terça-feira, 15 de abril de 2014

Ler Manoel de Andrade

"Atravesar el Atlântico no es sólo atravesar un mar, sino también otra historia" Manuel Scorza, " Manuel Scorza: Mito, Novela Historia", Juan E Gonzalez in " Encontros com a civilização brasileira", nº 25, Rio de Janeiro, 1980
Ao ler  o novo livro de Manoel de Andrade , confirmamos a força das palavras de Manuel Scorza. Uma longa história narrada e vivida na primeira pessoa que nos transporta a um continente imenso  que foi martirizado  por dolorosas  convulsões. 
Ler " Nos rastros da Utopia" é descobrir quantos latino-americanos tiveram de lutar pelo quinhão pátrio de cada território, ao longo de vários séculos.
Quando atravessou dezasseis países, na época libertária dos anos setenta, Manoel de Andrade inscreveu-se na história desse  tempo. Um tempo diferente que descreve e caracteriza   numa narrativa memorialista   de grande fulgor emocional em parceria com um   intenso e rigoroso retrato histórico, social , artístico e civilizacional  de  um continente.
No Prólogo desta obra , Manoel de Andrade  explicita factos e introduz informações relevantes, que nos levam a transcrever, com reiterado prazer,  alguns excertos.

Manoel de Andrade no lançamento da obra, em Curitiba-Brasil
"  Faltou muito pouco para que este livro não fosse escrito. Os primeiros capítulos dessas memórias, iniciadas em Santiago, no verão de 1972, foram abandonados por trinta anos na solidão de uma gaveta. Em abril de 2002, quando iniciei os procedimentos para enviar ao Ministério da Justiça meu processo de anistia, resumi em 70 páginas a história de minha peregrinação pela América Latina, a fim de passar aos seus futuros relatores, fatos que pudessem informá-los sobre as razões do pedido. Acabei não enviando o texto, por acreditar que não estavam ali, e sim nos documentos públicos anexados, as peças essenciais para legitimar o processo. Novamente engavetei minha breve história em face da luta pela sobrevivência familiar, que não deixava tempo nem motivação para reavivar meu velho sonho de escrevê-la. O projeto estava completamente esquecido, como esquecida esteve também, por trinta anos, a minha condição de poeta quando, na primavera de 2002, a inspiração bateu, súbita e magicamente em minha porta, e cinco anos depois seus frutos resultaram na publicação do livro Cantares. Finalmente, em 2009, meu primeiro livro, Poemas para la libertad,  lançado em La Paz em 1970, e com outras sete edições  no exterior, era publicado, numa edição bilíngue, em São Paulo. Foi essa inesperada volta à Literatura e a persistente sugestão de parentes e amigos que me fizeram voltar a escrever os fatos aqui relatados. 
Manoel de Andrade rodeado de amigos: o engenheiro Namir Piacentini,
os advogados e ex-presos políticos Genésio Felipe de Natividade
e Vitório Sorotiuk e o professor e ex-preso político Narciso Pires,
presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, do Paraná.
A América Latina que conheci há quarenta anos vivia de joelhos, marcada por brutais desigualdades, regida por forças reacionárias, pela violência das instituições e um profundo abismo entre uma riqueza orgulhosa e a pobreza humilhada. A exploração desumana do trabalho no campo, as massas indígenas deserdadas e famintas, o êxodo rural, a exclusão urbana e a face inconsolável da miséria eram os seus traços vivos e chocantes, marcados pela sobrevivência do feudalismo e pela persistência  dos privilégios colonialistas, que a Independência não modificou.. Atravessei toda a região quando  seu território era, literalmente, o “quintal” dos Estados Unidos e os interesses imperialistas dominavam os grandes “negócios” do continente. Era um tempo em que a direção dos nossos passos era determinada em Washington, e seu ritmo, pelo poder político das burguesias urbanas e as  oligarquias agrárias. Na década de 70  --- indelevelmente marcada pela Guerra Fria --- as esquerdas, em todo o continente, mobilizavam-se para reverter todo esse processo de pilhagem, dependência e marginalidade, preocupadas com a teoria e a prática revolucionárias, visando a conquista de soberania e liberdade. Em torno dessa tese se discutia a natureza da revolução, dividida entre nossa excepcionalidade indo-americana e a visão eurocêntrica do socialismo. Este anseio de liberdade foi um momento fascinante da história latino-americana e aqueles que puderam vivenciá-lo, quer como observador ou como um militante, jamais puderam apagar da alma as luzes das utopias que iluminaram aquele tempo. Fui um desses observadores e o que proponho, nestas páginas, é fazer um inventário não só daquela época, marcada por tanta diversidade e que prodigalizou as mais justas promessas, mas também uma revisão histórica dos conflitos sociais que marcaram os quinhentos anos das lutas libertárias do continente. Os rastros mais antigos e heroicos dessas lutas foram deixados pelos araucanos no Chile e pelas revoluções indígenas da Bolívia e do Peru. Seus exemplos de bravura e de martírio vivem até hoje nas imagens imperecíveis de Lautaro, Caupolicán, Túpac Katari e Túpac Amaru. Suas mensagens abriram, na década de 70, não apenas novas trincheiras ao longo de todo o continente -- onde tantas vanguardas revolucionárias honraram seus Movimentos com o nome desses heróis  --  mas também iluminaram poetas e prosadores cujas obras se alistaram nessa saga libertária.
A década de 1970 foi uma época de contrastes. De luzes que ofuscaram o mundo e de sombras que abateram os povos. De ideais que incendiaram corações e de corações incendiados pelo ódio. Se é verdade que naqueles anos semeou-se tantos sonhos,  também  colheu-se profundas desilusões, cujas cicatrizes continuam abertas em quase todos os países da América. Compromisso, resistência e clandestinidade fizeram o contraponto com a repressão, o exílio e a morte.
Este não é um livro político e aqui não se discute as grandes teses que polarizaram o ideário daqueles anos.Ainda assim, hoje perguntamos: De que valeram o rigor das posições dogmáticas e tantos debates teóricos ante o despojamento e o sacrifício daqueles que entregaram a vida por um sonho?
(…) Com este livro entrego o testemunho de um longo caminhar. Ao deixar o Brasil em março de 1969, meus passos cruzaram 16 países num prolongado  auto-exílio pelo continente,. A América Latina foi minha verdadeira universidade e nestas páginas palpita o espírito curioso de quem buscou saciar sua sede na leitura apaixonada da História, da Literatura e da Arte de tantos povos. Palpita o significado de experiências humanas vividas no convívio caloroso das grandes amizades, na tribuna combativa da poesia e nos amargos momentos da solidão dos cárceres. Palpita ainda um coração angustiado com os passos sem rumo, o olhar vazio e os gestos suplicantes dos filhos do calvário.. Este livro é, sobretudo, o relato de um poeta itinerante, de um bardo errante, profundamente identificado com seu tempo e com sua condição de latino-americano. Um confidente solitário, comprometido com o resgate de uma América  povoada de utopias e com a saga lendária daqueles que ousaram sonhar com um “admirável mundo novo”.
América Latina 
(…) Meu registro é tão somente uma mínima parte da memória esquecida dos anos 60-70 e que ainda está por ser escrita. Seus protagonistas foram aqueles que, entre as flores e os espinhos, construíram um ninho, um berçário de ideias e promessas que nem todos os sobreviventes que ascenderam ao poder souberam honrar nos atos e nos fatos. Nestes embates, a poesia rebelde ocupa uma honrosa galeria de mártires, lembrando dezenas de poetas que empenharam suas vidas, seus sonhos e o encanto de suas metáforas para cantar a mística revolucionária pela lírica dimensão da poesia. Eis porque  estas memórias contam também a aventura de um livro chamado Poemas para la libertad. Um livro que nasceu nas edições panfletárias de estudantes peruanos e cujos   versos  foram publicados  em jornais, revistas, opúsculos,  cartazes e em milhares de panfletos por todo o continente. Seus poemas foram ouvidos em universidades,teatros, galerias de arte, festivais de cultura, congresso de poetas, sindicatos, reuniões públicas , privadas e clandestinas e até no interior das minas  de estanho da Bolívia. Suas edições se esgotavam rapidamente e seus exemplares percorreram a América Latina e o sudoeste dos Estados Unidos levados pelos mochileiros latino-americanos e pelos estudantes e intelectuais chicanos.Um livro proibido, confiscado e tendo que cruzar certa fronteira na bagagem de contrabandistas. Seus versos são filhos do sonho de liberdade que percorria o mundo. Alguns foram escritos  no Brasil e nasceram silenciados pelo medo e pela impotência,  numa pátria esmagada pela repressão. Outros foram se desfraldando ao longo de novas fronteiras, registrando os passos de uma imensa luta que incendiou a América há quarenta anos.
Enfim, estas páginas saem em busca de um passado nem sempre venturoso, e por isso sucedem-se para contar, sobretudo, a história dos vencidos. Vivemos num tempo em que todos os sonhos foram despedaçados e se escrevo estas memórias, é para que se possa ouvir o eco dos hinos que ficaram tão distantes. Meu livro é, acima de tudo, a longa crônica de um poeta que sonhou com o impossível, e cruzou tantas fronteiras acreditando que pudesse mudar o mundo com seus versos. Passados quarenta anos, há entre o que fui e o que sou uma profunda fidelidade. Intactos estão a disposição de indignar-me com as injustiças,um  coração solidário e um sentimento imperecível de gratidão…, aos amigos que ficaram, ao Bom  Deus,  que amparou meus passos  e à vida, por  permitir  que eu chegasse até aqui! Eis porque, caro leitor, convido-o a viajar comigo por caminhos e por um tempo fascinante, em que o sonho e a esperança comandavam os rumos da História. Ventura e desventura, encanto e desencanto são os sabores com que estão temperados os fatos que passarei a relatar.” Manoel de Andrade , in "Prólogo" de “ Nos Rastros da Utopia, uma memória crítica da América Latina, nos anos 70”, Ed. Escrituras, S.Paulo, Brasil

Manoel de Andrade, o escritor Hélio de Freitas Puglielli  e, em segundo plano,
 a artista plástica Lúcia Misael e o engenheiro Sérgio Abujamra Misael,
  ao lado, de perfil, o teólogo e activista quântico Oduvaldo Mansani de Mello.

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