Paris- 3D Tour Virtual
Paris era uma festa
por Eugènio Lisboa
"Estarmos
em Paris, cheios da energia da juventude (eu, com 32 anos, a Maria Antonieta,
com 26), era uma festa! Tínhamos, literalmente, mais olhos do que barriga. O
dinheiro era pouco, mas o apetite era muito. No admirável livro que Hemingway dedicou
aos anos da sua juventude em Paris, logo a seguir ao fim da 1ª guerra mundial, a
epígrafe (que o editor lhe colou?) é um excerto de uma carta que o grande
escritor americano enviou a um amigo, em 1950, e diz assim: «If you are lucky
enough to have lived in Paris as a young man, then wherever you go for the rest
of your life, it stays with you, for Paris is a moveable feast.» Nessa
primavera de 1963, eu e a Maria Antonieta estávamos no centro dessa “festa
móvel”, que era Paris. Vivíamos com sofreguidão: tomávamos o pequeno almoço
(nem sempre cedo), almoçávamos, algumas vezes, num pequeno restaurante para
camionistas, próximo do hotel (aí conhecemos um estupendo “coq –au vin”) e
partíamos, depois, à aventura. Eram livros, era cinema (2 e três filmes por
dia, por vezes), eram museus e galerias, era o Sena, eram os boulevards, era a
casa de Balzac, era a espantosa casa-museu, de Victor Hugo, na Place des
Vosges, era a Rue Vaneau (a “tranquila Rue Vaneau”), onde morara o Gide, era a
pura alegria de viver. Caramba, aquilo ia mesmo ficar dentro de nós, para o
resto da vida. Eu já ali tinha estado, durante um mês, em 1953, como estudante,
ainda com menos dinheiro. Fora uma descoberta! Mas, agora, era diferente: em
vez de viajar com um colega do Instituto Superior Técnico, o Graça Baptista,
tinha, por companheira, a Maria Antonieta.
Por
coincidência, tinha acabado de publicar-se - e encontrava-se bem em evidência,
por todo o lado – um romance de Henry de Montherlant, Le Chaos et la Nuit, que logo adquiri (pouco dinheiro, sim, mas
devagar...) Ia ser um dos meus grandes encontros literários e vitais. E iria
levar-me a escrever um longo ensaio – “Morrer de Velho” – que tenho como sendo
talvez o mais importante de quantos escrevi: pelo menos, se tivesse que
escolher só um que se salvasse para a posteridade, penso que optaria por
esse. Dizia La Rochefoucauld que os
homens não conseguem encarar de frente nem o sol nem a morte. Nesse ensaio eu
consegui encarar bem de frente todos os horrores que visitam o envelhecer e o
morrer. Serviu-me de purga antecipada. Montherlant confessaria que, ao escrever
esse romance, estava a exorcisar o pavor da velhice e da morte. Eu posso dizer
que o fiz com ele, mas bem mais cedo do que ele.
Montherlant
mergulhava-me, com a sua prosa de alto e impertinente estilo, nos horrores do
envelhecer e do morrer e o Fernando Bettencourt ameaçava-me, de carão fechado,
embora amigo, com o apocalipse moçambicano, para breve. Mas o apelo de Paris
era mais forte. Eu tinha a Maria Antonieta, cuja pedalada era igual à minha, e
deixara para trás, no Porto, a Geninha, e, em Lourenço Marques, os meus pais, a
tia Maria, os meus sogros e os amigos. E os sítios, e o Índico! Falassem-me de
morte e de apocalipses, naquele momento! Eu queria era festa e tinha-a, ali, ao
meu alcance, fulgurando por todos os lados, e não ia perdê-la. «There is never
any ending to Paris», concluía Hemingway, no seu livro, acabado em vésperas de
se matar, «and the memory of each person who has lived in it differs from that
of any other.» Na memória dele, Paris já não vive, mas vive ainda na minha e na
da Maria Antonieta, que lá voltámos, depois, inúmeras vezes, sempre com vontade
de renovar o prazer experimentado, nesse ano em que o caos e a noite se
revelaram impotentes para me abaterem, embora se tenham instalado dentro de
mim, com força revulsiva. Nos anos seguintes, ainda a viver em Moçambique,
sempre que vínhamos à Europa, começávamos por Paris (excepto uma, em que
começámos por Londres); depois, vinham outras cidades da Bélgica, da Itália, da
Inglaterra, da Espanha, da Holanda, e, por fim, Lisboa. Mas a festa começava em
Paris. Mesmo chegados à meia-noite, corríamos ao Bistrot da Brigitte Bardot, ao
Arco do Triunfo, e pedíamos o primeiro Bourbon: era o néctar de arranque. No
dia seguinte, pela manhã, começava a deambulação. Paris é inesgotável e as
galerias de arte da Rue de Seine dão pano para mangas, sem falar na tentação
dos “bouquinistes”, de anatoliana memória.
Falei
atrás de cinema e na voracidade com que víamos todos os filmes que nos
apareciam pela frente (franceses, ingleses, americanos, italianos, espanhóis,
polacos), sobretudo, aqueles cuja exibição em território português era
duvidosa. O cinema era um gosto (um vício!), que nos ficara – a mim e à Maria
Antonieta – da infância e adolescência. Mas era, também, no seu melhor, uma
grande arte. Mal recebida, de início, pela intelectualidade mais sofisticada. O
romancista Georges Duhamel, autor da celebradíssima Confession
de Minuit e da não menos famosa e longuíssima série romanesca dos Pasquier,
considerava o cinema «un divertissement d’ilots, un passe-temps d’illétrés.» E
Edmond Sée, no Mouvement Dramatique, dizia
esta barbaridade, que, na altura era
um cliché: «Le plaisir, l’agrément avant tout visuels du spectacle dans une salle de cinema n’ont qu’un bien
lointain rapport avec le plaisir intellectuel du spectateur dans une salle de
théatre.» E, já agora, o eminentíssimo crítico literário, Paul Souday, resumia
o assunto neste emblema imortal: «O cinema é inferior ao café-concerto.»
Exemplos clássicos de reacção à mudança. A verdade é que nem o cinema matou o
teatro nem o teatro impediu que o cinema se desenvolvesse. Se o teatro filmado
não tem a força vital, de presença física, do teatro no palco, a verdade é que,
em contrapartida, se podem fazer, no cinema, proezas que a melhor tecnologia
teatral não é capz de acomodar. A Odisseia
no Espaço ou Os Sete Samurais não
são viáveis num palco te teatro.
Paris
era uma festa intelectual, mas não era menos uma festa gastronómica. Mesmo nos
“petits coins”, nos restaurantes despretensiosos, a comida era saborosa. Nesta
altura (começo dos anos sessenta), comia-se tão bem em Paris como mal em
Londres.
Comia-se
bem e comia-se demais. Dizia Montesquieu que o almoço mata metade de Paris e o
jantar mata a outra metade. Não sei se é verdade e até desconfio que não é:
come-se bem mas come-se devagar e com tempo e isso faz mais por um coração
saudável do que o comer mal e à pressa dos ingleses e americanos. Em Paris,
come-se pachorrentamente, fala-se daquilo que se come e, de caminho, diz-se mal
do governo, o que sempre ajuda. E, sobretudo, almoçar, em Paris, significa
mesmo almoçar e não beber um obsceno “pint” de cerveja e desandar: isto, sim,
mata!
Ver
o Louvre, ver o Museu Rodin, ver a Orangerie, passear nas Tulherias, debicar
nas galerias, passear no Sena, descansar numa esplanada enquanto se dava uma olhadela
aos últimos “bouquins” desocultados de algum tabuleiro encostado ao rio, que,
imperturbavelmente fluía – era parte da festa e fazia bem ao coração, que se
não fatigava, porque participava!"
Eugénio Lisboa, in Viagem à Europa de Acta Est Fabula , Memórias III - Lourenço Marques Revisited (1955-1976), Editora Opera Omnia,Outubro de 2013, pp.209-212
Magnífico bom saber a história
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