Gostar de Aprender
por Eugénio Lisboa "No final do 6.º ano, tivemos exame de ciclo e obtive, neste, a
classificação final de 18 valores, o que me valeu o “Prémio
Müller”, dado ao melhor aluno do liceu, nesse ano. Em Matemática,
tivera 19, em História, 18, em Inglês, 17 e, nas restantes, 16. Fiquei,
entre eufórico e assustado, até porque o Liceu Salazar, o único existente em toda a colónia, era conhecido pela sua exigência e, em
matéria de “notas”, era como o seu patrono, em relação às outras
notas: não gostava de abrir os cordões à bolsa...
Os meus pais, orgulhosos (mas, disfarçando o melhor que
podiam), perguntaram-me que presente gostaria eu de receber.
Eu tinha namorado, numa livraria modesta da Praça Sete de Março,
no “Prédio Fonte Azul”, na baixa, dois grossos volumes de um
escritor francês, Roger Martin du Gard: Os Thibault, na edição brasileira da “Globo”. Já lera outro romance deste escritor, O drama
de João Barois (Jean Barois, no original), na tradução portuguesa da
“Inquérito”, e ficara profundamente comovido e estimulado, embora
o problema religioso não tivesse nunca existido, para mim.
Quando a minha mãe foi à livraria, o livro tinha desaparecido: foi uma desilusão. Deram-me, como compensação provisória,
os Emigrantes, de Ferreira de Castro, que li, com bastante interesse
(no começo do ano lectivo descobrira A Selva, do mesmo autor, e a Tempestade, de que também gostara...), mas não era o “presente”
com que tinha sonhado...
Algumas semanas depois, ainda em férias,
a livraria recebeu novo exemplar dos Thibault e avisou os meus pais.
A leitura empolgou-me e abriu-me as portas de uma Europa, de uma
Paris, que passaram, desde então, a viver, de uma forma intensa,
dentro de mim. Os amores “difíceis” de Jacques e Jenny ecoavam,
dolorosamente, os meus “labirintos”, no que dizia respeito às “jeunes
filles en fleur” – que me acenavam, no horizonte, mas de que eu
receava não corresponderem àquele amor – único – que me estava
reservado. Mais tarde, leria, no poeta irlandês, William Butler Yeats,
uns versos belíssimos, que traduziam esta aspiração – impossível – ao
infinito: “It is love that I am seeking for / But of a beautiful unheard
of kind / That is not in the World.”
Em Os Thibault, tudo me interessou: o registo e sondagem precisos, penetrantes e dolorosos dos conflitos humanos, no plano individual e colectivo. A descrição minuciosa (e tumultuosa) das semanas
que precederam a 1.ª Guerra Mundial, a caracterização magistral
dos meios da Internacional Socialista – é claro que me atingiram.
Mas foram sobretudo as relações entre os personagens individuais
(Jacques e Antoine, Jacques e Jenny, Antoine e o pai, Jacques e
Gise, Antoine e Rachel, Madame de Fontanin e Antoine, Antoine
e Philipe) que profundamente me tocaram, revelando-me, com inexcedível mestria e uma espécie de humildade exemplar, todo um
mundo até aí apenas pressentido. Roger Martin du Gard tinha como
modelo supremo, a seguir, o Tolstoi de Ana Karenina e de Guerra e
Paz. A sua grande saga, em que pese aos alados cultores do “genial” e
do “brilhante”, ficará como um grande romance do século XX, que
não desmerece das duas grandes obras do conde russo.
Em Maio do ano em que li Os Thibault, recebera, como presente de anos, de um colega do liceu (Alberto Parente, que poetava
compulsivamente e citava de cor, passagens de Os Miseráveis), um
romance de um autor português – José Régio – de que conhecia, apenas, por ouvir ler, algumas poesias (incluindo, é claro, o inevitável
“Cântico Negro”). O romance intitulava-se Uma Gota de Sangue e
anunciava-se como o primeiro volume de uma saga familiar, com
o título, entre o antiquado, o bizarro e o atraente, de A Velha Casa.
A dedicatória do Alberto, na sua ingenuidade enfática, rezava assim
(com maiúsculas e tudo!):
Ao Eugénio
Os meus votos
De Felicidades,
E um aperto de mão
Tão grande
Como José Régio!
25 / 5 / 1946
Eu, um pouco céptico, em relação aos “entusiasmos” do Alberto,
tinha posto o livro de lado, à espera de um momento propício.
E só no final das férias de inverno, tendo terminado a leitura dos
Thibault, me apeteceu pegar no romance de Régio. É provável que a
figura de Jacques, em especial, no “ciclo” intitulado “Le Pénitencier”,
me tivesse despertado o apetite. O romance de Régio apresentava-se,
de início, com um protagonista “complicado”, Lèlito, num colégio
para semi-internos – espécie de “pénitencier”. Seja como for, encetei
a leitura e o livro empolgou-me. E verifiquei, com orgulho, que a
mestria da prosa e a profundidade e precisão da análise em nada desmereciam do grande romancista francês. Em termos de estilo, Régio ficava-lhe, até, acima: a beleza da sua prosa a um tempo dramática
e escorreitamente clássica, excedia, em qualidade, a “neutralidade”
e auto-apagamento voluntário do Tolstoi francês. Afinal, havia, em
Portugal, um grande ficcionista, de quem, ainda por cima, se dizia
que era um grande poeta!
Além dos valores literários – que eram eminentes! – havia uma
outra característica, que fortemente se adivinhava no homem que
escrevera Uma Gota de Sangue: aquilo com que Camus caracterizava
o homem e o escritor Martin du Gard – “une incroyable honnêteté”.
Percebia-se, naquela quase doentia sondagem dos labirintos psicológicos dos personagens de Régio,” segurando-a”, por assim dizer,
e conferindo-lhe a força das coisas que duram, uma impecável e
inacreditável integridade. E que atenção às minúcias! Les Thibault
chegara a bom porto, ao fim de 20 anos de trabalho esforçado e, na
parte final da sua fabricação, em contexto dramático: a parte final
do livro (“Épilogue”) foi concluída e publicada, à boca da eclosão da
2.ª Guerra Mundial, que acarretaria a ocupação da França. Régio ia
ainda no começo: eu tremia, só de pensar que uma doença, um acidente, fosse o que fosse, pudesse vir a impedir que a vida rica, lenta
e complexa dos habitantes da Velha Casa se completasse por falta de
cronista...
Por altura da morte de Roger Martin du Gard (1958), o grande
biólogo francês Jean Rostand caracterizaria o homem-escritor, nestes
termos, que servem, como uma luva, ao Régio que, já em 1946, eu
pressentia assim: “[...] a lucidez corajosa em face de si e dos outros,
a rectidão inflexível do espírito, a honestidade intelectual levada ao
seu cúmulo, a dignidade e a independência do carácter, todas as
altas virtudes, enfim, que fazem deste admirável escritor um homem
raro entre todos e cujo exemplo colocava como que uma mancha de
pureza na nossa época perturbada.”
Foi este o meu primeiro encontro com José Régio, que viria
a conhecer, pessoalmente, oito anos mais tarde e a cuja obra consagraria não pouco do meu tempo de estudioso da literatura e de
escritor. Régio não me perdoaria, por certo, associar, assim, a minha
descoberta dele àquela outra de um enorme romancista francês, que
ele não estimava e até afectava desprezar. Mas a lição de integridade
que, num e noutro, colhi impede-me de dobrar o meu sentir e o meu avaliar aos de Régio, que me parecem desfocados, infundamentados
e injustos. A melhor homenagem que posso prestar-lhe é fazer como
ele, isto é, pensar por mim.
(Deixo aqui, do grande escritor francês, algumas pérolas, todas
colhidas nos Thibault :
– “Não há verdade, a não ser provisória...
Tactear, hesitar. Não afirmar nada, definitivamente. Todo o caminho
em que nos lançamos a fundo torna-se um impasse. Curarmo-nos do gosto
da certeza.”
– Jacques: “Um dos dias decisivos da minha vida foi aquele em que
compreendi que o que, em mim, era, pelos outros, julgado repreensível,
perigoso, era, pelo contrário, o melhor, o mais autêntico de mim.”
– “O orgulho é a minha alavanca, a alavanca de todas as minhas
forças. Sirvo-me dele. Tenho perfeitamente esse direito. Será que se não
trata, antes de mais nada, de utilizar as nossas forças?”
– “Armadilha do diabo. Disfarçar o orgulho não é o mesmo que ser
modesto. Mais vale deixar saltar à vista os defeitos que se não soube vencer,
fazer disso uma força, do que mentir e enfraquecer, dissimulando-os.”
– “Nunca se está só, quando se está à mesa de trabalho.”
– “É tentador desembaraçarmo-nos do fardo exigente da nossa per
sonalidade! É tentador deixarmo-nos englobar num vasto movimento de
entusiasmo colectivo! É tentador acreditar, porque é cómodo, e porque é
supremamente confortável! Saberás resistir à tentação?”
– “É preciso escolher as virtudes que engrandecem. Virtude suprema:
a energia.”)."
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias, Lourenço Marques.1930-1947, Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp.154-158
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