terça-feira, 22 de abril de 2014

O meu perfil é a última esperança

De Perfil
Poesia com dor já comprei
ou algo que de poesia
tinha a cordial dissipação

dos poemas que eu não escrevia.

Agora pela romântica
retórica de não ter dinheiro
a vendo avulso mas roubo
no peso como o merceeiro.

Esse pequeno furto é o meu quarto
(de alva) indicador insone
que disca o número de deus
num sub-reptício telefone

deus movediço que é uma rede
de linhas interrompidas
onde caio morta de sede
de jogar comigo às escondidas.

Escondendo o que de frente vejo
de perfil me vedes como os egípcios
não por vício de esconder um deus
mas o deus de esconder um vício.

Se um grama de mim sonego
a que chamo deus por ínvio rito
perdoai-me porque só vos roubo
aquilo em que não acredito
Natália Correia, in "A mosca iluminada" 1972, Editora Quadrante

“O meu perfil é a última esperança de existir um deus que não limita. Fitar o indemonstrável é a minha paisagem preferida. Por isso de perfil me vedes, infatigavelmente proporcionando-me a liberdade de um deus adormentado na cãibra da vossa fé.Até hoje os deuses foram estupidamente demonstráveis na imagem e semelhança das vossas mandíbulas de devoradores do além. E assim morreram de estupidez.
A minha descrença é a última camada de ar de que dispõe o deus que sufocastes com a vossa fé, ó teocidas de excessivamente acreditardes em deuses! A minha descrença é o meu perfil gravado na suspeita de um deus que me trespassa como a dúvida de um cão atravessando uma rua.
Acaso já vistes uma árvore que se mostrasse de frente? De todos os ângulos que tenteis captar a eternidade suspensa numa árvore ela é um perfil, uma coluna de puro silêncio dessa qualquer outra coisa que é a árvore que julgais ver de frente. Contudo não duvidais de que as árvores existem e que num futuro inscrito no calendário do vosso terror elas sairão de si mesmas como labaredas cantantes, arrancando-vos a língua com a sua música. E então sim tereis a guerra, não a que o ar empesta com o mau hálito das coisas separadas, não a que, selando o mal com as requebradas afectações do bem, as formas embriagadas do ser imobiliza no tempo hábil do estar. Mas a guerra do homem com o deus que no homem se ignora, até cessar a obscena oposição entre a verdade e o mito.
Com isto tento dizer-vos que o meu perfil é uma canção esmagada na minha boca frontal e ferida; a largada de um navio carregado de nomes habitados que enrouquece na travessia, o derradeiro e fabuloso esforço para desnudar o delírio de um deus que a minha epiderme subjuga."
Natália Correia, in "A mosca iluminada", 1972, Editora Quadrante

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