sábado, 4 de julho de 2020

A loucura fundamentalista

A loucura fundamentalista
por Eugénio Lisboa

 "Vai, por esse mundo fora, uma loucura fundamentalista, que sopra como um vendaval destrutivo dos marcos milenares da História. Tudo, a pretexto do horrível assassinato de um negro americano por um polícia violento e racista.
Há poucos crimes tão repulsivos e mesmo hediondos como o racismo, que existe, implantado – mesmo quando escondido – em todas as sociedades. Como há poucos ressentimentos tão irracionais e grotescos como os que atormentam os temperamentos misóginos. Mas, infelizmente, o mundo está cheio de uns e de outros.
É profundamente natural e até saudável que tenham aparecido, por todo o lado, movimentos de protesto contra o que se passou nos Estados Unidos  e se poderia ter passado noutros países. O ódio racial ofende a ética, ofende a estética e ofende o simples bom senso. É, repito, um crime repulsivo. Dito isto, não se justifica que a reacção a este crime sirva para promover a indiscriminada e pouco democrática destruição, a torto e a direito, de estátuas comemorativas de determinados personagens de vulto da história universal. Não há heróis perfeitos e as imperfeições que põem, aos nossos olhos de hoje, alguma nódoa nos currículos desses gigantes de ontem, devem ser vistas com a devida perspectiva, que nos sussurra terem sido tais defeitos menos inaceitáveis no tempo em que se manifestaram. Nenhum ser humano, nem mesmo de excepção, é feito de uma só peça. A estátua de Churchill, para dar um só exemplo, foi vandalizada e aumentam as pressões de grupos radicais no sentido de ser apeada. Churchill foi um político conservador – e nessa política não me revejo – e um apologista da supremacia da raça branca. Seja dito de passagem que, nessa época, mais de noventa por cento da população branca do globo pensava exactamente o mesmo, ainda que o não confessasse. Mas Churchill não foi só isto. Foi também o homem que, sozinho, nos primeiros tempos da segunda guerra mundial, quase sem armas, com poucos aviões e pouquíssimas munições, enfrentou o poderoso, vitorioso e imparável agressor nazi. Com uma Europa totalmente conquistada e amordaçada e com uma América inicialmente paralisada, este espantoso orador e homem de uma coragem de buldogue, afrontou a máquina militar alemã e infligiu-lhe a primeira estrondosa derrota, na famosa Batalha da Inglaterra em que nunca tantos ficaram a dever tanto a tão poucos pilotos da Real Força Aérea, que, em grande desvantagem numérica, escreveram páginas inesquecíveis. Inesquecíveis, disse: e eu não sou dos que se esqueceram. Apear a estátua deste homem a quem a humanidade tanto deve, só porque acarinhou ideias que, no seu tempo, eram as que prevaleciam – é, quanto a mim, monstruoso. Como seria igualmente monstruoso “apagar”, dos manuais, o século de Péricles e o fulgor de toda a Grécia Antiga, só porque os gregos tinham escravos e tanto estes como as mulheres não tinham direito de voto. Lá se iam pela borda fora Platão, Aristóteles, Pitágoras, Arquimedes… As exigências éticas do século XX (e XXI) não estavam em vigor nos séculos passados. Platão teve treze escravos mas legou-nos portentosos diálogos filosóficos. E não se limitou a ter escravos: deixou-nos inequívocas declarações de misoginia. Exemplos? Aqui vão dois: “A natureza da mulher é inferior à do homem, na sua capacidade para a virtude” ou este: “Os homens cobardes que foram injustos durante a sua vida serão provavelmente transformados em mulheres quando reencarnarem.” Que vamos então fazer de Platão: riscá-lo da História da Filosofia? Mas o grande Aristóteles não lhe fica atrás, quando se trata de denegrir a mulher. Além de afirmar, sem nunca se ter dado ao trabalho de o ir verificar, que a mulher tinha menos dentes do que o homem, disse coisas deste jaez: “A natureza só faz mulheres quando não pode fazer homens. A mulher é, portanto, um homem inferior.” O que dirão as feministas, mesmo as mais razoáveis, de tudo isto? Mas não se ficou por aqui o alegado fundador da Ética, ofertando-nos mais esta pérola: “A mulher é um homem incompleto, um homem castrado.” Ou ainda esta: “A mulher é como se fosse um macho estéril”. Vamos definitivamente abolir Aristóteles, afim de acalmar as teóricas do feminismo? Vamos reescrever a História da Filosofia? Mas não fiquemos por qui. O sábio e venerável Confúcio, que nos legou os seus preciosos Analectos, que são tidos como autênticas lições de vida, não se acanhou ao falar do sexo frágil: "A mulher", ponderou o subtil sábio, “é o que há de mais corrupto e corruptível no mundo.”  E, já agora, que tal esta do impoluto e severo Catão?: “É preciso trazê-la [à mulher} de rédea curta.” Os teólogos e mesmo os santos não se coibiram de dar a sua cotovelada misógina, que era, pelos vistos, a coisa mais natural na época. O teólogo máximo, Tomás de Aquino, não teve papas na língua, dizendo a quem o quisesse ouvir: “A mulher é um ser acidental e falhado. O seu destino é viver sob a tutela do homem.” E que disse o grande Santo Agostinho? Apenas estas coisas suaves: “As mulheres não deviam ser educadas ou ensinadas de modo nenhum. Deveriam, na verdade, ser segregadas, já que são a causa de horrendas e involuntárias erecções em santos homens.” Já o grande protestante Lutero se sentia à vontade para ejacular isto: “Não há maior defeito numa mulher do que desejar ser inteligente.” E até o grande Petrarca, o inventor do soneto e grande poeta do amor, que dedicou as suas Rime Sparse à imortal e inacessível Laura, escreveu, à revelia de tanto amor não correspondido (vingança?) , isto: “Inimiga da paz, fonte de inquietação, causa de brigas que destroem toda a tranquilidade, a mulher é o próprio diabo.”
Por outro lado, Hegel, o filósofo temeroso, nebuloso e muito alemão, tão acarinhado pelas esquerdas duras, também não quis deixar de meter a mão na massa: “A mulher”, disse ele, condescendentemente, “pode ser educada, mas a sua mente não é adequada às ciências mais elevadas, à filosofia e a algumas das artes.” Mas pior, muito pior: já me ia esquecendo que Pitágoras, o grande Pitágoras, o grande homem do número e da harmonia do número e das relações matemáticas e daquele célebre teorema que todos visitámos, este enorme Pitágoras tinha também uma opinião muito firme e muito radical a respeito da mulher. Aqui vai ela: “Existe um princípio bom que gerou a ordem, a luz e o homem; há um princípio mau que gerou o caos, as trevas e a mulher.” Por fim, o próprio Nietzsche, que amou perdidamente a cobiçada Lou Salomé, talvez por efeito da ressaca, escreveu esta coisa cruel: “A mulher foi o segundo erro de Deus”.
Somerset Maugham, que nos legou alguns dos mais notáveis contos que se escreveram no século XX e que é talvez o mais consumado herdeiro do grande Maupassant, nem por isso deixa de exibir nas entrelinhas e até nas linhas das suas estupendas “short-stories” traços inequívocos de misoginia e também de algum racismo (relativamente a orientais e não a negros). A misoginia de Hemingway é evidente, mesmo para o mais distraído leitor e manifesta-se de modo flagrante num dos seus mais notáveis contos: “The Short Happy Life of Francis Macomber”. Vamos apear dos manuais o maior inovador do conto moderno e o inesquecível autor de A Farewell to Arms?
Igualmente misóginos foram-no, até certo ponto, Voltaire, Flaubert, Schopenhauer, Freud, Strindberg, Dostoiewsky, Wilde, Groucho Marx e por aí fora. Vamos bani-los todos e empobrecer monstruosamente toda a nossa cultura? Ou vamos, mais humildemente e mais produtivamente, reconhecer que os seres humanos não são feitos de uma só peça, havendo, até nos mais excepcionais, facetas menos estimáveis? Melhor do que ninguém, disse-o Nietzsche, ao deixar para a posteridade esta fulgurante medalha: “Além de ser um decadente, eu sou também o contrário”.  Fique isto para meditação dos fundamentalistas mais assanhados." 
Eugénio Lisboa, em Crónica publicada na rubrica PRO MEMORIA,  do JL nº1298,  de 1 a 14 de Julho de 2020

3 comentários:

  1. Só um erudito como Eugénio Lisboa para nos trazer com “os marcos milenares da História” seu belíssimo texto para a defesa de Churchill. Em 2002 a enquete da BBC o escolheu como o maior britânico de todos os tempos e agora setores do Reino Unido falam de revisão citando indianos, curdos e afegãos.
    “Não há heróis perfeitos” escreve Lisboa, caso contrário teríamos que riscar, entre tantos outros, Platão, da História da Filosofia, porque teve treze escravos e afirmou que “A natureza da mulher é inferior à do homem, na sua capacidade para a virtude”. Causam surpresa declarações de homens tão sábios como Platão e Aristóteles que viveram no Século de Péricles e, como atenienses, devem ter convivido com Aspásia, uma mulher bela e extraordinariamente culta. Era amiga de Sócrates e amante de Péricles. Plutarco a descreve com as luminosas tintas da intelectualidade contando que em sua casa os grandes intelectuais gregos debatiam os problemas filosóficos e políticos do seu tempo.
    Essa misoginia parece ter realmente contaminado uma ilustre galeria de homens cultos do passado. É muito estranho que Tomás de Aquino, o grande teólogo do catolicismo -- quem sabe pela influência de seus mestres Aristóteles e Averrois, já que este dizia que “A mulher é um homem imperfeito” -- tenha dito que “A mulher é um ser acidental e falhado”. No mínimo uma irreverência espiritual, ainda que impessoal, ante a concepção de Maria de Nazaré e o nascimento de Jesus, fatos tão caros na História da Igreja.
    Mesmo que os defeitos de ontem “devam ser vistos com a devida perspectiva” que diria Petrarca – em cujos versos bebi o mais puro lirismo -- se na sua imortalidade, não a literária, pudesse vislumbrar a extraordinária obra pedagógica de Maria Montessori, cujo método educativo é hoje usado em todo o mundo? Certamente se envergonharia de ter dito que a “A mulher é o próprio diabo”.
    Bem, de Nietzsche, depois que “matou” Deus, pode-se esperar tudo, inclusive esta truculência: “A mulher foi o segundo erro de Deus”. Será que alguém, depois de conhecer esse desatino, lhe perguntou como ele chegou ao mundo?
    Diante de tantos ingratos aforismos que maculam a imagem de tantos escritores que amamos, consola-nos saber que a mulher é herdeira do mais belo título da Humanidade: o de MÃE.
    Voltando à loucura fundamentalista com que Eugénio Lisboa titula sua impecável crônica, e considerando as ameaças que pairam sobre a memória de Churchill, lembro-me de uma formosa estátua que vi, há alguns anos, numa passagem por Londres. Retrata uma figura que viveu na Era Vitoriana e talvez tenha sido, na época, tão famosa como a própria rainha Vitória. Como Churchill, também foi heroína de uma guerra, onde salvou muitas vidas. Que esse “vendaval” não derrube a estátua de Florence Nightingale.
    Manoel de Andrade

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  2. Sensacional seu artigo, Sr.Eugênio. Li em suas palavras o equilíbrio e ponderação que faltam para muitas pessoas, em nossos dias.

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  3. Manoel, li e reli o.artigo e sua analise. São.duas peças que refletem uma grande realidade, fundamentada por dois profundos.conhecedores do Ser Humano.
    Nossos parabéns.
    Abraço.

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