quinta-feira, 9 de julho de 2020

Nunc Est Bibendum

Eugénio Lisboa
Eugénio Lisboa nasceu no dia 25 de  Maio de 1930 . Celebrou, neste ano de 2020,  o 90º aniversário. 
Livres Pensantes teve o prazer de o  entrevistar. O resultado foi  uma extensa e rica entrevista, publicada no dia do seu aniversário, que tem sido continuadamente procurada pelos  mais diversos leitores. 
Eugénio Lisboa é um escritor ímpar. Detentor de uma enorme erudição tem, porém,  o distinto traço que o torna  diferente  de muitos outros grandes escritores e que faz dele  um homem inteiro. É um homem simples.  A  simplicidade é nele natural. Acolhe e cativa quem o procura. Tudo nele é autêntico, sem qualquer repercussão das honrarias  que toldam algumas  das mentes dos  intelectuais deste país e do mundo. 
Durante este período pestífero  de confinamento, premiou-nos com um diversificado poemário que foi construindo  quase diariamente. O conhecimento e a agilidade na métrica e na forma poética deram  origem a belos e originais poemas que tivemos o privilégio de ler e de publicar alguns. Conhecemos e deleitamo-nos com   a sua obra . As Memórias, apostas em sete volumes, são sempre um chamamento irresistível. Resolvemos revisitá-las, indo ao primeiro volume , ao tempo iniciático , para saudar o   nascimento deste escritor maior.  
A casa das Tias ( desenho de Dana)
Nunc Est Bibendum 
por Eugénio Lisboa
"A cidadezinha de Lourenço Marques podia passar por uma das mais bonitas do continente africano – era-o nos anos trinta, que foram os da minha infância e era-o, tanto ou mais, em 1976, ano em que a deixei para sempre. Viver ali, crescer ali, aprender ali, amar ali foi uma dádiva de que, todos os dias, tive aguda consciência. Sabia que era bom e repetia com os meus botões: é tão bom estar aqui, não te distraias, repara, minuto a minuto, como é bom o nascer do dia, o pôr-do-sol, o Índico grande, generoso e ameaçador! Goza, sabendo que gozas! Olha que o paraíso não se repete... O paraíso é isto, este espaço, estas praias, estas ruas, estes cinemas, estas livrarias, esta família, estas árvores a que trepamos com fúria, estes amigos. É isto, foi-te dado uma vez e os deuses não gostam de repetir estes dons. É só uma vez – fá-lo durar dentro de ti. Nasci ali, em 1930, num bairro limítrofe, isto é, pobre, não muito longe do cais: o Quebra-Bilhas. Embora eu não tenha dado por nada, esse ano de 1930 nem por isso deixou de ser fértil em acontecimentos de alguma nota. Em 20 de Janeiro desse ano, para começar, o célebre aviador americano Charles Lindberg aterra em Nova Iorque, tendo estabelecido um novo recorde para a travessia aérea do país (14,75 horas) e, logo três dias depois, foi fotografado o planeta Plutão, pelo astrónomo norte-americano Clyde Tombaugh. Em 29 do mesmo mês, demite-se, em Espanha, o general e ditador Primo de Rivera e, dois dias depois, pela primeira vez, na história da aeronáutica, um planador da Marinha dos Estados Unidos da América é lançado de um dirigível, embora a ideia de um porta-aviões aéreo nunca tenha chegado a concretizar-se. Fevereiro não deu nada de assinalável (que eu saiba), mas, em 12 de Março, o líder indiano Gandhi e 78 dos seus seguidores deram início a uma marcha de 241 milhas em direcção ao mar, em protesto contra o monopólio britânico do sal. Foi no dia 31 de Março (sempre de 1930!) que os produtores e distribuidores de filmes, na América, adoptaram formalmente o notório Código de Produção que, durante 30 anos, iria impor regras rígidas ao tratamento cinematográfico do sexo, crime, religião, violência e outros temas controversos (por exemplo, num filme, podia mostrar-se a coxa de uma mulher, mas não a parte de dentro. Soube-se, depois, que Hayes, o autor do código, era um tarado sexual que julgava ser o umbigo o órgão sexual da mulher...) Em 4 de Abril do meu ano, foi demonstrado, pela primeira vez, o videofone bidimensional, com uma ligação feita entre os “Laboratórios Bell” e a sede da “AT & T”, em Nova Iorque. No mês de Junho, no dia 30 (sempre em 1930!), o golfista americano Bobby Jones venceu o Open britânico, abrindo caminho para a vitória do Grande Slam e de outros Opens da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos. Julho e Agosto não deram nada de assinalável ou deram e eu não dei por isso, mas, no dia 2 de Setembro, aviadores franceses completaram o primeiro voo sem escala, da Europa aos Estados Unidos, a bordo de uma nave baptizada com o lindo nome de Point d’Interrogation. O dia 5 de Setembro trouxe um acontecimento original e patusco: dois nova-iorquinos terminaram, nesse dia, a sua viagem de ida e volta a Los Angeles, tendo feito o percurso num Ford, modelo A, de 1929, em marcha atrás! Nove dias depois, no dia 14 de Setembro, os eleitores alemães cometeram uma das maiores borradas da história do mundo, ao elegerem 107 nazis para o Reichstag (Parlamento), elevando esse partido (nazi) ao estatuto de partido principal, com as consequências que se conhecem. Para dar continuidade a este clima de terror, em 29 do mesmo mês, começaram as filmagens do clássico Drácula, interpretado pelo actor Bela Lugosi, o qual desempenhara o mesmo papel no teatro, ao longo dos três anos precedentes. Setembro, como se vê, foi um mês fértil, mas Outubro também não foi nada mau. Logo no dia 5, a aviadora americana Laura Ingalls tornou-se a primeira mulher a atravessar a América do Norte, pelo ar, entre Nova Iorque e Glendale (Califórnia), em 39 horas e 27 minutos. E, logo em 20 do mesmo Outubro, o detective fictício inventado por Conan Doyle (Sherlock Holmes), fez a sua estreia na rádio, interpretado por William Gillette (a série duraria 26 anos). Em 2 de Novembro, o imperador da Etiópia outorga a si próprio o nome de Hailé Selassié, que significa, mítica e sumptuariamente, “O Poder da Trindade”. O dia 5 do mesmo mês deu ao escritor americano Sinclair Lewis (Main Street, Babbitt e Arrowsmith) o “Prémio Nobel”. E o ano fecha, em acontecimentos de nota, com o dia 10 de Dezembro, data em que o famoso Duke Ellington e a sua orquestra de jazz gravaram o que se tornou um dos seus discos mais famosos: Mood Indigo, da “Victor Records”. Ora bem, por que vos trago eu, aqui, no início das minhas tão adiadas memórias, tudo isto? Assinalar o ano de 1930, porquê? Com que fim enfeitar a data do meu nascimento com todas estas guirlandas? Ora porquê! Porque eu acho de bom conselho seguir sempre os grandes exemplos. E não era o escritor norte-americano, de origem arménia, William Saroyan, quem escrevia isto: “Não gosto de gabarolices, mas gostaria de saber por que diabo teria nevado no ano em que eu comecei a escrever, quando, antes disso, desde 1856, nunca tinha nevado em toda a história do Vale de San Joaquín”? Eu diria, pondo-me em eufórica sintonia com o autor de O Rapaz do Trapézio Voador, que, não sendo de gabarolices, muito gostaria que me dissessem porquê, sim, porquê, no ano em que nasci, ocorreram tantas coisas dignas de registo! Poderão responder-me que, provavelmente, em todos os anos, têm ocorrido coisas dignas de registo, mas eu vejo nessa resposta uma má vontade digna do maior registo! Posto o que, passemos adiante. Meu pai era, por altura do meu nascimento, um pequeno funcionário dos Correios, de escassos meios financeiros e com muitos filhos: seis, ao todo, embora eu só tenha tido consciência de mais dois irmãos (os outros morreram antes de poder dar por eles). Embora inteligentíssimo e dotado de uma grande iniciativa e capacidade de trabalho – apenas com a quarta classe de instrução primária, chegaria a director – nos anos que corresponderam à minha infância e adolescência, tinha um ordenado pequeno. Como era honesto, nunca teve proventos exteriores ao salário de funcionário público e isso fez com que, até muito tarde, vivêssemos em residências modestas de bairros bastante excêntricos – longe da estação central dos Correios, na Baixa, para onde ia, todos os dias, a pé: de manhã e depois do almoço, regressando, igualmente, a pé. No verão e outono, com o calor e humidade (que chegava aos 98%) não era pequeno feito. Mas havia que poupar nos transportes, como havia que poupar em quase tudo. Falei em paraíso, mas aquela cidade, aquele espaço quase infinito, aquela África não era um paraíso bem distribuído: brancos, pretos, mulatos, monhés e chinas não tinham quinhões iguais. Mas crescer, habituado àquela diferença, muito fazia para amortecer as picadas da consciência. Embora, desde muito novo, e porque habitava zonas limítrofes – a Rua Norte, no Alto-Mahé, o Largo João Albasini, a Estrada do Zixaxa – tive como companheiros de brincadeira garotos e garotas de todas as raças. E o Benjamim – mufana na nossa casa do Zixaxa – era como se fosse irmão e qualquer contencioso entre ele e a minha mãe, tinha-me automaticamente a tomar partido por ele.
(...) No Alto-Mahé, no extremo (pouco chic) da Avenida Pinheiro Chagas, ficava a “casa das tias”, as irmãs do meu pai, tuteladas, com mão pesada, pelo tio Tropa, marceneiro habilidoso, dotado de fortes bigodes à Staline e de espessas convicções comunizantes, embora eu nunca tenha averiguado se ele sabia bem o que era o comunismo... Trabalhava muito e com arte e fazia, com isso, pouquíssimo dinheiro, talvez por escrúpulo em avaliar no seu devido valor a qualidade da sua arte. A casa do Alto-Mahé, com rés-do-chão e primeiro andar, imortalizada, para nós, num desenho a tinta-da-china, da Dana Michaelles (pintora florentina encalhada em Lourenço Marques), era, a meus olhos de periférico, um palácio mítico, construído, de ponta a ponta, pelo tio Tropa, com contribuição financeira de meu pai e, creio, do meu tio Fernando, irmão de meu pai. Tinha uma imponente – e pesadíssima – porta de entrada, de madeira trabalhada, uma elaboradíssima escada interior, também de madeira, que unia o rés-do-chão ao primeiro andar e, neste, uma varanda com grades de ferro arrebicadamente lavrado. Ainda hoje lá está, maltratada, massacrada, vandalizada, canibalizada, conspurcada... – da última vez que por ali passei, numa das minhas visitas a Lourenço Marques, olhei-a de fugida, com o coração transido, como quem acaba de assistir a uma profanação. A casa das tias era o lugar de peregrinação, que eu e os meus irmãos visitávamos em certas ocasiões, como quem pisa solo sagrado – vivendo nós em residências modestas, do Largo João Albasini ou da Estrada do Zixaxa ou mesmo, mais tarde, da Rua Mendonça Barreto, todas elas sem frigorífico, sem electricidade (excepto a última), sem telefone e sem telefonia (para nós, em Moçambique, “rádio”), a casa das tias parecia ter tudo, incluindo uma telefonia quase do tamanho de um camião. Majestosa, sim, mas, ainda assim, insuficiente para se ouvir, nas ondas curtas, a BBC, em tempo de guerra... Na pequena “sala pobre”, onde a tia Alice fazia costura, nos intervalos de cozinhar e tudo o resto de que o casarão necessitava, jaziam, há séculos, repousados, solenes, inacessíveis, volumes encadernados de Victor Hugo, Zola e Stefan Zweig. Eu cocava-os, à sorrelfa, deslumbrado, salivando, sabendo que o tio Tropa os lera e eu ainda não. Um dia, aí pelos meus 11 ou 12 anos, achando-me sozinho na saleta, abri, sem ruído, a porta envidraçada da estante, imobilizada no tempo, e surripiei o Amok, do Stefan Zweig. Pus-me a ler, absorvido, sem perceber muito bem certas alusões (só mais tarde vim a saber que se falava ali de um aborto...). De repente, senti uma presença suave, de alguém que entrara na saleta e me espreitava de cima: era a tia Florinda, a tia que eu sempre preferira: achava-a bonita, doce, boa conversadora, sorridente, passa-culpas. Mas senti-me apanhado, balbuciei não sei o quê. Com doce malícia, perguntou-me: “Estás a gostar?” Corando, balbuciei um “sim”, que me incriminava. Mas, para meu espanto deslumbrado, a tia Florinda disse-me, quase com cumplicidade: “Se estás a gostar, leva-o e acaba de o ler em casa. Depois, diz-me se gostaste.” Fiquei a adorar ainda mais a tia Florinda: casaria com o tio Tropa (seu tio também), teria um filho, o Mário e morreria de leucemia, pouco depois. Foi, para mim, uma verdadeira perda: ela fora, de entre todas as minhas tias, a única que se regozijara, sem sombra de ressentimentos, com os meus triunfos no liceu."
Eugénio Lisboa, in Acta Fabula Est, Memórias I, Lourenço Marques - 1930-1947, Editora Opera Omnia, pp. 15-19

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