sábado, 10 de maio de 2014

O sorriso de Karenine


"Tereza acaricia a cabeça de Karenine mansamente deitada no seu colo. Faz mais ou menos o seguinte raciocínio: Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correcta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder lá viver, e, até com o próprio Tomas, é obrigada a portar-se como uma esposa desvelada porque ela precisa dele. Será sempre impossível determinar  com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos.
A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza, e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma. O verdadeiro teste moral da humanidade ( o teste mais radical, aquele que por se situar a um nível tão profundo nos escapa ao olhar) são as suas relações com quem se encontra à sua mercê: isto é, com os animais. E foi aí que se deu o maior fracasso do homem, o desaire fundamental que está na origem de todos os outros.
Uma vitela aproxima-se de Tereza, estaca ao pé dela e fica a observá-la demoradamente com os seus grandes olhos castanhos. Tereza conhece-a bem . Chama-lhe  Margarida. Gostava de ter baptizado todas as vitelas, mas não conseguiu. Não havia nomes que chegassem. Há trinta anos, pelo menos, com certeza que ainda era assim, com certeza que todas as vacas da aldeia tinham nome. ( E se o nome é sinal da alma , pode bem dizer-se , custe o que custar a Descartes, que as vacas tinham alma.) Mas, depois , a aldeia tornou-se uma fábrica cooperativa e as vacas nunca mais saíram , durante toda a vida, dos seus dois metros quadrados de estábulo. Deixaram de ter alma e passaram a não ser mais do que " machinae animatae". O mundo deu razão a Descartes. 
Ainda tenho nos olhos a imagem de Tereza sentada num tronco, a afagar  a cabeça de Karenin, e a meditar no fracasso da humanidade. Ao mesmo tempo, aparece-me outra imagem: a de Nietzsche  a sair de um hotel de Turim.Vê um cocheiro a vergastar um cavalo. Chega-se ao pé  do cavalo e,  sob o olhar do cocheiro, abraça-se à sua cabeça e desata a chorar. 
A cena passava-se em 1889, e Nietzsche, também ele, já se encontrava muito longe dos homens. Ou, por outras  palavras,foi precisamente nesse momento que a sua doença mental se declarou  . Mas, na minha opinião,  é justamente isso que reveste o seu  gesto de um profundo significado. Nietzsche foi  pedir perdão por Descartes ao cavalo  A sua loucura (e portanto o seu divórcio da humanidade) começa no instante em que se põe a chorar  abraçado ao cavalo. 
E é este Nietzsche que eu gosto , tal como gosto da  Tereza que tem ao colo a cabeça de um cão mortalmente doente  e que a afaga.Ponho-os um ao lado do outro: tanto um como o outro se afastam da estrada  em que a  humanidade, "dona  e senhora  da natureza", prossegue a sua marcha sempre em frente." Milan Kundera, in ” A insustentável leveza do ser”, Publicações D. Quixote

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