último ensaio brilhante que tenhas lido. A leitura? É preciso sentir a necessidade imperiosa dela no brilho dos teus olhos, no calor da tua voz, na fúria do teu desespero! Passa um! E depois falaremos do teu “combate em prol do livro”. Pára de lamentar e procura! Revolve a pilha dos teus quinhentos romances da rentrée, lê-os todos e descobre! Se não descobrires um bom romance francês, procura no resto do mundo! Descobre, lê e passa-o a outro! Faz o que te compete. Já que dizes que te bates pelo livro, começa por aquele que vais dar-me a ler, apenas esse. Isso já será muitíssimo. Em vez de te armares em grande espírito deprimido, em sumidade ultrajada…
“Nada que preste em quinhentos romances da rentrée”… Parvalhão.

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Já se vê que ser guardião do templo não é uma função, é um estado de espírito, um papel. É a leitura limitada ao conhecimento, o conhecimento reduzido ao adquirido. E um lugar de porteiro vitalício. Encontramos guardiões do templo em todos os sectores da cultura e do livro; o editor, o vendedor, o livreiro, o professor, o bibliotecário, o crítico, o universitário, o adido cultural e o próprio leitor podem ser tentados por esse papel. E nas outras corporações, entre os médicos, os arquitectos, os advogados, os políticos… Até entre as carpas deve haver um templo a guardar. Guardião do templo é uma tentação; é sinal de uma esterilidade altiva, um exílio na certeza, ou seja, uma coisa bem afastada da vida.
Outros, felizmente – editores, livreiros, professores, bibliotecários, críticos, universitários, adidos culturais e leitores de todos os quadrantes – preferem ser passadores. Também não é uma função, mas é algo mais do que um papel, é uma maneira de ser e de estar, um mergulho na vida, custe o que custar, a sensação profunda de que “o livro” é um elemento da vida, que alimenta a vida e se alimenta dela, que é em si mesmo uma troca e que nós somos os seus agentes. Esses, os passadores, sentem curiosidade por tudo, não confiscam nada, transmitem o melhor sem envergonhar ninguém com o pior. Se, globalmente, a literatura actual os desaponta, sabem que mais dia menos dia, quanto mais não seja como reacção, surgirá no campo literário uma obra digna de admiração. E que os piores romances têm pelo menos a virtude de produzir esse húmus do qual acaba por brotar a obra-prima siderante, e que Flaubert não teria escrito se Emma não tivesse “sujado as mãos nessa poeira dos velhos gabinetes de leitura”.

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No que toca à leitura, sempre preferi o convite à recomendação, o encorajamento à imposição, o exemplo à estátua, o passador ao grande sacerdote e o livreiro ao farmacêutico. Sempre achei que um curso de Francês que não desembocasse numa livraria ou numa biblioteca não era, no fundo, mais do que um exercício de autocomplacência. A livraria é a escala do livro antes de nos tornarmos os seus destinatários. Por isso é preciso ensinar os alunos a utilizá-la e, para tal, criar neles o desejo de correrem para lá, levá-los mesmo até lá, abrir-lhes as portas de par em par depois de uma aula à porta fechada. Espanta-me que se possa elogiar La Princesse de Clèves sem mostrar onde e como encontrar Madame Lafayette. E Lagerloff, que país? E Borges, que continente? E Gogol, que língua? E este e aquele, poesia? teatro? filosofia? romance?… Tantos passeios no tempo, tantas viagens em todas as dimensões da classificação, tantos deliciosos devaneios ao longo das prateleiras de livreiros cúmplices que poderemos proporcionar, nós, as “instâncias”, por muito pequena que seja a nossa preocupação de dar a ler.

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Eu cá devo tudo aos passadores. Não só o meu trabalho de escritor, que correu de boca em boca, mas também as minhas leituras, que também contam na felicidade de uma vida. Devo-lhes, por exemplo, ter feito de cada estação de metro a promessa de uma livraria. Saímos na estação Jourdain e deparamos com L’Atelier. Ledru-Rolin? La Terrasse de Gutemberg. Sèvres-Babylone? Chantelivre. Villiers? L’Astrée. Pont-Marie? Ignazi. Vavin? Tschann, Art et Littérature. Censier-Daubenton? La Boucherie, Presse Bouq, L’Arbre à Lettres. Saint-Marcel? Le Cerf volant. Goncourt? Libralire, Les Guetteurs de Vent. Alésia? Alésia. Les Abesses? Les Abesses. Pernety? Tropiques. Jules-Joffrin? L’humeur vagabonde. Montreuil? Folies d’encre. Vincennes? Mille pages. Sceaux? Le Roi lire. Créteil? Chroniques…
Grandes, médias, pequenas ou minúsculas livrarias, múltiplos passeios que posso estender a toda a França e ao longo da minha vida. Incalculável o número de horas que passei, quando era criança, a deambular pelos corredores da Sorbonne, em Nice, contagiado pela felicidade que todas as noites via estampada no rosto do meu pai, mergulhado na leitura de um livro, enterrado no maple, envolto no cone de luz do candeeiro e no fumo do cachimbo, arquétipo do prazer de ler. E as conversas com monsieur Rodin, livreiro que se tornou um mito, que não era do meu quadrante político e nem sempre comungava dos meus gostos literários, mas que me arrancava à minha letargia adolescente falando-me da literatura de todos os cantos do mundo! E aquele apaziguamento na livraria Corti, ouvindo o velho livreiro falar de livros essenciais, mas também das árvores do Luxemburgo, ali adiante, do outro lado da rua Médicis, em frente da sua livraria…

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Há quinze anos, a 10 de Junho de 1985, entrei numa livraria em Grenoble, chamada Nuits blanches, mas que só vendia romances “negros” [1]. A minha intenção era pedir ao livreiro que me abastecesse de livros para as férias. Que me vendesse dez títulos à sua escolha e que aperfeiçoasse a minha cultura numa área em que eu era ainda um aprendiz. Antes que eu pudesse abrir a boca, um jovem de olhar bem-disposto mas atento, que eu nunca vira antes e que não me conhecia de parte nenhuma, meteu-me entre as mãos o meu próprio Au Bonheur des ogres [2], declarando num tom peremptório:
– Leve este e leia. Depois paga, se tiver gostado.
Fugi dali de livro na mão, envergonhado, encantado, confuso, radiante, mas sem ousar dizer ao jovem livreiro que eu era o autor desse livro e que ele acabara de me fazer entrar na melhor fase da minha vida.
Hoje, quinze anos depois, no TGV que me traz de Lyon, onde fui visitá-lo, tenho a sensação de que devo agradecer a esse passador louco, e a todos os do seu estilo, agradecer-lhes a mais do que um título –o belíssimo nome que ele acaba de dar à sua nova livraria : Passage." 
Daniel Pennac, in Gardiens et Passeurs, (Ed. Adelc, 2004)

[1] policiais
[2] “O paraíso dos papões”, Ed. Terramar.

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