sábado, 26 de janeiro de 2013

Não basta gritar povo


Nesta hora

Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade

Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida

O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe

A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados

Não basta gritar povo é preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar

Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção –

Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste
                 20 de Maio de 1974
Sophia de Mello Breyner Andresen, in “ O Nome das Coisas, 1977”, Obra poética III, 2ª Edição, Editorial Caminho, Lisboa, 1996

1 comentário:

  1. Continua a ser necessário "dizer a verdade toda", como Sofia tão bem escreveu a 20 de Maio de 1974... Hoje, mais do que nunca!... Porque raras vezes no nosso passado andámos tão equivocados, de embuste em embuste, de parcela em parcela, cabisbaixos e sumidos, como agora no negrume destes dias vãos, anestesiados, inúteis, porque a voz do povo, a verdadeira, a autêntica voz ainda não se fez ouvir!... E esperemos que não tarde, para não ser tarde demais!...

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