terça-feira, 29 de julho de 2025

Paris era uma festa!

 Paris- 3D Tour Virtual
Paris era uma festa
por Eugènio Lisboa
"Estarmos em Paris, cheios da energia da juventude (eu, com 32 anos, a Maria Antonieta, com 26), era uma festa! Tínhamos, literalmente, mais olhos do que barriga. O dinheiro era pouco, mas o apetite era muito. No admirável livro que Hemingway dedicou aos anos da sua juventude em Paris, logo a seguir ao fim da 1ª guerra mundial, a epígrafe (que o editor lhe colou?) é um excerto de uma carta que o grande escritor americano enviou a um amigo, em 1950, e diz assim: «If you are lucky enough to have lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest of your life, it stays with you, for Paris is a moveable feast.» Nessa primavera de 1963, eu e a Maria Antonieta estávamos no centro dessa “festa móvel”, que era Paris. Vivíamos com sofreguidão: tomávamos o pequeno almoço (nem sempre cedo), almoçávamos, algumas vezes, num pequeno restaurante para camionistas, próximo do hotel (aí conhecemos um estupendo “coq –au vin”) e partíamos, depois, à aventura. Eram livros, era cinema (2 e três filmes por dia, por vezes), eram museus e galerias, era o Sena, eram os boulevards, era a casa de Balzac, era a espantosa casa-museu, de Victor Hugo, na Place des Vosges, era a Rue Vaneau (a “tranquila Rue Vaneau”), onde morara o Gide, era a pura alegria de viver. Caramba, aquilo ia mesmo ficar dentro de nós, para o resto da vida. Eu já ali tinha estado, durante um mês, em 1953, como estudante, ainda com menos dinheiro. Fora uma descoberta! Mas, agora, era diferente: em vez de viajar com um colega do Instituto Superior Técnico, o Graça Baptista, tinha, por companheira, a Maria Antonieta.
Por coincidência, tinha acabado de publicar-se - e encontrava-se bem em evidência, por todo o lado – um romance de Henry de Montherlant, Le Chaos et la Nuit, que logo adquiri (pouco dinheiro, sim, mas devagar...) Ia ser um dos meus grandes encontros literários e vitais. E iria levar-me a escrever um longo ensaio – “Morrer de Velho” – que tenho como sendo talvez o mais importante de quantos escrevi: pelo menos, se tivesse que escolher só um que se salvasse para a posteridade, penso que optaria por esse.  Dizia La Rochefoucauld que os homens não conseguem encarar de frente nem o sol nem a morte. Nesse ensaio eu consegui encarar bem de frente todos os horrores que visitam o envelhecer e o morrer. Serviu-me de purga antecipada. Montherlant confessaria que, ao escrever esse romance, estava a exorcisar o pavor da velhice e da morte. Eu posso dizer que o fiz com ele, mas bem mais cedo do que ele.
Montherlant mergulhava-me, com a sua prosa de alto e impertinente estilo, nos horrores do envelhecer e do morrer e o Fernando Bettencourt ameaçava-me, de carão fechado, embora amigo, com o apocalipse moçambicano, para breve. Mas o apelo de Paris era mais forte. Eu tinha a Maria Antonieta, cuja pedalada era igual à minha, e deixara para trás, no Porto, a Geninha, e, em Lourenço Marques, os meus pais, a tia Maria, os meus sogros e os amigos. E os sítios, e o Índico! Falassem-me de morte e de apocalipses, naquele momento! Eu queria era festa e tinha-a, ali, ao meu alcance, fulgurando por todos os lados, e não ia perdê-la. «There is never any ending to Paris», concluía Hemingway, no seu livro, acabado em vésperas de se matar, «and the memory of each person who has lived in it differs from that of any other.» Na memória dele, Paris já não vive, mas vive ainda na minha e na da Maria Antonieta, que lá voltámos, depois, inúmeras vezes, sempre com vontade de renovar o prazer experimentado, nesse ano em que o caos e a noite se revelaram impotentes para me abaterem, embora se tenham instalado dentro de mim, com força revulsiva. Nos anos seguintes, ainda a viver em Moçambique, sempre que vínhamos à Europa, começávamos por Paris (excepto uma, em que começámos por Londres); depois, vinham outras cidades da Bélgica, da Itália, da Inglaterra, da Espanha, da Holanda, e, por fim, Lisboa. Mas a festa começava em Paris. Mesmo chegados à meia-noite, corríamos ao Bistrot da Brigitte Bardot, ao Arco do Triunfo, e pedíamos o primeiro Bourbon: era o néctar de arranque. No dia seguinte, pela manhã, começava a deambulação. Paris é inesgotável e as galerias de arte da Rue de Seine dão pano para mangas, sem falar na tentação dos “bouquinistes”, de anatoliana memória.
Falei atrás de cinema e na voracidade com que víamos todos os filmes que nos apareciam pela frente (franceses, ingleses, americanos, italianos, espanhóis, polacos), sobretudo, aqueles cuja exibição em território português era duvidosa. O cinema era um gosto (um vício!), que nos ficara – a mim e à Maria Antonieta – da infância e adolescência. Mas era, também, no seu melhor, uma grande arte. Mal recebida, de início, pela intelectualidade mais sofisticada. O romancista Georges Duhamel, autor da celebradíssima  Confession de Minuit e da não menos famosa e longuíssima série romanesca dos Pasquier, considerava o cinema «un divertissement d’ilots, un passe-temps d’illétrés.» E Edmond Sée, no Mouvement Dramatique, dizia esta barbaridade, que, na altura era um cliché: «Le plaisir, l’agrément avant tout  visuels du spectacle dans une salle de cinema n’ont qu’un bien lointain rapport avec le plaisir intellectuel du spectateur dans une salle de théatre.» E, já agora, o eminentíssimo crítico literário, Paul Souday, resumia o assunto neste emblema imortal: «O cinema é inferior ao café-concerto.» Exemplos clássicos de reacção à mudança. A verdade é que nem o cinema matou o teatro nem o teatro impediu que o cinema se desenvolvesse. Se o teatro filmado não tem a força vital, de presença física, do teatro no palco, a verdade é que, em contrapartida, se podem fazer, no cinema, proezas que a melhor tecnologia teatral não é capz de acomodar. A Odisseia no Espaço ou Os Sete Samurais não são viáveis num palco te teatro.
Paris era uma festa intelectual, mas não era menos uma festa gastronómica. Mesmo nos “petits coins”, nos restaurantes despretensiosos, a comida era saborosa. Nesta altura (começo dos anos sessenta), comia-se tão bem em Paris como mal em Londres.
Comia-se bem e comia-se demais. Dizia Montesquieu que o almoço mata metade de Paris e o jantar mata a outra metade. Não sei se é verdade e até desconfio que não é: come-se bem mas come-se devagar e com tempo e isso faz mais por um coração saudável do que o comer mal e à pressa dos ingleses e americanos. Em Paris, come-se pachorrentamente, fala-se daquilo que se come e, de caminho, diz-se mal do governo, o que sempre ajuda. E, sobretudo, almoçar, em Paris, significa mesmo almoçar e não beber um obsceno “pint” de cerveja e desandar: isto, sim, mata!
Ver o Louvre, ver o Museu Rodin, ver a Orangerie, passear nas Tulherias, debicar nas galerias, passear no Sena, descansar numa esplanada enquanto se dava uma olhadela aos últimos “bouquins” desocultados de algum tabuleiro encostado ao rio, que, imperturbavelmente fluía – era parte da festa e fazia bem ao coração, que se não fatigava, porque participava!" 
Eugénio Lisboa, in Viagem à Europa de Acta Est Fabula , Memórias III - Lourenço Marques Revisited (1955-1976), Editora Opera Omnia,Outubro de 2013, pp.209-212

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