quarta-feira, 8 de julho de 2020

Sobre os livros

A vitória e os segredos dos livros proibidos
"De Virgílio a Rushdie, a história está repleta de ataques à liberdade de expressão. Werner Fuld lembra o facto num livro e alerta sobre os cacoetes inquisitoriais nas artes
por Winston Manrique Sabogal 
Muitas vezes o fogo ficou órfão, para alegria da eternidade. Estão aí a Eneida e Lolita, separadas por mais de vinte séculos, mas irmanadas, para além da beleza literária, pelas chamas infrutíferas que seus próprios autores lhes prometeram e com aquelas com que ameaçaram alguns auto nomeados guardiões das ideias políticas, religiosas, sociais, éticas ou morais.
Uma aura de cinzas parece ter sido a sina de muitos livros ao longo dos 35 séculos da criação da escrita. O autor e crítico literário alemão Werner Fuld segue esse rasto vergonhoso do ser humano para relatar a história das obras que foram salvas da censura e perseguição, em Breve historia de los libros prohibidos (RBA). Um livro importante, de todos os tempos e as civilizações, sobre os obstáculos e armadilhas à criação literária que se converte numa chama que traz à tona a necessidade de estarmos sempre alertados  para a perpétua tentação de vigilantes e inquisidores com listas de livros proibidos e um fósforo na mão.
“Não há como negar que a maior parte da literatura universal estimula o pensamento próprio. No interesse da paz social, essa perturbação é intolerável”, afirma em tom irónico Werner Fuld, recordando a crítica de Ray Bradbury em Fahrenheit 451.
As páginas iluminam as passagens que possibilitaram o milagre de podermos desfrutar desses textos “suspeitos” e de escritores salvos quando balançavam à beira do abismo, além de outros que chegaram a cair ou os que foram resgatados, como Jonas da baleia.
Virgilio, Diderot, Dos Passos, Voltaire, Zola, Nabokov, Ovídio, Rousseau, Sartre, Hemingway, Balzac, Faulkner, Gorki, Kant, Melville, Hammett, Joyce, Descartes, Proust, Quialong, Beauvoir, Cleland, Goethe, Wilde, Genet, Solzhenitsyn, Kafka, Flaubert, Lorca, Zweig, Baudelaire, Lawrence, Mandelstam, Sade, Sagan, Ibsen, Hernández, Ginzburg, Bulgákov, Rushdie…
Existem várias classes de mortes, proibições e ressurreições literárias: a dos livros dos quais, depois de criados, o seu próprio autor se arrepende, não mais querendo lhes dar vida; a dos livros que querem viver e cujo autor busca isso a todo custo, mas alguém, um editor ou um amigo, se nega a lhes dar esse direito; e há os livros que uma pessoa mais poderosa, desde um governante até uma instituição religiosa, ou em nome da sociedade, procura eliminar.
“Saber ler (e escrever) é um acto de apropriação do mundo. Aquele que aprende a ler algumas quantas palavras ‘em pouco tempo poderá ler todas as palavras’, como diz Alberto Manguel. E, se compreende que com uma frase se apropriou de uma parte do mundo, não se dará por satisfeito com uma frase apenas”, explica Fuld num ensaio. Uma celebração da maneira em que a criação burlou o destino.
E um brinde àqueles que não deram ouvidos aos derradeiros desejos de muitos escritores de não deixar vestígios de seus textos. Um dos primeiros foi Virgílio. Não se sabe por que, em seu testamento ele ordenou que fosse queimada a Eneida. Por sorte, o imperador Augusto ignorou a sua última vontade. Vinte séculos após os factos que permitiram que o mundo lesse a Eneida, Franz Kafka queimou manuscritos que não lhe agradavam. Mais tarde, porém, o executor de seu testamento, Max Brod, não respeitou a sua vontade, e o mundo pode ler O castelo e O processo.
Um caso em que se juntam no autor o impulso de eliminar primeiro e de publicar depois é o de Vladimir Nabokov com Lolita, clássico do século XX que, quando ainda era um rascunho intitulado O feiticeiro, Nabokov quis queimar e a sua mulher Vera resgatou das chamas. Até que, em 6 de Dezembro de 1953, o autor o concluiu, iniciando uma via sacra em que foi rejeitado por quatro editoras que consideraram a obra “imoral” e muitas coisas mais, até que, dois anos mais tarde, conseguiu publicá-la em Paris pela editora Olympia Press, especializada em obras eróticas. Lolita saiu nos Estados Unidos apenas em 1958, após uma batalha judicial.
A esses fogos individuais somam-se as fogueiras que já acenderam ou quiseram acender governantes de todos os níveis e instituições religiosas ou outras, em nome do bem comum. Desde o mesmo Augusto, que em um dia feliz salvou a Eneida e em outro dia lamentável ordenou a primeira queima maciça de livros em Roma por razões religiosas, até ao nazismo, aos regimes chineses ou aos conflitos nos Balcãs, no Iraque e Irão. A própria Espanha sofreu decisões desse tipo com Francisco Franco, quando em 1939, recém-chegado ao poder que ocuparia por 36 anos, ele ordenou a retirada das obras de autores ditos “degenerados” das bibliotecas. “Franco era católico”, recorda Fuld. “Poderia ter tomado o Index romano como referência, mas a verdade é que não aparecem nesse catálogo nem Goethe nem Ibsen, que faziam parte da lista espanhola.”
São episódios sombrios e assombrosos que têm um capítulo na literatura, porque vários escritores já incluíram essas experiências em seus romances. Entre os casos mais recentes estão Balzac e a costureirinha chinesa, de Dai Sijie, O livreiro de Cabul, de Asne Seierstad, e Lendo Lolita em Teerão, de Azar Nafisi.
As ideias políticas, religiosas ou morais com interesses particulares teriam primazia sobre a arte? A história demonstra que o que existe para além do índice acusador é a vitória da beleza proibida. Do recordar a origem quando a palavra era vida, mas não vivia. Era como a luz do vaga-lume, intermitente, volátil, impossível de segurar, até que os sumérios começaram a dar–lhe corpo com signos traçados com estilete ou buril sobre tabuletas de argila, pedra, madeira ou qualquer objecto nobre que os recebesse. Assim deram início ao caminho para a arte, a eternidade, a viver diante de quem as decifra com a leitura, e a viver e viver diante de quem as revive na própria  boca para lhes dar sons, como estes versos de As flores do mal, de Baudelaire, salvos da inquisição literária:

Vens do céu profundo ou emerges do abismo,
Ó beleza? Teu olhar, infernal e divino,
Verte confusamente o favor e o crime,
E por isso podemos comparar-te ao vinho.

Destruições maciças de livros
A primeira destruição maciça de livros ocorreu na Suméria (entre os rios Tigre e Eufrates) cerca de 5.300 anos atrás, por deterioração, desastres e conflitos bélicos.
A primeira queima de livros em Roma foi ordenada por Augusto no século XII a.C. com obras oraculares e proféticas. Ele queria que ninguém questionasse as suas ideias políticas.
A biblioteca de Alexandria, fundada no início do século III a.C., terminou por motivos múltiplos: incêndios bélicos, ordem de destruição por parte dos árabes, ataques de cristãos, terremotos e falta de recursos.
No século XVI a Igreja Católica criou o Índice de Livros Proibidos, que teve muitas edições, até ser suprimido, em 1966, pelo papa Paulo VI.
Em 1933, na Alemanha, foi promovido o chamado “bibliocausto” nazi , exemplo paradigmático de como a política atenta contra as obras de arte."
Winston Manrique Sabogal, El País, 22.12 2013

6 comentários:


  1. Nessa “aura de cinzas” cuja memória insulta a arte e a cultura “ao longo de 35 séculos”, há outros “hereges” de papel cuja história precisa ser contada.

    Maurice Lachâtre (1814 - 1900) foi um destacado editor e escritor francês, autor de duas obras monumentais: A História dos Papas, em 10 volumes, destruída por ordem da Igreja e a enciclopédia Novo Dicionário Universal pela qual foi condenado a seis anos de prisão por Napoleão III. Fugiu para a Espanha, em 1858, onde abriu uma grande livraria em Barcelona e passou a importar obras de célebres autores da época e entre eles os livros de Marx, cuja obra, O Capital, ele publicara em fascículos na França. Ainda, anteriormente, em Paris, transitando intelectualmente entre os grandes pensadores da época, conheceu e se tornou amigo de Allan Kardec. Já então, como livreiro, encomenda ao Codificador do Espiritismo vários títulos relacionados com a nova Doutrina, somando um total de 300 volumes, os quais chegam à Barcelona devidamente regularizados pela legislação fiscal dos dois países.
    Contudo, ao passar pela vistoria da alfândega foram confiscados pelo inquisidor Antonio Palau Termes, bispo de Barcelona, pretextando que "A Igreja católica é universal, e os livros, sendo contrários à fé católica, o governo não pode consentir que eles vão perverter a moral e a religião de outros países.”
    As obras ficaram retidas na alfândega enquanto em Paris Kardec se posicionou reclamando providências através do Consul francês em Barcelona. Lachâtre pretendia recorrer a instâncias superiores mas, Kardec, aconselhado por seu guia espiritual, resolveu aguardar o julgamento da Igreja.
    O bispo recusou a devolução das obras, as quais foram condenadas a passar pelo ritual de auto de fé. Em 09 de outubro de 1861 -- 27 anos depois da Inquisição ter sido oficialmente abolida da Espanha – numa praça pública de Barcelona, foram queimados 300 volumes relacionados a oito títulos editados em Paris:
    O Livro dos Espíritos, por Allan Kardec;
    O Livro dos Médiuns, por Allan Kardec;
    O que é o Espiritismo?, por Allan Kardec;
    Revista Espírita, dirigida por Allan Kardec;
    A Revista Espiritualista, dirigida por Piérard;
    Fragmento de sonata, atribuído ao Espírito de Mozart;
    Carta de um católico sobre o Espiritismo, pelo doutor Grand;
    A História de Jeanne d'Arc, atribuído a Joana d'Arc pela médium Ermance Dufaux;
    A realidade dos Espíritos demonstrada pela escrita direta", pelo barão de Guldenstubbé.
    Consta que na realização do impiedoso ato estavam presentes um sacerdote trazendo uma cruz numa mão e uma tocha na outra, um notário e um escrivão registrando os fatos, três homens alimentando a fogueira, um agente alfandegário representando o proprietário dos livros e uma grande multidão que vaiava o padre e os seus prepostos com gritos de “Abaixo a inquisição”.
    O chamado Auto de fé de Barcelona acabou tendo um efeito contrário ao que desejava o inquisidor espanhol. O acontecimento foi noticiado pelos grandes jornais do mundo, recriminando a sobrevivência das labaredas da Inquisição e chamando a atenção para as obras do Espiritismo nascente.
    Nessa imensa fogueira, ateada aos catálogos da literatura universal, arderam muitos “mártires”, cujas páginas foram incendiadas pelo fanatismo e pela ignorância. Contudo, até serem consumidas, suas chamas iluminaram seus algozes com o fogo da beleza, do lirismo e da sabedoria.
    Manoel de Andrade

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  2. Manoel de Andrade completa com novas evocações de trágicos e indignos actos que levaram à fogueira outras obras que não foram lembradas pelo autor deste texto. As chamas do ódio e da intolerância atearam muitos extremismos que marcaram obscuramente épocas da História Universal.
    O nosso agradecimento por tão completa e oportuna informação.

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  3. Cara editora,
    certamente nem todos os “trágicos e indignos atos que levaram à fogueira outras obras” poderiam ser lembradas pelo autor do texto. Já é consolador nos ter informado (e eu não sabia) que a Eneida não foi “sacrificada”. Por certo essa relação seria assustadora se algum pesquisador se dispusesse a buscar na História todas as cinzas dessas incontáveis piras literárias.

    Aqui no Brasil, em 19 de novembro de 1937, na cidade de Salvador, militares baianos, a mando do ditador Getúlio Vargas, acenderam uma fogueira que consumiu 1827 livros sentenciados como propaganda do comunismo. 1640 volumes eram de obras de Jorge Amado, então com apenas 25 anos e que já se destacava internacionalmente, na América Latina, com temas de caráter social. Outros autores também sentiram o cheiro de suas páginas queimadas se espalhar pelos céus da cidade, entre eles José Lins do Rego, cuja obra prima, Menino de Engenho, ardeu entre os “condenados”.
    E no Brasil isso não é tudo. Durante a ditadura militar (1964-1985) tivemos um Ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda, que mandou incinerar obras de Graciliano Ramos, Darci Ribeiro, Sartre e Eça de Queirós.

    Mas já que estou comentando em um blog português, e com referência aos “episódios sombrios e assombrosos (...) na literatura”, colocados pelo autor do texto, peço, respeitosamente, ao povo português, que amo e admiro, para recordar uma passagem de um livro, historicamente delicioso, que li há alguns anos e que minha grata memória me leva agora a folhear para contextualizar neste comentário.
    Trata-se da obra A Inquisição Portuguesa, do fecundo historiador António José Saraiva, um idealista que, como eu, teve que deixar seu país para fugir de uma ditadura. Na ante-penúltima pagina da obra ele narra que em 1761 realizou-se em Lisboa o último auto-de-fé do Santo Ofício “morrendo nele o jesuíta Gabriel Malagrida e ao seu lado -- mas apenas em estátua, porque o condenado residia em Londres -- Francisco Xavier de Oliveira, o “Cavaleiro de Oliveira” protestante.”
    Saraiva afirma que tanto Malagrida como Oliveira foram acusados de heresia por obras publicadas sobre o terremoto de Lisboa, em 1755, atribuindo suas causas a um castigo de Deus. Um outro historiador português, Augusto Carlos Teixeira de Aragão, em seu livro Diabruras, santidades e profecias, complementa o sinistro acontecimento relatando que a estátua do Cavaleiro de Oliveira foi queimada com seu livro, Discours pathetéque ou suget des calamites, pendurado no pescoço.
    Como se vê, essa lista é imensa e seus registros podem intimidar ou aterrorizar qualquer escritor comprometido em denunciar as mazelas do poder em todas as suas formas, sobretudo as religiosas ou políticas.

    Manoel de Andrade

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    1. A Inquisição foi a maior fogueira do seu tempo. Em Portugal, foi feroz e assassina.
      Muitos actos indignos enchem a História. As fogueiras dos tempos modernos tiveram outras formas, no entanto não deixaram de ser cruéis e terríficas. O fundamentalismo religioso e o o extremismo político têm banido do coração do mundo a compaixão, a tolerância, a dignidade humana e a liberdade.
      Obrigada por toda a sua importante informação.

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  4. Quanto aprendizado! Informações que nos lembram como é importante que a História não seja esquecida, para que não se repitam mais esses tipos de atos....

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  5. Manoel, dados que foram ressuscitados.
    A sua analise completou o texto inicial com a riqueza de sua profunda e invejável cultura. Parabéns.

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