quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A ruralidade vestia-nos a todos


 […] para cada pessoa há coisas que lhe despertam hábitos mais duradouros que todos os demais. Neles são formadas as aptidões que se tornam decisivas em sua existência. E, porque, no que me diz respeito, elas foram a leitura e a escrita, de todas as coisas com que me envolvi em meus primeiros anos de vida, nada desperta em mim mais saudades que o jogo das letras. 
                                                                      Walter Benjamin

(...)Foi um sonho que sobra ainda pelo encanto que me provocou a aprendizagem da leitura e da escrita. Dizia Proust – “ a leitura é uma amizade.(…) Na leitura, a amizade é subitamente reduzida à sua primeira pureza.”
Nunca, então, me acudiu a mais ínfima inquietação de que esse encanto, essa assombrosa aprendizagem não estivesse ao alcance de todos. Quando descobri a verdadeira realidade do meu país, a minha passagem pela Escola Primária já tinha findado  . 
A Escola trazia-nos um tempo diferente que nos ia fazer crescer  e  alargar a compreensão do que nos rodeava. Eram estas algumas das palavras que nossos pais nos diziam sobre a necessidade de ir para a Escola. As crianças não têm uma compreensão real  da sociedade. E a sociedade que me rodeava, nesse tempo remoto era muito  limitada. Talvez, nessa  definição do papel da Escola, os meus pais estivessem  a querer dizer-nos , de forma velada, o que  nos competia descobrir no futuro, quando o conhecimento alargasse os nossos horizontes. Que a vida não se confinava àquilo que os nossos olhos de criança viam.
Viver numa quinta era viver longe do mundo. E para quem tinha uma família numerosa, o mundo era quase constituído pela gente  que a compunha.
Tudo o que nos rodeava era um aglomerado de campos tão semelhantes ao nosso.  E como gostava deles e da gente que os possuía, lavrava ou habitava. Proprietários, lavradores, trabalhadores, camponeses eram todos pessoas como nós. A ruralidade vestia-nos  a todos.  Era o traço que distinguia e definia os meninos que , tal como eu, iam, nesse  dia, para a Escola. A noção de mundo  resumia-se a essa percepção.
As aulas decorreram, nesse primeiro ano, em  constante e maravilhosa descoberta. Os sons dos ditongos, das sílabas e a respectiva concatenação em palavras que se uniam em frases e fabricavam textos que me levavam para lá de qualquer sala, onde quer que estivesse , foi o despertar mais importante da minha vida. Se pudesse determinar o meu real nascimento, colocá-lo-ia nesse ano. O outro ano, em que se registou  o meu  verdadeiro nascimento, passaria a designar-se como o ano zero, o ano em que me puseram num mundo ainda em trevas."
Maria José Vieira de Sousa, in "O livro que já escrevi", pp.114-116

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