quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Crónica para o meu pai

 
Crónica para  o meu  pai

Vinte e oito migrantes foram detectados a desembarcar na ilha Deserta, situada na ria Formosa (Algarve) ao início da tarde desta terça-feira (15 de Setembro). De acordo com as informações recolhidas pelo DN, o grupo, cuja nacionalidade ainda não foi confirmada, está a ser acompanhado por elementos da Polícia Marítima, da GNR e do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF).
De acordo com as informações da Polícia Marítima o grupo é constituído por 24 homens, três mulheres (uma delas grávida) e uma criança.
A embarcação em que os 28 migrantes chegaram à ilha tem cerca de sete metros e é semelhante às usadas nos outros cinco desembarques ilegais registados na região desde Dezembro. O grupo será transportado para a Base de Apoio Logístico de Quarteira, onde será sujeito à realização de testes de despiste à covid-19, prevendo-se que seja depois entregue ao SEF.
Com  este  grupo sobem para  cerca de 80 os migrantes que chegaram às
praias algarvias desde Dezembro de 2019, quando foram detidos os primeiros 26.   
( Diário de Notícias)

Este é um excerto que retirei de uma notícia do Diário de Notícias de ontem, 15 de Setembro de 2020 e que acaba de ser retomada e desenvolvida nos noticiários  televisivos de hoje, 16 de Setembro. 
Certamente que foi intencional a inclusão deste recorte no início desta conversa a haver consigo, pai. É dia do seu aniversário. É um dia de celebração que sempre manteve ao longo da sua vida. O pai nunca se escusou . Juntou-nos sempre neste dia e a partir de aquilo a que se chama o ocaso do nosso percurso existencial, éramos nós, os filhos, que reagrupávamos, em local sempre a designar,  toda a família.
Hoje venho apenas eu para lhe  dizer que tudo se vai alterando. O recorte da notícia atesta-o. O mundo está em crise. Uma crise que se arrasta e que cresce. Portugal não escapa. Não, pai, não regressámos ao autoritarismo , à falta de Liberdade. O regime democrático permanece. O pai rejubilou com a revolução de Abril. Não tema, pai. Ela está por aí. Talvez com matizes novos, diferentes de alguns sonhos que nos alentavam, com ausência da utopia que nos sustentava, mas está ainda por aí, ou seja, por aqui.
O que aconteceu, pai. É o mundo a desembarcar em nós. Nós que queríamos derrubar muros. Nós que saltávamos fronteiras , somos agora uma porta que se quer aberta para outros que procuram mundo. Um mundo novo. 
Lembra-se como dois  dos seus filhos  transpuseram fronteiras para fugir a uma guerra que não queriam?  Lembra-se de que tantos e tantos, em excesso, partiam para longe , para  as colónias, as tais  parcelas de Portugal, assim diziam os governantes , e enfrentavam  o horror do desterro e da guerra em plena juventude? Lembra-se como outros  abandonavam esse destino e partiam  pela calada da noite , em busca de outro mundo? Era-lhes também roubada essa mocidade jubilosa. Partiam. 
E,  a par desses , outros partiam por outros motivos. Era a utopia de um futuro melhor. Num país  pobre, tanta pobreza doía. E fugia-se à dor  por portas ínvias. Havia mundo para lá do nosso. E saltavam-se fronteiras, tal como hoje tentam estes nossos novos migrantes. Vêm de longe. Do Norte de África em demanda da mesma utopia. Somos o outro mundo a alcançar.
Mas, pai, a situação agravou-se. Há a Covid-19. A peste que chegou , aqui, em Março. Veio de longe, após ter contaminado meio mundo, até se transformar em pandemia. Uma pandemia que ninguém ainda sabe como estancar. Mitigam-na apenas. Estes migrantes enfrentam mais riscos. A peste pode travá-los neste novo mundo. Serão  inspeccionados, testados e talvez intimados a regressar à origem após  um intermitente e indeterminado penar temporário.
Se o pai aqui estivesse  seria , tal como eu, membro de um grupo de risco. Aquele cuja idade determina e que é considerado mais vulnerável à doença.  E imagine estivemos em confinamento, ou seja, fomos obrigados a uma imigração de dois meses em casa. As ruas ficaram desertas. Portugal enclausurou-se e mergulhou num silêncio que chegou a assustar as pedras da calçada. No  Largo,  Camões,  sozinho,  tentava  remar  irado  contra a intempestiva peste   que belicosa pretendia ofuscar a tromba marítima e as outras valorosas intempéries do seu lusitano poema. 
E, pai, agora acabou a clausura, porém  a peste pende sobre nós. Somos ditados por mil e uma prescrições comportamentais. O uso de máscara, a lavagem de mãos com desinfectante, o afastamento social e a proibição de manifestações afectivas. Neste dia do seu aniversário não o poderia abraçar, beijar. Os afectos  estão proibidos. Sentem-se mas não se efectivam ou efectuam. O pai diria melhor tudo isto. Sabia expressar-se maravilhosamente. Aprendi consigo . Apenas fiz essa aprendizagem. Não o superei.
O que quero dizer, expressar-lhe , pai,  é o meu amor por si. É esta saudade que não cessa e que, neste dia, se alimenta de muita memória. Memória de si , da mãe,  de todos nós, nesse tempo feliz em que existimos todos ao mesmo tempo. 
Parabéns, pai. Neste mundo crísico , tenho em si a referência de um outro mundo sonhado e partilhado. 
Um beijo, pai.

4 comentários:

  1. Quantos motivos temos para buscar o segredo dos significados da vida. Mas o amor nos pergunta: trouxeste a chave? Parabéns, Maria José, pela beleza desta reflexão. Manoel de Andrade

    ResponderEliminar