segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Da minha janela, vê-se a Poesia

É de Sebastião da Gama este momento de poesia. Num poema sem título afirmava
Da minha janela/vê-se a Poesia. Embora acrescentasse Não te digo, não,/se é bonita ou feia,/se é azul ou branca,/nem que formas tem. Acabava por sugerir:Queres conhecê-la?/Deixa o teu bordado,/vem para o meu lado,/que já podes vê-la/com teus próprios olhos.
E é disso que se trata . Ver, com os próprios olhos,  a poesia de Sebastião da Gama. Alguns  belíssimos poemas do seu segundo livro, editado há mais de setenta anos.

Meu país desgraçado!…

E no entanto há Sol a cada canto
e não há Mar tão lindo noutro lado.
Nem há Céu mais alegre do que o nosso,
nem pássaros, nem águas…

Meu país desgraçado!…
Porque fatal engano?
Que malévolos crimes
teus direitos de berço violaram?

Meu Povo
de cabeça pendida, mãos caídas,
de olhos sem fé
— busca, dentro de ti, fora de ti, aonde
a causa da miséria se te esconde.

E em nome dos direitos
que te deram a terra, o Sol, o Mar,
fere-a sem dó
com o lume do teu antigo olhar.

Alevanta-te, Povo!
Ah!, visses tu, nos olhos das mulheres,
a calada censura
que te reclama filhos mais robustos!

Povo anémico e triste,
meu Pedro Sem sem forças, sem haveres!
— olha a censura muda das mulheres!
Vai-te de novo ao Mar!
Reganha tuas barcas, tuas forças
e o direito de amar e fecundar

as que só por Amor te não desprezam!
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança Lisboa: Portugália Editora, 1947

Pureza

Vem toda nua
ou, se o não consentir o teu pudor,
vestida de vermelho.

Teus tules brancos,
o azul, que desmaia,
de tuas sedas finas,
guarda-os p’ra outros dias.

P’ra quando, Amor!, 
teu ventre, já redondo,
merecer a pureza do azul…
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança
 Lisboa: Portugália Editora, 1947

Canção inútil

Nunca o Mar me quis ter nas suas ondas
enrolado e perdido.
Sou o Poeta das manhãs fecundas:
vivo me quer o Mar, para cantá-las

Ó Mar, onde se acaba
tudo que é vão!
Ó Mar feito do nada dos regatos
e dos rios efémeros!

Saibam minhas manhãs a maresia!
Haja ranger de cordas de navios
e searas de limos e de peixes,
haja a violência harmónica das ondas
nas manhãs que dão cor aos meus poemas!

Tudo fala verdade ao pé do Mar.
Mesmo as nuvens são velas que se rompem,
castigadas de um Sol que é vento puro
e que tem o direito de passar.
Andam gaivotas tontas à deriva
(acenos da ternura da Manhã…).
Tinem, nos estaleiros, marteladas.
E os motores monótonos, os gritos
dos homens e das aves, o inquieto
verbo do Mar, nas rochas espalmado
a todos os minutos, desde há séculos,
tudo revela a esplêndida verdade
de ao pé do Mar, em tudo que é do Mar,
a Vida estar desperta.

É o ar da Manhã, hálito alegre
do Mar, que enfuna as velas orgulhosas
desta canção poético-marítima.
Religiosamente aqui desfio
meu rosário de vagas.
Canção inútil!
Clarim que anunciou a Madrugada
depois de a Madrugada ter florido…
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança Lisboa: Portugália Editora, 1947.

Segredo de amar

Fosse mais bela a vida e mais sincera…
Como eu lhe quero, mesmo assim!
Tanto lhe dei de mim
que já é menos acre do que fora.


Ah! bem me parece que o Amor melhora
quanto a graça de Deus não fez bonito.
Há lá coisa mais linda que um grito
quando foi o Amor que o pôs cá fora!...

Deixa ser o meu gesto uma grinalda
Nos teus cabelos, Vida!
Deixa que o meu olhar enflore teus olhos.

Adeus, adeus teus dedos ásperos!
Adeus teu rictus doloroso!
- Vida, quem é a minha namorada?
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa EsperançaLisboa: Portugália Editora, 1947

Nasci para ser ignorante...

Nasci para ser ignorante 
mas os parentes teimaram 
(e dali não arrancaram) 
em fazer de mim estudante. 

Que remédio? Obedeci. 
Há já três lustros que estudo. 
Aprender, aprendi tudo, 
mas tudo desaprendi. 

Perdi o nome às Estrelas, 
aos nossos rios e aos de fora. 
Confundo fauna com flora. 
Atrapalham-me as parcelas. 

Mas passo dias inteiros 
a ver um rio passar. 
Com aves e ondas do Mar 
tenho amores verdadeiros. 

Rebrilha sempre uma Estrela 
por sobre o meu parapeito; 
pois não sou eu que me deito 
sem ter falado com ela. 

Conheço mais de mil flores. 
Elas conhecem-me a mim. 
Só não sei como em latim 
as crismaram os doutores. 

No entanto sou promovido, 
mal haja lugar aberto, 
a mestre: julgam-me esperto, 
inteligente e sabido. 

O pior é se um director 
espreita p'la fechadura: 
lá se vai licenciatura 
se ouve as lições do doutor. 

Lá se vai o ordenado 
de tuta-e-meia por mês. 
Lá fico eu de uma vez 
um Poeta desempregado. 

Se me não lograr o fado 
porém, com tais directores, 
e de rios, aves e flores 
somente for vigiado, 

enquanto as aulas correrem 
não sentirei calafrios, 
que flores, aves e rios 
ignorante é que me querem. 
Sebastião da Gama, in Cabo da Boa Esperança
 Lisboa: Portugália Editora, 1947
Sobre o autor
"Sebastião da Gama  é  natural de Vila Nogueira de Azeitão, Setúbal. Nasceu a 10 Abril 1924 e morreu  a 07 Fevereiro de1952.Concluiu o curso de Filologia Românica na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1947, e ainda nesse ano iniciou a sua actividade de professor, que exerceu em Lisboa, Setúbal e Estremoz. Foi colaborador das revistas Árvore e Távola Redonda. 
Sebastião da Gama ficou para a história pela sua dimensão humana, nomeadamente no convívio com os alunos, registado nas páginas do seu famoso Diário (iniciado em 1949). Literariamente, não esteve dependente de qualquer escola, afirmando-se pela sua temática (amor à natureza, ao ser humano) e pela candura muito pessoal que caracteriza os seus textos. Atingido pela tuberculose, que causaria a sua morte precoce, passou a residir no Portinho da Arrábida, com a panorâmica serra da Arrábida a alimentar o culto pela paisagem presente na sua obra. Foi, entretanto, instituído, com o seu nome, um Prémio Nacional de Poesia. Estreou-se com Serra Mãe, em 1945. Publicou ainda Loas a Nossa Senhora da Arrábida (1946, em colaboração com Miguel Caleiro), Cabo da Boa Esperança (1947) e Campo Aberto (1951). Após a sua morte, foram editados Pelo Sonho é que Vamos (1953), Diário (1958), Itinerário Paralelo (1967), O Segredo é Amar (1969) e Cartas I (1994)." escritas org.

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