segunda-feira, 17 de março de 2025

Diz-me o que lês, dir-te-ei quem és

Diz-me o que lês, dir-te-ei quem és
por Eugénio Lisboa
 
Na literatura, como no amor, ficamos admirados
 com as escolhas que os outros fazem.
                                                         André Maurois
 
“Temos sempre curiosidade de saber o que os outros, em especial, os nossos amigos ou simples conhecidos, andam a ler. Como se, a partir de aí, pudéssemos ficar a conhecê-los melhor. Ou por simples curiosidade, sem segundo sentido. Seja como for, temos frequentemente grandes surpresas. De algumas dessas escolhas, partilhamos, outras deixam-nos simplesmente perplexos.
Vejo constantemente, nos jornais, questionários dos mais variados formatos, nos quais acaba por aparecer a inevitável pergunta “quais os seis ou os dez livros que o marcaram” ou “quais os personagens de ficção que mais o impressionaram”. As respostas, na maioria dos casos, são, no mínimo, inquietantes, não pelo que indicam de leituras feitas, antes pelo que indiciam de leituras, mais do que provavelmente, não feitas. Outras vezes, as respostas – as menos interessantes -  revelam apenas um exibicionismo provinciano, como o caso do entrevistado que dá, como personagem de ficção que mais o marcou, o Bloom, do ULISSES, de James Joyce! Como se alguém pudesse acreditar em tal tolice! Como se Joyce tivesse jamais pretendido ou conseguido criar qualquer verdadeiro personagem de ficção! Muito menos, um personagem minimamente atraente! Como se, de uma tão rica panóplia de gente ficcional propiciada pelas grandes literaturas de todos os tempos, alguém se pudesse lembrar de Bloom, como seu personagem preferido!
Mas o que verdadeiramente me surpreende e não pouco me inquieta são certas escolhas, não só por se referirem a obras mais do que insignificantes, como, sobretudo, por dizerem respeito apenas a obras publicadas nos nossos dias: como se o riquíssimo passado não existisse. Como se a literatura tivesse começado ontem ou anteontem. Quando se interroga toda uma coorte de notáveis da nossa praça, acerca de poetas preferidos, fica-se com a ideia perturbante de que a poesia portuguesa começou com a Sophia.: antes dela, nada houve a assinalar.
Eu tive e tenho ainda hoje um grande problema: tento acompanhar, o melhor que sei e posso, a literatura do meu tempo, mas sempre com a angústia de estar a ignorar uma obra-prima do passado, que ainda não tenha visitado. É talvez isto mesmo que se reflecte no atrevido aforismo do conhecido ensaísta e moralista francês, Joseph Joubert (Sec. XVIII/XIX), quando diz: “O pior que há nos livros novos é impedirem-nos de ler os velhos.” Não se diga que é reacionarismo, porque não é. Quantos nunca tiveram, por exemplo, o prazer de ler essa extraordinária obra-prima do romance psicológico e autobiográfico, que é o ADOLPHE, de Benjamin Constant, ou essa perturbante descida aos abismos da condição humana, que é A CONFISSÃO DE STAVROGUINE, de Dostoiewsky, por não quererem perder a última novidade, de que "se“fala”. Quantos nunca leram o sábio, cândido e eternamente saboroso Montaigne, por causa da premência que faz um best-seller aparecido na semana passada. Eu sei que a tentação é grande, porque eu próprio a sinto. Mas há que encontrar um “ equilíbrio delicado” entre as riquezas do passado e as do presente. A pólvora foi inventada pelos chineses, há muitos séculos, e não por qualquer moderno aprendiz de feiticeiro.”
Eugénio Lisboa, em 11.08.2023 

domingo, 16 de março de 2025

Ao Domingo Há Música

 

“ Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia absurda reforma aos dezassete anos.
Amava Simão uma sua vizinha , menina de quinze anos, rica herdeira , regularmente bonita e bem nascida. Da janela do seu quarto é que ele a vira a primeira vez, para amá-la sempre. Não ficara ela incólume da ferida que fizera no coração do vizinho: amou-o também, e com mais seriedade que a usual nos seus anos.
Os poetas cansam-nos a paciência a falarem do amor da mulher aos quinze anos, como paixão perigosa, única e inflexível. Alguns prosadores de romances dizem o mesmo. Enganam-se ambos . O amor aos quinze anos é uma brincadeira; é a última tentativa da avezinha que ensaia o voo fora do ninho (...).
Teresa de Albuquerque devia ser , porventura, uma excepção no seu amor.
O magistrado e sua família eram odiosos ao pai de Teresa , por motivos de litígios , em que Domingos Botelho lhes deu sentenças contra.(…)
E este amor era singularmente discreto e cauteloso. Viram-se e falaram-se três meses, sem darem rebate à vizinhança, e nem sequer suspeitas às duas famílias. O destino que ambos se prometiam era o mais honesto: ele ia formar-se para poder sustentá-la, se não tivessem outros recursos; ela esperava que seu velho pai falecesse para, senhora sua, lhe dar, com o coração, o seu grande património. Espanta discrição tamanha na índole de Simão Botelho, e na presumível ignorância de Teresa em coisas materiais da vida, como são um património!
Na véspera da sua ida para Coimbra , estava Simão Botelho despedindo-se da suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto como o tigre contra as grades inflexíveis da jaula. (...) com o amanhecer esfriou-lhe o sangue e renasceu a esperança com os cálculos.(…)
Simão, porém, entre mil projectos, achara melhor o de ir para Coimbra, esperar lá notícias de Teresa, e vir a ocultas a Viseu falar com ela. Ajuizadamente discorrera ele; que a sua demora agravaria a situação de Teresa.
Descera o académico ao pátio, depois de abraçar a mãe e irmãs , e beijar a mão do pai, que para esta hora reservara uma admoestação severa, a ponto de lhe asseverar que de todo o abandonaria, se ele caísse em novas extravagâncias. Quando metia o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe a mão aberta como quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno papel. Sobressaltou-se o moço; e , a poucos passos distante de sua casa, leu estas linhas:
“ Meu pai diz que me vai encerrar num convento por tua causa.. Sofrerei tudo por amor de ti. Não me esqueças tu, e achar-me-ás no convento, ou no Céu, sempre tua do coração, e sempre leal. Parte para Coimbra. Lá irão dar as minhas cartas; e na primeira te direi em que nome hás-de responder à tua pobre Teresa.”
Camilo Castelo Branco, in “ Amor de Perdição”, Porto Editora, Lda, pp.36,37,38,39

Camilo Castelo Branco (1825-1890) tinha 35 anos quando foi detido e encarcerado por adultério. Durante um ano, o escritor e a amante, Ana Plácido, esperaram julgamento presos na cadeia da relação, no Porto. Foi neste ano de clausura que Camilo escreveu a obra-prima "Amor de Perdição." Assinalam-se, hoje, os 200 anos de nascimento do escritor.
Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco nasceu em Lisboa, mas a morte dos pais  leva-o a ir viver para Trás-os-Montes, em 1836, ao cuidado de tios que zelam pela sua educação, fazendo-o ingressar no seminário de Vila Real. Não admira, por isso, que venha a ser, mais tarde, prefaciador, tradutor e divulgador de obras de natureza religiosa e apologética.
A sua vida emocional é, desde o início, complicada: casado em primeiras núpcias com uma jovem menina, que viria a morrer na expectativa de voltar a receber o marido nas faldas de Friúme, fica a braços com uma filha de uma segunda relação efémera com D. Patrícia Emília. Não obstante, é a história amorosa partilhada com Ana Plácido, a prisão de ambos na cadeia da Relação e a escrita de Memórias do Cárcere e de Amor de Perdição que dão à sua biografia a feição romântica que o tornou conhecido.
Tentando, sem sucesso nem diligência suficiente, cursar Medicina e, mais tarde, Direito, Camilo viverá sempre da sua pena prolífica e lesta, da ficção, do jornalismo e da crítica literária."

Pedro Abrunhosa e  Sara Correia , em  Que O Amor Te Salve Nesta Noite Escura. Música e Letra de Pedro Abrunhosa.