O Liceu
por Eugénio Lisboa
"O 6.º ano do liceu começou, como de costume, em Setembro
(de 1945). Encontrava-me mais forte, mais desenvolto.
Ter passado, incólume, pelas tragédias de O’Neill tinha-me forta- lecido. “Atravessar” aquilo, sem ficar chamuscado, pelo contrário,
sentir que algo, dentro de mim, se “lavara” e me purificara e fortalecera – dava-me uma sensação de confiança e de força. Nietzsche diz
algures que o que não nos destrói nos torna mais fortes. A passagem
pela experiência da morte de meu irmão e pela leitura das obras de
funda sondagem e desassossego como as de O’Neill e Dostoiewsky,
que, por então, li, longe de me aniquilarem e afundarem numa visão
negra da vida e no desespero, pelo contrário, purgaram-me e, é quase
horrível repeti-lo, fortaleceram-me.
Começou, então, o 6.º ano, aquele que me ia aproximar mais
de uma longa viagem, que me estava reservada: o longo percurso,
de barco, até Lisboa, onde iria frequentar a universidade. Meu pai
não tinha dúvidas – com as notas que eu tinha, ele havia de arranjar
maneira de me mandar estudar... Essa viagem estava-me, pois, prometida e desenhava-se no horizonte, como algo de mítico e remoto.
Uma viagem boa, como a de Ulisses... E, já que estamos nisto, falemos
de viagens e daquelas que não fiz, até aos 17 anos. Como muita gente
da minha geração, a viver em Moçambique, comecei por não viajar.
Viver à beira do Índico majestoso dir-se-ia ser, só por si, um convite
à viagem. Mas o Índico, até pela sua dimensão e pelo que continha
de ameaça, ao mesmo tempo que convidava, afastava. E, de qualquer
modo, para os ali nascidos na década de trinta, ou por aí, o avião
ainda existia pouco – e não existia de todo, intercontinentalmente falando – restando-nos o navio (para grandes percursos ou para varar
a costa de Moçambique), o comboio e o automóvel (que só pouquíssimos possuíam).
Ao contrário do que vulgarmente se pensa, quase sempre
sem fundamento, grande parte da população branca que vivia em
Moçambique pertencia a uma classe média baixa ou muito baixa,
relativamente desprovida de meios financeiros. Grande parte
dos meus colegas não viajava ou viajava pouco. Johannesburg
ou Pretoria, na África do Sul, eram a Meca, para muitos de nós.
Mas era uma Meca com que se sonhava e aonde se não ia. O comboio, que na MacMahon se aperaltava para partir para o Rand
sul-africano constituía, para nós, um mito distante e um remoto
objecto de culto. Alguns – não muitos – contentavam-se com um
salto a Nelspruit, mais pertinho e com o “Kruger Park”, ali ao lado.
Mas os fracos recursos financeiros de meu pai, funcionário dos
CTT – agravados com despesas resultantes de intervenções cirúrgicas necessitadas pelo meu irmão mais velho e que houve que ir
pagando a prestações – não lhe permitiam custear, nem a mim nem
a meus irmãos, uma viagem à África do Sul. O mesmo se passava
com a maioria dos meus colegas e, de certeza, com toda a malta do
Alto-Mahé...O mais que me foi concedido foi a visita épica, que já
contei, à Namaacha e as incursões ao Infulene, à cantina do sr. Cruz.
Aqui, neste mato, como também já contei, sentia-me eu mais em
África, mais pulsando em sintonia com a África profunda, do que
na minha casa do Alto-Mahé: nesta, o mundo era, apesar de tudo,
outro, porque eu “saía”, mentalmente, do calor húmido que me
envolvia e mergulhava, por cortesia do Balzac, do Stendhal ou da
Charlotte Brontë (mais tarde, só um pouco mais tarde, do Thomas
Mann, do Hemingway ou do Pirandello), noutros mundos mais
europeus ou americanos (ou indianos, porque descobrira, por essa
altura, o Tagore, que li com um prazer que hoje, se calhar, não saberia
reencontrar). A África do Sul, a Suazilândia e a Rodésia ficavam ali ao lado, mas, para mim e muitos outros como eu – já o disse – o
combóio ou o automóvel, que ali levavam, eram entidades míticas
e, em qualquer dos casos, totalmente inacessíveis. Nos 17 anos que
vivi em Lourenço Marques, antes de partir para Lisboa, para me
matricular no Instituto Superior Técnico, nunca propriamente viajei – isto é, fi-lo, mentalmente, saturando-me de Paris, com a leitura de
Os Thibault, de Roger Martin du Gard, ou de Florença, com a de
Le Lys Rouge, de Anatole France, da Itália, em geral, com Pirandello
e D’Annunzio, do agreste Yorkshire, com a Jane Eyre, de Charlotte
Brontë, da vasta Rússia, com Dostoiewsky, Tolstoi e Turgueniev e,
em especial, da Roma Antiga, que enche as páginas cruéis e empolgantes do Quo Vadis?"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias, Lourenço Marques.1930-1947, Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp.142-144


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