terça-feira, 8 de setembro de 2020

Centenário de Ruben A.


A vertigem da escrita de Ruben A.
por Fernando Pinto do Amaral
"De seu nome completo Ruben Alfredo Andresen Leitão, nasceu há cem anos, que se completaram no  dia 26 (Maio), em Lisboa, e morreu a 26 de Setembro de 1975, em Londres. A sua obra é das mais originais do primeiro quartel da segunda metade do século XX, seja na pura ficção, seja nos três volumes da autobiografia O Mundo à minha Procura e nos cinco de Páginas - que acrescem aos trabalhos do historiador, ensaísta e crítico. 
Se me pedissem para condensar numa só palavra tudo o que a escrita de Ruben A. evoca em mim, escolheria “vertigem”. Ler as suas páginas leva-nos a um território onde as palavras parecem sempre novas para as coisas que dizem, numa água corrente de factos, ideias, lugares, objectos, imagens, emoções – tudo o que pode caber numa cabeça humana. Se digo vertigem e a relaciono com a escrita, aludo a isso que qualquer leitor fiel de Ruben A. reconhecerá sem esforço: uma qualidade de dizer coisas diferentes por palavras que também parecem diferentes, embora sejam as mesmas que utilizamos todos os dias.
 A arte de tornar diferentes tais palavras é um imenso mérito de Ruben A., que não conheci pessoalmente – tinha 15 anos quando ele morreu, em 1975 – , mas que leio hoje como um desses autores cujo lastro que lhes fica da vida se infiltra sempre na mecânica da sua escrita, nos seus temas, nas suas personagens, nas suas histórias. Para quem não o conhece, uma excelente porta de entrada nesta obra singularíssima na prosa portuguesa do século XX poderão ser os três volumes da sua autobiografia, O Mundo à Minha Procura (Assírio & Alvim, 1992), em que Ruben Alfredo Andresen Leitão – era este o seu nome civil, sob o qual se licenciou em Histórico-Filosóficas e se dedicou à pesquisa historiográfica, com uma paixão especial por D. Pedro V – regressa ao seu amado Porto e à juventude passada nessa Quinta do Campo Alegre por onde também andou a sua prima Sophia de Mello Breyner Andresen, quase da mesma idade. E é dele uma das melhores descrições de um certo Porto que todos conhecemos: “Vivíamos no Campo Alegre rodeados de ingleses. […] Eram todos simpáticos, todos acolhedores a quem quisesse participar dos seus jogos e das suas ceias na Feitoria ou no Clube Inglês. Esta colónia inglesa criou na região do Campo Alegre e no povoado da Foz uma colónia portuguesa, que os ia imitando na maneira de vestir, que começou a jogar golfe em Espinho, que se lançou no ténis pela mão dos manos Bull, que jogava rugby com todo o entusiasmo […] Uma cidade de árvores grandes tão ao gosto inglês, com chuva boa para fumar cachimbo, cidade onde não se fala ao telefone horas seguidas.”
Foi longa a citação, mas perdoar-ma-ão porque também eu admiro a cidade do Porto e porque este fragmento nos serve desde logo para situar Ruben A. no ambiente social que era o seu, nascido numa certa elite portuense que o recebia, o prezava e lhe reconhecia os múltiplos talentos de polígrafo, sem todavia deixar de o ver como uma avis rara ou ser um pouco estranho, dotado de uma curiosidade humana e de uma inquietação existencial que fascinavam quem o conhecia.
Talvez essa atmosfera tenha contribuído para lhe reforçar a noção de uma identidade pessoal muito singular mas por isso mesmo intrigante ou problemática, o que viria a ter consequências em boa parte da sua obra. De qualquer modo, Ruben A. não ficaria preso a preconceitos de nenhuma espécie e, mesmo falando de um ponto de vista estritamente literário – seja lá o que isso for –, nunca foi um autor que se cingisse a convenções ou regras estabelecidas, preferindo correr o risco de aplicar inovações estruturais em algumas narrativas, nas quais usa um humor e uma ironia pouco frequentes no Portugal sério e sisudo dos anos 50 e 60, analisando com mentalidade aberta e cosmopolita as idiossincrasias portuguesas.
Ruben A. gostava desse risco – tinha mundo e leituras para isso – e foi capaz de o correr desde a sua estreia no romance com Caranguejo (1954), livro que apresenta a característica original de um encadeamento invertido, isto é, levando a história a recuar cronologicamente à medida que avançam as páginas. O seu espírito independente precisava desse desafio, encarado quase como um jogo, e agradava-lhe esse género de provocações ao leitor, mas também a um meio literário atraído e ao mesmo tempo assustado pela irreverência deste homem e por todas as suas invulgares e talvez demasiadas qualidades.
 E no entanto, no olho do furacão, no centro um pouco irreal desse meteoro que foi a sua vida, é difícil saber quem era Ruben A., ou quem era o Ruben A. que vemos transparecer ao longo de linhas que nos seduzem pelo modo como nelas se contaminam vida e obra, mas sabendo fugir em várias ocasiões para universos que o autor criava na sua curiosa imaginação, mundos nos quais subverte as leis da verosimilhança realista, como acontece naquele que é talvez o seu romance mais lido ou conhecido. Estou a falar d’ A Torre da Barbela (1964), livro estranho, movimentado e desconcertante, centrado em torno de um velho solar ou castelo minhoto, a “Torre da Barbela”, por onde desfilam os oito séculos da História de Portugal através de personagens vivas e mortas que dialogam umas com as outras num ambiente fantasmagórico e de recorte quase surrealista. É uma das mais vertiginosas experiências de leitura que podemos ter, simbolizando também a profundíssima ligação de Ruben A. com a paisagem do Alto Minho, onde se ergue a Torre da Barbela: “É verdade, entre mim e o Alto Minho existe um entendimento puro, de sonho, saudado em azul e pôr do Sol.”
Detenho-me ainda em mais duas obras que me apetece sempre reler, por exemplo nesses momentos em que, na confusão das nossas casas, encontramos um livro e o abrimos ao acaso, sem conseguir fechá-lo. Refiro-me, em penúltimo lugar, a uma novela intitulada O Outro Que Era Eu (1966), ao longo da qual navegamos pela cabeça de um homem, ali escrito em primeira pessoa, quase em regime de monólogo interior, ao ponto de tal navegação nos fazer submergir dentro dessa cabeça e no labirinto introspectivo das suas dúvidas, dos seus desejos, das suas mais inconfessáveis angústias: “Eu pensava muito durante as longas horas das noites em que o silêncio me fazia companhia. Então mergulhava dentro de mim e tentava iluminar o escuro que nos arcaboiços trazia. Vivia em trânsito.
 Custava-me parar o redemoinho sentimental que inconsciente me levava a ir procurar conforto num ser distante que também era eu. E o mais terrível é que começava a sentir-me só, desamparado, quase com a lepra medonha que a sociedade atribui aos que são diferentes da sua massa, para não dizer do seu pensar.”
Reservo um espaço final para aquele que é pessoalmente o “meu” livro na obra deste homem que foge a quaisquer classificações.
 Estou a falar de Silêncio para 4, que veio pela primeira vez a lume em 1973, numa edição da Moraes, e que em 1990 conheceu uma 2ª edição na Assírio & Alvim, acrescida de um iluminador prefácio de Eduardo Lourenço. Ao percorrê-lo, entramos naquilo a que poderíamos chamar uma “zona da verdade” na qual tiramos todas as máscaras e nos deixamos contaminar livremente, incluindo uma eventual troca de vírus. E no entanto, Silêncio para 4 não é isso a que se chama um livro “confessional” – outros haverá na obra de Ruben A. capazes de merecerem mais tal adjectivo.
 Em comparação, este tem a particularidade de poder ser lido como um texto dramatúrgico, já que é todo ele estruturado em diálogos entre um homem e uma mulher a respeito do amor, da amizade, do sexo e das suas ramificações. E a verdade é que, pelo menos numa certa classe social que era a de Ruben A., foi durante este início da década de 1970 que mais se fizeram sentir as consequências da chamada “libertação sexual” dos anos 60.
 É a partir desse contexto que um livro como este nos fala e nos prende da primeira à última página. Como habitualmente sucede com o autor, deparamos também aqui com uma espantosa agilidade verbal, bem definidora de um modo peculiar de conduzir um ritmo que neste caso não é apenas nem exactamente o de uma história, mas sim o de um entrelaçamento de falas que nos tornam cúmplices das suas lúcidas reflexões a propósito do amor e da paixão. O resultado consiste num texto absolutamente único na literatura portuguesa, dotado de virtualidades cénicas que talvez permitissem a sua representação por dois actores cujas imagens e cujas vozes podemos imaginar. Sabemos que Ruben A. escreveu teatro, que tinha o sentido dos diálogos, e temos também em Silêncio para 4 uma prova cabal disso mesmo.
 Mas qual é, então, a situação de onde partem estas páginas? Pois bem, trata-se de um longo e ininterrupto diálogo que durante uma tarde chuvosa e clandestina irá entreter um homem e uma mulher confinados ao tradicional papel de “amantes”, aconchegando-se na cama de um quarto que lhes serve de refúgio e aí protegidos na sequência de uma ligação amorosa já duradoura, com cerca de cinco anos: “Sabes, gosto desta conversa de alcova. Então, quando está a chover, não há nada como uma tarde assim, uma tarde cúmplice da vida, de humor perro, tarde entreolhada, sono de pouco logo a seguir ao orgasmo, sono vizinho da eternidade, pressentimentos que batem à porta, não faz mal, genuflexório expurgado de falsa religião, a nossa religião do amor, crença, uma crença grávida, bêbeda, de chá a ferver, biológica, prenha, de um para o outro. Achas que eu não gosto de ti? Só se vive pelo amor ou pelo dinheiro, mesmo quando se mata por ódio, a morte é por amor, outros matam por questões de dinheiro, de águas, de rixas de família”.
Haveria neste excerto matéria para mais algumas reflexões – mas termino sublinhando até que ponto este livro nos transmite isso que é, de certo modo, uma sensação de destino a cumprir-se, ou seja, a “capacidade de acreditar bem lá no fundo naquilo que é o que não é” – possível hipótese de definição do amor.”
Fernando Pinto do Amaral,  em artigo publicado no JL,  21.05.2020

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