quarta-feira, 9 de julho de 2025

O Liceu

Lourenço Marques
Eugénio Lisboa , ( Lourenço Marques, 25 de Maio de 1930 - Lisboa, 9 de Abril de 2024) 
O Liceu 
por Eugénio Lisboa
"O 6.º ano do liceu começou, como de costume, em Setembro (de 1945). Encontrava-me mais forte, mais desenvolto. Ter passado, incólume, pelas tragédias de O’Neill tinha-me forta- lecido. “Atravessar” aquilo, sem ficar chamuscado, pelo contrário, sentir que algo, dentro de mim, se “lavara” e me purificara e fortalecera – dava-me uma sensação de confiança e de força. Nietzsche diz algures que o que não nos destrói nos torna mais fortes. A passagem pela experiência da morte de meu irmão e pela leitura das obras de funda sondagem e desassossego como as de O’Neill e Dostoiewsky, que, por então, li, longe de me aniquilarem e afundarem numa visão negra da vida e no desespero, pelo contrário, purgaram-me e, é quase horrível repeti-lo, fortaleceram-me.
Começou, então, o 6.º ano, aquele que me ia aproximar mais de uma longa viagem, que me estava reservada: o longo percurso, de barco, até Lisboa, onde iria frequentar a universidade. Meu pai não tinha dúvidas – com as notas que eu tinha, ele havia de arranjar maneira de me mandar estudar... Essa viagem estava-me, pois, prometida e desenhava-se no horizonte, como algo de mítico e remoto. Uma viagem boa, como a de Ulisses... E, já que estamos nisto, falemos de viagens e daquelas que não fiz, até aos 17 anos. Como muita gente da minha geração, a viver em Moçambique, comecei por não viajar. Viver à beira do Índico majestoso dir-se-ia ser, só por si, um convite à viagem. Mas o Índico, até pela sua dimensão e pelo que continha de ameaça, ao mesmo tempo que convidava, afastava. E, de qualquer modo, para os ali nascidos na década de trinta, ou por aí, o avião ainda existia pouco – e não existia de todo, intercontinentalmente  falando – restando-nos o navio (para grandes percursos ou para varar a costa de Moçambique), o comboio e o automóvel (que só pouquíssimos possuíam). Ao contrário do que vulgarmente se pensa, quase sempre sem fundamento, grande parte da população branca que vivia em Moçambique pertencia a uma classe média baixa ou muito baixa, relativamente desprovida de meios financeiros. Grande parte dos meus colegas não viajava ou viajava pouco. Johannesburg ou Pretoria, na África do Sul, eram a Meca, para muitos de nós. Mas era uma Meca com que se sonhava e aonde se não ia. O comboio, que na MacMahon se aperaltava para partir para o Rand sul-africano constituía, para nós, um mito distante e um remoto objecto de culto. Alguns – não muitos – contentavam-se com um salto a Nelspruit, mais pertinho e com o “Kruger Park”, ali ao lado. Mas os fracos recursos financeiros de meu pai, funcionário dos CTT – agravados com despesas resultantes de intervenções cirúrgicas necessitadas pelo meu irmão mais velho e que houve que ir pagando a prestações – não lhe permitiam custear, nem a mim nem a meus irmãos, uma viagem à África do Sul. O mesmo se passava com a maioria dos meus colegas e, de certeza, com toda a malta do Alto-Mahé...O mais que me foi concedido foi a visita épica, que já contei, à Namaacha e as incursões ao Infulene, à cantina do sr. Cruz. Aqui, neste mato, como também já contei, sentia-me eu mais em África, mais pulsando em sintonia com a África profunda, do que na minha casa do Alto-Mahé: nesta, o mundo era, apesar de tudo, outro, porque eu “saía”, mentalmente, do calor húmido que me envolvia e mergulhava, por cortesia do Balzac, do Stendhal ou da Charlotte Brontë (mais tarde, só um pouco mais tarde, do Thomas Mann, do Hemingway ou do Pirandello), noutros mundos mais europeus ou americanos (ou indianos, porque descobrira, por essa altura, o Tagore, que li com um prazer que hoje, se calhar, não saberia reencontrar). A África do Sul, a Suazilândia e a Rodésia ficavam ali  ao lado, mas, para mim e muitos outros como eu – já o disse – o combóio ou o automóvel, que ali levavam, eram entidades míticas e, em qualquer dos casos, totalmente inacessíveis. Nos 17 anos que vivi em Lourenço Marques, antes de partir para Lisboa, para me matricular no Instituto Superior Técnico, nunca propriamente viajei – isto é, fi-lo, mentalmente, saturando-me de Paris, com a leitura de Os Thibault, de Roger Martin du Gard, ou de Florença, com a de Le Lys Rouge, de Anatole France, da Itália, em geral, com Pirandello e D’Annunzio, do agreste Yorkshire, com a Jane Eyre, de Charlotte Brontë, da vasta Rússia, com Dostoiewsky, Tolstoi e Turgueniev e, em especial, da Roma Antiga, que enche as páginas cruéis e empolgantes do Quo Vadis?"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias, Lourenço Marques.1930-1947, Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp.142-144

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