sexta-feira, 20 de julho de 2012

O Volume da Poesia


 O volume do vazio

O nada anda sem força.
Há em seu fosso
tanta coisa.

Mesmo o abismo
raso, gasto
por uso impreciso.

O que fundo
é de fato
não acha mais azo
neste vocábulo nulo.

Se não se ouve,
um eco de sim
ausculta-se. Daí,
repetir não, NÃO
para afirmar o que é fim.

( Ah, palavras desafinadas
pela própria língua que as engasta!)

Edmar Guimarães in " Águas de Claudel ", Editora UFG, Goiás, Brasil, 2011

O Palácio da Ventura
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busca anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos portas d'ouro, ante meus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Antero de Quental, in "Sonetos Completos", Publicações
Europa-América, Mem Martins


Saga
Trago em mim um exército perdido
algures no meio de uma estrofe
da saga escrita em língua desaparecida.
Eu próprio sou esse exército sem sentido
e esse país de bandeira esfarrapada
que tremula num campo onde perdura
a sílaba mais pura desse canto
que por qualquer mistério ecoa em mim
em horas de esplendor e de desastre.
Talvez porque eu seja o sem sentido 
desse exército perdido numa estrofe
e essa bandeira e esse país e esse fim.


Manuel Alegre, in " Nada está escrito" , Ed. D. Quixote, 2012


Na ilha por vezes habitada
Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.

José Saramago,in “PROVAVELMENTE ALEGRIA”, Editorial CAMINHO,1985

Um mundo
É um sonho ou talvez só uma pausa
na penumbra. Esta massa obscura
que ela revolve nas águas são estrelas.
Entre aromas e cores, um barco de calcário
prossegue uma viagem imóvel num jardim.
Vejo a brancura entre os astros e os ramos.
Dir-se-ia que o ser respira e se deslumbra
e que tudo ascende sob um sopro silencioso.
Nenhum sentido mas os signos amam-se
e o brilho e o rumor formam um mundo.


António Ramos Rosa, in " Acordes" Quetzal Editores , 1990, 2ª edição

1 comentário:

  1. ... "Nada Está Escrito", porque nada foi incrito, que a inscrição em nós começa muito antes do escrito, e ainda muito mais antes do enunciado e concebido. E muito se desprega, se dilui sem incriçaõ sequer!... (Acerca de Nada Está Escrito, de Manuel Alegre)
    ...Deixou há muito de se ouvir o Nada por mais eco que ele possa ter!... (Acerca de "Águas de Claudel" de Edmar Guimarães)
    ... "Eu sou o vagabundo, o Deserdado...", e todos me olham como se fosse o mentor de todas as ideias que circulam no mundo, como se fosse o original do Nada, do não sei do quê, líder de coisíssima nenhuma, de nimguém!... Não!... Não sou "irmão" de ninguém mais! Esperem, não me esperem!Talvez!...(Acerca de "Palácio da Ventura", em "Sonetos Completos", de Antero de Quental)
    ..."O mundo aparece explicado...", como se fosse possível alguém explicar alguma coisa, às segundas, quartas e sextas, pela tardinha onde tudo tem o seu início, quando tudo se explica por si, tudo nasceu antes de haver explicações de coisa alguma... (Acerca de "Provavelmente Alegria")
    ... "Que tudo ascende sob um sopro silencioso..." na placidez das águas paradas, onde um benévolo bafo de brisa se afoga, pois tudo é real quando já o concebemos real, tudo baloiça na placidez do silêncio cheio de vozes, as nossas próprias vozes dentro da nossa voz!... (Acerca de "Acorde" de A. R. Rosa)
    Alguns começos de prováveis sueltos (?)... sobre os poetas referidos e a Poesia)

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