sábado, 24 de maio de 2014

Tudo foi defraudado


FALA O ARRUMADOR DE AUTOMÓVEIS

Assustado com a miséria e estes anos,
pouco espero de Deus e dos homens.
Não mendigo, olho de soslaio, adivinho,
sem gratidão guardo no bolso os óbolos.
E fui pescador, depois faroleiro: longe
deitava a alma, relâmpago
sobre falésias, em estrelas tocava,
a sirene era o meu grito de amor.
Transluzente e distante e bom
como clarões de um farol nunca foi fácil:
algo se afundava debaixo de mim,
desconhecida culpa. Odeio, sim, odeio
este parque onde chuva e sol impõem as mãos
e na pele penetram sem bálsamo.
Primeiro a luxúria, depois vinho,
escuridão. No fundo de um poço
cujas paredes ressumam lágrimas e avencas.
Custa ganhar a vida e perdê-la.
Tudo foi defraudado, sou eu
- eu ou alguém por mim- quem aperta
desde a infância o nó que me estrangula.
António Osório,in “ A Luz Fraterna”, Poesia reunida, Ed. Assírio & Alvim, 2009

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