terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Perdi o meu amigo


Em busca das palavras

Quem me dera encontrar palavras fortes
recheadas de coisas e de sons,
tesouros ocultos em caixa-forte,
agrestes com suas cores e tons,
palavras sexuadas e gulosas,
capazes de fremir e de dar fruto,
palavras destemidas e afrontosas,
visando o relativo e o absoluto,
palavras cheias de escuro e de luz,
recheadas de amor e tempestade,
com passada que namora e seduz,
palavras que ocultam mais de metade,
mas dizem que baste para assustar,
palavras bem sedentas de tumulto,
feitas somente para magoar,
cheiinhas, para o caso, de insulto,
palavras que assassinam o canalha,
mas sabem abençoar S. Francisco,
palavras afiadas como navalha,
que, do pescoço infame, fazem petisco,
palavras que são fogo e que queimam,
palavras que ameaçam e cumprem,
palavras que desfloram e que teimam,
palavras que os lordes da guerra estuprem,
palavras fortíssimas, necessárias,
duras, fortes, doces, imprescindíveis,
palavras clássicas, bem centenárias,
que tornem os nossos sonhos possíveis!
                        28.01.2024
Eugénio Lisboa, poema inédito
Perdi o meu amigo

Neste final de 2024, vou em busca das palavras e apenas  encontro uma . Uma que define para mim, este trágico ano -  Perda, a palavra mais dura entre as palavras . Afiada e traiçoeira , rouba-nos quem bem queremos , quando a vida é  ainda uma tremenda necessidade. Perder um amigo. O maior e o melhor é uma irreprimível tristeza, um luto dorido que se arrasta , sem tempo e misericórdia,  por alguém que foi grande ,  magnânimo. Dizê-lo , escrevê-lo ou pensá-lo é como pisar um chão que não existe, que soçobra  sob nós e se afunda na mágoa por quem perdemos.
Neste ano trágico e ingrato, Eugénio Lisboa deixou-nos. Era o mais generoso dos amigos. Cuidava , com dedicada atenção, a amizade que, nele,  era um sentimento maior, tal como o amor. Há quem diga que amizade é uma variante  do amor,  na sua vertente mais nobre. 
Perder Eugénio Lisboa, em Abril, foi o maior atentado perpetrado por 2024. 
Não venho e não quero  falar do escritor, do poeta , do ensaísta, do professor, do intelectual, do tanto que ele foi   ao aliar  l'  esprit de géometrie  e l' esprit de finesse . Venho , hoje, e quero, sim, neste último dia deste escuro ano,   falar do homem afável, atencioso,  humilde , despretensioso, que sabia prendar o amigo, com uma inefável solicitude de constante lealdade .
Perdi o meu amigo . Não há perda maior.

Peregrinação

Peregrinação

Corro o mundo à procura dum poema
Que perdi não sei quando, nem sei onde.
Chamo por ele, e a voz que me responde
Tem o timbre da minha, desbotado.
Às vezes no mar largo ou num deserto
Parece-me que sim, que o sinto perto
Da inspiração;
Mas sigo afoito em cada direção,
E é o vazio passado
Acrescentado...
Areia movediça ou solidão.


Teimoso lutador, não desanimo.
Olho o monte mais alto e subo acima,
A ver se ao pé do céu sou mais feliz.
Mas aí nem sequer ouço o que digo;
O silêncio de Orfeu vem ter comigo
E nega os versos que afinal não fiz.
    17 de Setembro de 1953
Miguel Torga, in Diário VII (199-1959) -  Obra completa Círculo de Leitores, 1995, p.653

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Duas Culturas

Eugénio Lisboa
Duas Culturas
por Eugénio Lisboa
"Num vigoroso texto – como costumam ser os seus... – publicado por Guilherme Valente, na coluna “Opinião”, do suplemento “Mil Folhas” , do Público, de 10 de Janeiro, o inestimável editor da Gradiva levanta (mais uma vez), em tom polémico e fervilhante de indignação, o problema da “cultura [exclusivamente] literata”, que condicionaria e dominaria os meios da comunicação social e a “actividade cultural portuguesa, limitando a sua diversidade.” A reacção de Guilherme Valente tinha, como motor de arranque próximo, o facto de o inquérito do “Mil Folhas”, de 03.01.2004, feito a 29 personalidades sobre “As leituras de 2003”, ter incidido sobre “22 literatos, uma filósofa, uma socióloga e cinco cientistas”. De aqui concluía o editor de tantas e excepcionais obras de divulgação científica “o domínio asfixiante da cultura literata e dos intelectuais literários no suplemento de livros de um dos mais importantes jornais de referência portugueses.” Conclusão justa. Mas outras conclusões igualmente justas e pelo menos tão graves se poderiam tirar: por exemplo, a da completa falta de apetência pelo pensamento científico (e, em grande parte, também pelo filosófico) da maior parte dos nossos literatos. Com consequências visíveis e, já agora, “asfixiantes”, para quem tem que os ler com alguma regularidade... No seu livro, hoje clássico, Souvenirs d’enfance et de jeunesse, Renan, diz, a certa altura, com um triunfalismo só em parte justificado: “O mais vulgar rapazinho de escola está actualmente familiarizado com verdades pelas quais Arquimedes teria sacrificado a sua vida.” Talvez isto fosse verdade – não sei – para os alunos franceses do tempo em que Renan escrevia. Julgo que o mesmo se não poderia dizer, hoje, de tantos dos nossos literatos que apenas ouvem – quando ouvem – “falar de” coisas de ciência, cujo sentido profundo de todo lhes escapa. O que é pena, porque o rigor e a cautela – e o cuidado de “ir verificar” - a que a metodologia cientifica obriga impedi-los-ia de tanta afirmação dogmática, sem perspectiva e tantas vezes francamente disparatada. “A ciência”, dizia Adam Smith, “é o grande antídoto contra o veneno do entusiasmo e contra a superstição.” Este “entusiasmo” tem a conotação pérfida que lhe dão os britânicos e coincide muito aproximadamente com aquela “coragem de afirmar” que o nosso Eça escalpelizava e que é tão frequentemente usada pelos nossos literatos em transe de descoberta de um novo “talento incontornável”. Observava o grande cientista inglês Thomas Henry Huxley que “a ciência não é outra coisa senão bom senso treinado e organizado.” Ora é precisamente uma boa dose de bom senso – bem treinado e bem organizado – que falta, tantas vezes, a tantos dos nossos avaliadores literários (e criadores literários...), aflitivamente desprovidos, por isso mesmo, de um equipamento de travagem que lhes modere o excesso de...entusiasmo.
Uma boa “passagem” pelo universo da ciência, pelas exigências da ciência, pelo rigor e cautela, repito, que a ciência requer e recomenda daria ao discurso literário de quem o produz outra nitidez, outra transparência, outro sabor – e outro valor... Tenho, a propósito de Régio, como ensaísta e crítico literário, chamado a atenção para a cautela com que levantava uma hipótese e longamente a sujeitava a um contraditório cerrado e implacável. Era capaz de ruminar uma hipótese de trabalho, uma ideia, durante anos, sempre suspeitoso de um algo que poderia demoli-la - tão ao contrário daqueles literatos quimicamente puros que, ao primeiro vislumbre de uma ideia ou do fantasma de uma pseudo-ideia, a convertem impetuosamente em teoria inamovível e, logo a seguir, em dogma a aceitar, sob pena de execução sumária. “Toda a ciência tem como ponto de partida um cepticismo, contra o qual se eleva a fé”, dizia, com alguma perfídia, André Gide – e, por outras palavras, disse-o também esse filósofo da ciência que foi Karl Popper.
A ciência ensina o respeito pelos factos, e, quando estes contradizem a bonita hipótese, esta cede o passo a outra que eventualmente os acomode melhor. A ciência, para bem progredir, exige humildade e repele a arrogância e o contentismo fácil. Miguel de Unamuno, apesar da sua desesperada fome de imortalidade, imortalidade que os factos não confirmam facilmente, não hesitou em escrever estas palavras que aqui deixo como tónico incentivador aos nossos “entusiásticos” literatos: “A ciência é a mais intima escola de resignação e humildade porque nos ensina a inclinarmo-nos diante dos factos aparentemente mais insignificantes.” Mas a ciência não se limita a uma lisinha humildade perante os factos: procura, na linguagem em que se exprime, a maior simplicidade e transparência, rejeitando, com vigor, a opacidade em que se revêem, com deleite, os cultivadores de uma falsa “profundidade”. Já tenho visto literatos que buscam a opacidade como um valor precioso a resguardar e promover. Suspeito, sempre, nestes casos, de fraude: a opacidade deliberada esconde sempre uma grande falta de ideias com pernas para andar. Dizia o filósofo americano, Emerson, que “é prova de alta cultura dizer as coisas de maior monta da forma mais simples.” Só os parolos e os provincianos temem a simplicidade e buscam os torturados e invios caminhos da opacidade. Para eles, inovar, “ser avançado”, pisar território novo implica uma escrita tortuosa, “difícil”, opaca e apetecidamente indigerível. Como se enganam! O romancista inglês, George Meredith, no seu romance The Ordeal of Richard Feverel diz ou faz dizer o seguinte, que merece ser meditado pelos “souteneurs” do turvo e do opaco: “A perfeita simplicidade é inconscientemente audaciosa.” E foi por isso que um dos maiores físicos do século XX, Ernest Rutherford, afirmou com energia e acinte, que “uma boa teoria científica deve poder ser explicada a uma empregada de bar.”
Um mundo parece, de facto, separar os modos de estar no mundo – e no pensamento...- dos literatos e dos cientistas. Um mundo parece, de facto separar as “duas culturas”, como lhes chamou C. P. Snow, no seu ensaio célebre: a dos humanistas que não fazem ideia nem do significado, nem da importância do segundo princípio da termodinâmica, e a dos cientistas que nunca leram o David Copperfield, nem o Middlemarch, nem The Waste Land, ou, para nos virarmos para Portugal, Camilo Pessanha, ou Pessoa, ou Pascoais, ou Aquilino, ou Régio (ou Camões, ou Bernardim, ou Florbela...). Este fosso entre as “duas culturas”, com tendência a agravar-se (agudizar-se), devido à aceleração da produção criativa, a ritmo quase alucinante – acabará por  constituir-se em perigo iminente de incomunicabilidade – e suas previsíveis consequências  - entre dois extractos importantes de humanidade, que se confrontam sem hipótese de diálogo. Com, além disso, forte prejuízo de ambas as partes: cientistas, porque lhes escapa o canto profundo que emerge da poesia de Keats, de Baudelaire ou de Sophia, os humanistas, porque lhes foge a poesia igualmente profunda que se esconde (pouco) na demonstração de um teorema de geometria ou numa elegante e fulgurante lei da física. “A verdade” observava Herbert Spencer, “é que aqueles que nunca se ocuparam da ciência não tiveram acesso à décima parte de poesia que os rodeia”. 
Gostaria, no entanto, de fazer uma observação, a bem da verdade: pelo menos, a nível de excelência, mas não só, parece hoje mais fácil encontrar, entre nós, cientistas que leram e amaram Eça, Pessoa, Régio, Sophia, Eugénio de Andrade, Ruy Belo ou David Mourão Ferreira, do que literatos que se tenham mostrado sensíveis à poesia da matemática ou da física. O espírito de abertura mostra-se mais do lado da ciência do que do lado das humanidades: é corrente ouvir escritores ou professores de literatura, não só confessarem que odeiam as ciências, mas, o que é pior, parecerem regozijar-se com isso! Que digo?: gabarem-se disso, exibirem essa inapetência como um troféu, essa incapacidade como um título de glória. De aí, penso eu, a legitimidade do grito de indignação de Guilherme Valente, que, de certo modo, faz eco a uma pergunta-desabafo do grande químico inglês, Sir George Porter, Prémio Nobel em 1967: “Deveremos nós enfiar a ciência pelas goelas abaixo daqueles que não têm por ela qualquer gosto? Será nosso dever arrastá-los, esperneando e aos gritos, para dentro do século vinte e um?” A esta pergunta violenta e deliberadamente extremista, respondia o grande químico: “Receio que sim.” Sir George exagerava: enfiar seja o que for pelas goelas abaixo de seja quem for não é processo eficaz de se criar um gosto duradouro por aquilo que assim se engole. Mas o exagero era puramente retórico, pretendendo enfatizar um desespero com fundamento.
Não sei se era qualquer coisa como isto que o editor da Gradiva pretendia dizer. Mas foi o que me apeteceu escrever, a propósito do seu texto no “Mil Folhas”. Nenhum de nós, nem o editor de Gradiva, nem eu, quisemos propor apenas o triunfo do primário e do óbvio. Até porque, como pode ser nada primária, como pode ser infinitamente subtil e de complexas consequências a sondagem feita pela linguagem mais simples e mais transparente! Realmente, como é belo e não opaco o binómio de Newton. E não será tão belo como o texto de Newton aquele com que Voltaire o celebrou nas Lettres Philosophiques? “
Eugénio Lisboa , em  crónica  publicada na rubrica Ipsissima Verba, da  revista LER.

domingo, 29 de dezembro de 2024

Ao Domingo Há Música


Refresca teu coração. Sofre, sofre, depressa, que é para as alegrias novas poderem vir…
João Guimarães Rosa, “Ave, Palavra”.

Aproxima-se 2025, um outro e novíssimo  ano. Talvez o tão desejado  nobilíssimo ano. Excelente, distinto , tudo pode caber neste superlativo nobre, desde que carregue a nobreza da generosidade , da compaixão, da atenção ao outro, da Liberdade , da Justiça, da equidade entre todas as  gentes de todos os cantos deste mundo . Que seja pródigo na Paz e que refresque os corações para que novas alegrias possam chegar.

Andrea Bocelli  agregou um grupo de  grandes vozes que , num longo  e magnífico  espectáculo,  proporcionam um imenso  prazer de grande e profusa musicalidade.
Andrea Bocelli , em Second Set of Dec 8th, 2024 , no Kia Forum, Inglewood, CA.
 

sábado, 28 de dezembro de 2024

Concerto extraordinário de Natal

 
Concerti straordinari , Concerto de Natal, pela Orchestra e Coro del Teatro alla Scala. Direttore: Pablo Heras-Casado; Maestro del Coro: Alberto Malazzi; Soprano: Caterina Sala; Mezzosoprano: Annalisa Stroppa;Tenor: Giovanni Sala ; Basso: Luca Micheletti. 
Programa
1-Wolfgang Amadeus Mozart, da Vesperae Solennes de Confessore K 339 
Laudate Dominum, com  Caterina Sala, soprano
2- Joseph Haydn , Sinfonia n. 94 in sol magg. Hob. I:94 "La sorpresa" / "Mit dem Paukenschlag“ 
Adagio - 
Vivace assai
Andante Menuet. 
Allegro molto Finale. 
Allegro di molto 
3- Missa in tempore belli in do magg. Hob. XXII:9 "Paukenmesse" 
Kyrie 
Gloria
Credo 
Sanctus
Benedictus
Agnus Dei

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Nomeio a poesia

 Nomeio o mundo
 
Com medo de o perder nomeio o mundo,
Seus quantos e qualidades, seus objectos,
E assim durmo sonoro no profundo
Poço de astros anónimos e quietos.
 
Nomeei as coisas e fiquei contente:
Prendi a frase ao texto do universo.
Quem escuta ao meu peito ainda lá sente,
Em cada pausa e pulsação, um verso.
Vitorino Nemésio, in O verbo e a morte,  Antologia poética, Asa , 2002 

ANVERSO

Dormias. Eu acordo-te.
A manhã imensa oferece-nos a ilusão de um princípio.
Esqueceras-te de Virgílio. Aqui estão os hexâmetros.
Trago-te muitas coisas.
As quatro raízes dos Gregos: a terra, a água, o fogo, o ar.
Um só nome de mulher.
A amizade da lua.
As claras cores do atlas.
O esquecimento, que purifica.
A memória que escolhe e redescobre.
O hábito, que nos ajuda a sentir que somos imortais.
A esfera e as agulhas que dividem o intangível tempo.
A fragrância do sândalo.
As dúvidas a que chamamos, não sem alguma vaidade, metafísica.
A curva do bastão que a tua mão aguarda.
O sabor das uvas e do mel.
Jorge Luís Borges, in obras completas 1975-1985 vol. III , a cifra (1981), tradução de . Fernando Pinto do Amaral, Editorial Teorema,1998
 
Reverso
 
Recordar quem dorme
é um acto vulgar e quotidiano
que poderia fazer-nos tremer.
Recordar quem dorme
é impor ao outro a interminável
prisão do universo
do seu tempo sem ocaso nem aurora.
É revelar-lhe que é alguém ou algo
que está sujeito a um nome que o expõe
e a um acervo de ontens.
É inquietar a sua eternidade.
É carrega-lo de séculos e estrelas.
É devolver ao tempo um outro Lázaro
carregado de memória.
É desonrar a água do Letes.
Jorge Luís Borges, in obras completas 1975-1985 vol. III , a cifra (1981), tradução de Fernando Pinto do Amaral, Editorial Teorema,1998

INVENTÁRIO DE PERDAS

Vai-se, com o tempo, perdendo tudo.
Perdi já tantos dos que tanto amava,
perdi sítios, perdi sóis, sobretudo,
perdi poderes, ilusões, e brava
 
força que punha, no lutar, fervor!
Perdi livros e haveres e tudo
o que à vida dá tanto sabor!
Meu canto triste foi ficando mudo,
 
ao ver, por todo o lado o atropelo,
o assalto ao poder da liberdade,
o pôr, na destruição, tanto zelo!
 
Por todo o lado, alastra a iniquidade
e a vida cada vez mais fenece,
neste pobre mundo que anoitece.     
                      19.03.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em Tempo de Guerra, Guerra & Paz Editores, 2022, p 36

A OBSCENA ADVERSATIVA
  
Há uns humanistas de pacotilha,
que usam habilmente a adversativa:
estão sempre providos com a cartilha,
opondo ao fim da guerra a assertiva
adversativa.
 
Condenam firmemente a guerra, MAS
observam que é preciso ter em conta
outros factos, contextos e problemas:
e disparam a adversativa tonta
e pronta.
 
É querer a paz, sim, mas devagar,
como em Alcácer Quibir se morria.
Gostam da paz, sim, mas de acautelar
e preservar também a nostalgia
da utopia!
                           01.04.2022
Eugénio Lisboa, in Poemas em Tempo de Guerra, Guerra & Paz Editores, 2022, p 49
 Aurora
 
Não direi que me encantas mais do que o silêncio
porque é assim que despertas as aves e os caminhos.
Meus olhos também nascem pelo parto da esperança
porque vivo na imortalidade
renascendo em cada dia.
 
Deixa-me rever em prece tua face ressurgida
porque tua luz é sempre uma catarse.
Teu olhar estende as linhas  do horizonte
e toda a paisagem é  então uma ventura
e já não és mais nada
porque desfaleces no seio da beleza.
 
Repara como sou pequeno diante do teu rosto amanhecido
mas como é grande o que em mim te contempla.
Para renascer basta-me apenas  teu momento
tua humilde majestade
tuas pétalas de fogo
e essa corola ardente
porque não  peço nada mais que a tua luz
inaugurando o mundo em cada alvorecer
e que nunca me encontres cego ou vencido.
                     Curitiba, abril de 2004 
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, 2007, p 61
                                    
Soneto do reencontro                                     
 
Na  primavera  tu  voltaste de mansinho
finda a tempestade, surgiste na bonança
me  conjugando o verbo  da esperança
num  íntimo  gesto  de  lírico carinho.
 
Tu foste  meu fuzil, o meu canto guerreiro
a  voz  peregrina  acesa  no  meu  peito,
ensina-me  a cantar agora de outro jeito
para entoar amor e paz ao mundo inteiro.
 
Combatente e amordaçada em meu destino
silenciados e por atalhos clandestinos
trinta  anos  se  passaram,  dia-a-dia.
 
Depois a liberdade chegou para o meu povo
mas  só  agora  eu  te encontrei de novo
para  nunca  mais  perder-te... ó poesia.
                        Curitiba, dezembro de 2002 
Manoel de Andrade, in Cantares, Escrituras Editora, São Paulo, 2007, p 7

quarta-feira, 25 de dezembro de 2024

Natal


Natal

Soa a palavra nos sinos,
E que tropel nos sentidos,
Que vendaval de emoções!
Natal de quantos meninos
Em nudez foram paridos
Num presépio de ilusões.

Natal da fraternidade
Solenemente jurada
Num contraponto em surdina.
A imagem da humanidade
Terrenamente nevada
Dum halo de luz divina.

Natal do que prometeu,
Só bonito na lembrança.
Natal que aos poucos morreu
No coração da criança,
Porque a vida aconteceu
Sem nenhuma semelhança.
                                 Coimbra, Natal de 1974
Miguel Torga, in Diário XII, Obra Completa de Miguel Torga, Círculo de Leitores, 2001, p.1176

Oxalá o Natal fosse sempre o acontecimento diário. Que se tornasse uma rotina  sempre celebrada e  que o coração da criança, que se fez homem, não deixasse  de o sentir .
 
Josh Groban , em  Believe (2020 Christmas Livestream Concert)
  
Michael Bublé, Carly Pearce,  em Maybe This Christmas (Official Music Video).
 
Jacob Collier, em Three Christmas Songs (An Abbey Road Live-To-Vinyl Cut).

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Dá Paz , Senhor, ao nosso tempo!

 

Da pacem Domine, de Arvo Pärt, pelos Nederlands Kamerkoor sob a direcção do Maestro Klaas Stok.

Da Pacem  Domine

Dá paz, Senhor, a  nossos dias
Da pacem, Domine, in diebus nostris

Porque não há outro
Quia non est alius

Quem luta por nós
Qui pugnet pro nobis

Por causa dos meus irmãos e dos meus vizinhos
Propter fratres meos et proximos meos

(...)

Dá paz, Senhor, a nossos dias
Da pacem, Domine, in diebus nostris

Porque não há outro
Quia non est alius

Quem luta por nós
Qui pugnet pro nobis

Senão Tu, Deus nosso .
Nisi tu Deus noster.

Arvo Pärt

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Eugénio Lisboa, um dos mais cultos, generosos e combativos ensaístas

Eugénio Lisboa

Muito se escreveu sobre Eugénio Lisboa , quando faleceu a 9 de Abril deste trágico ano de 2024.  Era um ímpar escritor que deixou um valiosíssimo legado. Além da  magnânima e desprendida erudição que marca a sua obra , Eugénio Lisboa era um extraordinário  comunicador que se deixava abordar  por quem o  procurava ou lhe colocava qualquer questão.  A afabilidade  , o franc-parler, a simplicidade marcavam a sua relação com o outro. Era um homem verdadeiramente grande , como afirmava Paul Valéry. 
Evocamo-lo hoje, em jeito de uma muito sentida saudade,   com um  artigo de entre os que foram publicados, no mês do seu desaparecimento.

Eugénio Lisboa. A exuberância de uma vida entre aspas.
1930-2024. Um dos mais cultos, generosos e combativos ensaístas.
por Diogo Vaz Pinto
"Aos 93 anos, um homem não deve grande coisa aos outros. O regateio e a conversa quotidiana poderão distraí-lo da ideia de que está a competir com tantas outras solicitações para reservar algum espaço na memória daqueles que talvez venham a recordar-se dele, e que serão, em suma, os seus coveiros. E, no entanto, com um gato acostumado a passear entre os livros, cultivado nesses ritmos de uma atenção funda, Eugénio Lisboa fez saber em algumas ocasiões que se não viajava nem passava muito tempo fora de casa era por consideração pela gata, Ísis, que dividia com ele um apartamento muito dado a essas manias sagradas, um espaço feito exíguo pelas pilhas de livros promovendo essa capacidade de afastamento altivo e de recreio íntimo “sob o olhar de deuses sem vergonha”. Mas restava ainda um assunto que poderia ser delicado entre um homem e o seu gato. “Morrer — isso não se faz a um gato./ Pois o que há de fazer um gato/ num apartamento vazio”… É provável que Eugénio Lisboa se tenha detido no poema de Wislawa Szymborska, e também que algum do seu esforço contínuo para não se irritar demasiado com a vida se tenha ligado a essa decência e ternura pela gata. Agora que este extraordinário leitor se desligou dos dias para assumir o seu lugar na correnteza dos textos, o mais custoso será pensar nesse vazio que se instalou naquele apartamento. “Nada aqui parece mudado/ e no entanto algo mudou./ Nada parece mexido/ e no entanto está diferente./ E à noite a lâmpada já não se acende.”
Eugénio Lisboa nunca se retirou, nunca se absteve de manter algum convívio, mesmo que fosse através dessa “conversa silenciosa” que a escrita vai permitindo, e que se mostra tão necessária, especialmente em épocas mais ruidosas. Era um ser magnificamente convivente, um apaixonado pelas ideias, um homem para quem comunicar era quase respirar. Sendo duvidoso que a posteridade fosse uma inquietação sua, com 28 anos considerava que há dois modos bem distintos de se pensar nela: “ou com a intenção premeditada de se lhe mentir, compondo, ou com a intenção, também premeditada, mas neste caso honesta, de se lhe impor uma verdade, ainda que rude e dolorosa”. Depois de uma vida inteira a zurzir naqueles que gostam de turvar as águas, de complicar desnecessariamente as frases, Eugénio Lisboa sempre se bateu por um tom de comunicação clara e directa (“A clareza orna os pensamentos profundos”), até brusca por vezes, aquilo para que não tinha a menor paciência era para as “manobras, transigências e pequeninas traições e perfídias, que são moeda corrente na vida quotidiana da nossa República das Letras”.
Uma frase de André Gide por que tinha especial predilecção era essa em que o escritor francês, numa carta a um admirador desconhecido, registava: “Mesmo connosco próprios, importa não nos demorarmos.” Trata-se, no fim de contas, de não aborrecer nem impor mais obstáculos ao gozo da vida. Desse mesmo modo, Lisboa aprendeu a estar-se um pouco nas tintas quanto à fortuna ou ao desaire que recaía sobre a sua própria obra. Grande parte desta distingue-se, contudo, pelo empenho e a generosidade em reconhecer o génio dos autores que mais horas de prazer lhe tinham dado, fosse que género fosse, procurando, tantas vezes, salvá-los dessas caricaturas preconceituosas que tecem todos esses cuja maior ficção que produzem é a ideia de que leram tudo, o mito de uma erudição que facilmente se desmorona. Desde logo arreliava-o sempre que via como um autor era culpado pelo facto de uma juventude num dado momento o ler ou deixar de o ler, chamando a atenção para o que há de imponderável, transitório e até caprichoso naquilo que motiva a juventude à frequentação dos livros. “Um autor pode cair subitamente no olvido sem que isso nada tenha a ver com o seu valor intrínseco. De resto, essa espécie de purgatórios, de que poucos escritores se livram, é característica do período que se segue imediatamente à morte do autor.” No caso particular de Eugénio Lisboa isto agrava-se pelo facto de há muito as obras daqueles que se dedicaram a ler os outros, fosse no ensaio ou na crítica literária, terem sido condenados em bloco a essa indiferença tão reveladora. Afinal, que os leitores revelem precisamente um desdém por aqueles que se aplicam a mostrar as múltiplas formas como um texto pode ser lido e aprofundado diz-nos muito sobre a vulnerabilidade dos leitores que vão aparecendo. Outra frase de Gide a que Lisboa se aferrou surge quando aquele diagnosticava o medo de nos deixarmos influenciar como uma doença típica do nosso tempo: “É que precisamente hoje, mesmo sem fazermos profissão de individualismo, pretendemos ter cada um a nossa personalidade, e, uma vez que essa personalidade não é muito robusta, uma vez que ela nos parece, a nós e aos outros, um pouco indecisa, vacilante ou débil, o medo de a perdermos persegue-nos e faz-nos correr o risco de estragarmos as nossas alegrias mais autênticas.”
Não só este foi um receio de que Eugénio Lisboa nunca padeceu, como, em certo sentido, a total ausência de qualquer espécie de “angústia da influência” é o que caracteriza o seu magistério enquanto leitor e crítico. A melhor razão para procurarmos os volumes em que se reúnem os seus ensaios, crónicas ou os vários tomos dos seus livros de memórias (sob o título global “Act Est Fabula”) é o facto de ele nunca se ter permitido abusar da paciência de quem o lia, e em vez de se iludir com a suposta originalidade dos seus juízos, preferia reconhecer como o equilíbrio do mundo pode depender de umas quantas noções verdadeiras, e, em vez de se entregar à verborreia, gostava de flutuar como um corpo entregue às derivas da sua memória, sendo esta, no seu caso, realmente assombrosa. Num tempo em que, cada vez mais, como notava Jacques Bainville, os velhos repetem-se e os novos nada têm para dizer, sendo a chatice mútua, Lisboa não estava interessado em colaborar nesta “estúpida guerra de surdos que se anda por aí a fomentar”. Assim, o seu maior talento era a sedução daquele que sabia entretecer um vastíssimo número de influências, construindo uma perspectiva sempre lúdica e variada, e deixando atrás de si um largo rasto de generosidade e de escolhas que permitem a quem vem depois aceder a uma impressão de grandeza que foi paciente e laboriosamente lapidada por um sagaz artífice, alguém que nunca perdeu de vista que o mais importante na literatura como no resto é gerar alento, traduzir seja como for essa matéria que nos fala, sem trair o ânimo. O apelo a que ao longo da sua vida ele deu expressão é antigo e intenso, e Eugénio Lisboa foi-lhe fiel desde logo no estilo da sua escrita, caracterizado pela sua desenvoltura, por aquela urgência que é própria do entusiasmo e por essa familiaridade abrupta com os autores e os textos, isso que no fim lhe permitiu assimilar esse registo “ruidoso de segredos e de oráculos”. A literatura para ele foi sempre, por isso, um testemunho apaixonado, e também isso lhe permitiu resistir, fazer-se um extraordinário ouvidor do melhor que os séculos foram transmitindo, para depois, diante da morte, só ter de se preocupar com a gata, e aquele vazio no apartamento. De resto, e depois de uma vida de encanto e de empenho nas suas lutas, nem se importaria que o seu próprio epitáfio fosse recolhido de entre as tantas frases que deixou sublinhadas na obra do seu tão amado Montherlant: “Felizes os que morrem sem tagarelices e sem choradeiras, na santa solidão em que morrem os animais e sós soldados no fundo remoto de um buraco de obus." 
Diogo Vaz Pinto , Jornal Sol , 13.04.2024

domingo, 22 de dezembro de 2024

Ao Domingo Há Música

Les chaises vides

On aura beau chercher le pourquoi du comment
La vie bascule sans prévenir
Les hommes donnent ce qu'ils ont de pire
Et puis... on aura beau parler,
En parler aux enfants
Pour ne pas blesser la mémoire
Pouvoir affronter les miroirs
Il restera...
Tout ce qu'il y avait autour
D'une vie, d'une voix, de tant d'histoires d'amour
Toute la douleur de ce jour
Sans sursis ni recours
Ces silences tellement sourds

Mais qu'est-ce qu'on fait des chaises vides ?

Celles des écoles, celles des concerts ?
Les chaises des repas de famille
Sans parler des anniversaires ?
Elles nous observent les chaises vides
Elles sont d'un silence exemplaire
Même si c'est que du bois aride
Nos larmes regardent et on espère.

On aura beau mentir, dire que ça va passer
Le chagrin glisse et nous devance
Sans nous laisser la moindre chance
Et puis... on aura beau maudire
Ceux qui leur ont volé
L'ivresse qui coulait de leurs hanches
La beauté de leur corps qui dansent
Il restera...
Ce que l'on dira d'eux
Un poème, un combat

Pour n'pas baisser les yeux
Le souvenir qu'on leur doit
Comme on souffle sur un feu
Pour qu'il ne meure pas

Mais qu'est-ce qu'on fait des chaises vides ?
Celles des écoles, celles des concerts ?
Les chaises des repas de famille
Sans parler des anniversaires ?
Elles nous observent les chaises vides
C'est le seul silence que j'accepte
Même si c'est que du bois aride
Nos larmes coulent, l'histoire se répète

Il y a aussi des chaises vides
De l'autre côté de la frontière
Quand elles font face aux yeux humides
D'un père, d'une sœur ou d'une mère
Elles nous obsèdent les chaises vides?

Celles que leur vie a déserté
Ils étaient si beaux, si candides
Dans cet octobre meurtrier
Elles nous obsèdent les chaises vides
Leur silence est triste à crever
Même si c'est que du bois aride
Qu'elles nous disent qu'ils vont rentrer.

Patrick Bruel  /  Mark Weld

Que fazer das cadeiras vazias? É uma questão que a todos magoa e aflige. E sempre que se aproxima esta época , embora tão desvirtuada porque  tão cheia de tudo e de nada, é ainda mais premente quase dolorosa .
Ficam a melodia na voz de Patrick Bruel para dar uma belíssima sonoridade ao poema e votos de uma nova esperança para todos nós , neste Natal de 2024.

Patrick Bruel - Les chaises vides (Clip officiel)

Na Escola Paiva Manso, Lourenço Marques


Na Escola Paiva Manso, Lourenço Marques 
por Eugénio Lisboa 
"Na Escola Paiva Manso, a vida paradisíaca, com a D. Laurinda Magalhães, chegara ao fim. E tudo se tornou menos bom, a partir daí. Na quarta classe, o professor era o sr. Branco, sempre a tossir, a cheirar a vinho tinto e a ralhar. Vivia mais ou menos cafrealmente, na Malhangalene, bebia demais, fumava demais, deslocavase, pesadamente, de bicicleta, e era bastante incompetente em assuntos de aritmética. Como eu levava sempre os problemas bem resolvidos – além do mais, porque tinha um livro que me permitia verificar os resultados – e o sr. Branco se atrapalhava bastante a resolvêlos, o resultado era ele passar a vida a chamarme ao quadro, para mostrar aos meus colegas como aquilo se fazia. O sr. Branco tossia desalmadamente, no meio daquela festa, prometendo que nos rachava de alto a baixo e chamandonos coisas que se não chamam ao Belzebu. E tinha, da pedagogia, umas noções herdadas, provavelmente, dos visigodos: quando um aluno não sabia responder a uma pergunta e outro aluno respondia, este era, contra vontade, obrigado a castigar o colega, dandolhe as palmatoadas indicadas pelo professor. Isto revoltava toda a gente, quase até ao ponto da agonia. E, se o segundo mostrava relutância em aplicar o castigo, apanhavam os dois – e com que fúria redobrada o sr. Branco impunha então a sua “autoridade”! Havia ali frustrações acumuladas e uma recalcada consciência do seu falhanço como professor. Em todo o caso, brutinho como era, não atingia os furores jupiterianos da Amena Cassanhe! Ao lado da fúria sanguinária dela, ele era quase aceitável... quase um  borrego!
A segunda causa da nossa queda do paraíso foi a anunciada visita presidencial a Moçambique (o Presidente era, nessa altura, o marechal Carmona). Passámos a pertencer à Mocidade Portuguesa, com exercícios e treino paramilitar, naquilo que fora, antes, o átrio do recreio, com pãezinhos fofos e garrafas de “Toddy”! Vinha darnos instrução um tenente de cavalaria, muito militar e garboso, a tal ponto, que deixava a D. Amena a salivar de volúpia e admiração.Literalmente, a babarse! Eu odiava tudo aquilo: as berratas, a rigidez militar, o hino nacional, as ameaças, a baba da D. Amena e, às vezes, os sábados estragados, com “ordem unida” no Largo João Albasini! O que aqueles sacanas andavam a fazer ao meu Largo... A visita presidencial eranos prometida como algo que, se falhássemos no nosso esperado garbo, nos lixaria a vida para todo o sempre. O pobre do Carmona, coitado, era todo sorrisos fofos, mas mal sabia o que, por detrás de tudo aquilo, havia de militares entesados a assustar as crianças!
Mas, enfim, sempre houve uma compensação: cada aluno teve direito, durante a visita, a um brinquedo e, como, lá em casa, nunca tinha havido dinheiro para brinquedos e, pelos anos, as visitas, recomendadas pela minha mãe, nos traziam apenas “coisas úteis” (peúgas, camisas, lenços, porcarias que não interessavam nem à vaquinha do presépio), rejubilei com a ideia do presente, embora não deva ter rejubilado por aí além com ele, porque me não lembro de todo do que foi que me calhou em sorte... A memória deve ter achado que não valia a pena registar. Havia também uma grande profusão de bandeirinhas portuguesas, de papel, com uma haste de arame, muito disputadas pelos que faziam colecções de bugigangas. E serviam também para trocar por berlindes ou caixas de fósforos: nada de muito sagrado ou patriótico (tremo só de pensar no que faria a D. Amena se lesse isto!)
Fiquei, a partir desta visita presidencial, a odiar visitas de “altas personalidades” e a odiar ainda mais a Mocidade Portuguesa – a ideia macabra de “acertar o passo” dava comigo em doido: humilhavame, pareciame grotesco, apeteciame desacertar e mandar o tenente garboso à merda, levando com ele a D. Amena e mais os gritos todos com que se embeveciam, à falta de melhor... Ainda hoje, detesto encontrarme junto ao poder. E não percebo como é que se pode gostar de ser ministro. Pagaria caro, dinheiro contado, para não ser. Quando, nos cargos que, depois, desempenhei, me vi perto dos poderosos, sentime com falta de ar e não descansei enquanto me não pus a andar. É que o poder, além do mais, é inestético, é vulgar, torna as pessoas empertigadas, “importantes”, ciosas de pequenos privilégios que, em geral, pouco rimam com o valor real dos detentores deles. Gostar de ser ministro é o mesmo que ser desprovido de sentido estético. Ser ministro é não gostar de ir ao cinema. É não gostar de comer mangas verdes com sal. É não perceber que uma ida à praia com o “Nero” vale mais que um despacho ou mesmo um decreto. Ser ministro é não estar na vida e estar a lixar a vida aos que estão nela. Que bom nunca ter sido ministro e, melhor ainda, nunca ter querido ser ministro! A elegância que há em não ser ministro!"
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula Memórias- I - Lourenço Marques (1930-1947), Editora Opera Omnia, Novembro 2012, pp.36-38

quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Sobre Franz Kafka

Franz Kafka, 03.07.1883 - 03.06.1924
I
Franz Kafka
Uma Biografia*
por Max Brod 

Não desesperes, nem sequer por não desesperares. Quando já tudo parece ter chegado ao fim, novas forças avançam, o que significa que estás vivo.
 
Ainda consigo sentir um contentamento ocasional com trabalhos como «Um Médico de Aldeia» […], mas só sinto felicidade quando consigo elevar o mundo à pureza, à verdade, à imutabilidade.
 
Grande chuvada. Oferece‑te à chuva, deixa‑te atravessar pelas fortes bátegas, desliza na água que te quer arrastar, mas mantém‑te e espera assim, de pé, o Sol que há de brilhar com os seus raios infindos. 
Dos Diários de Kafka
 
1 Antepassados e Infância
Franz Kafka, filho de Hermann e Julie Kafka, nasceu em Praga, a 3 de julho de 1883. O apelido Kafka é de origem checa e significa «gralha».
Nos sobrescritos comerciais da firma Hermann Kafka, em que Franz me mandava frequentemente as suas cartas, figura como emblema aquela conhecida ave, de cabeça grosseira e cauda farta. Kafka é nome frequente entre os judeus oriundos de regiões checas e apareceu quando o imperador José II ordenou que todos os judeus passassem a usufruir do direito de registar os seus nomes de origem familiar. O nome, no entanto, não reflete quaisquer tendências políticas ou até nacionalistas, embora constasse que o pai de Franz tivesse simpatizado de maneira um tanto vaga com os partidos checos que combateram na velha Áustria, para o que devem ter contribuído as recordações da sua terra natal. Franz frequentou apenas escolas alemãs, foi educado à alemã e só mais tarde, por sua própria iniciativa, veio a adquirir o domínio perfeito da língua checa, assimilando profundamente a cultura do seu país de origem sem todavia deixar de se interessar pela cultura alemã. (Mais adiante veremos a importância que a influência judaica exerceu na sua formação e da qual só posteriormente se aperceberia.)
Um seu primo em segundo grau desempenhou um papel importante no partido alemão liberal, primeiro como estudante e, depois, como professor universitário e deputado do Parlamento checo. Exteriormente era parecido com Franz, mas um pouco mais forte e robusto.
Franz admirava-o muito por causa da sua energia e capacidade de organização. O professor Bruno Kafka, tal era o seu nome, apesar da sua morte e prematura viveu uma existência fértil: foi editor do legado científico de Krasnopolski, colaborou em diversos estudos legislativos, tendo sido responsável por alguns, assinou valiosos trabalhos jurídicos e notabilizou-se como político e crítico. Os pais de Franz e Bruno eram primos. Sobre os seus antepassados, escreveu Kafka nos seus Diários:

O meu nome hebraico é Amschel, tal como o avô materno de minha mãe, que morreu quando esta contava seis anos. Minha mãe recorda se dele como um homem sábio, impregnado de uma grande devoção e usando uma longa barba branca. Recorda-se de ter sido obrigada a agarrar os dedos dos pés do defunto e a pedir perdão pelas possíveis faltas cometidas contra ele. Recorda-se, também, dos seus numerosos livros, que cobriam as paredes. Todos os dias tomava banho no rio, cujas águas geladas, no inverno, era obrigado a quebrar. A mãe de minha mãe faleceu com tifo, também cedo. A partir dessa data, a minha bisavó tornou-se melancólica: receava a comida e não falava a ninguém. Uma vez, decorrido um ano sobre a morte da filha, saiu e nunca mais voltou. Dias depois, o seu corpo era retirado do Elba.
Um homem ainda mais sábio do que o avô era o bisavô de minha mãe, tão respeitado por cristãos como por judeus. Tão crente que um dia lhe aconteceu um milagre: um incêndio destruiu todas as casas em redor da sua, deixando esta intacta. Tinha quatro filhos, um dos quais se converteu ao cristianismo e se formou em Medicina. Toda a minha família, com exceção do avô de minha mãe, morreu cedo. Esse meu bisavô teve um filho, a quem minha mãe pôs a alcunha de «o doido tio Nathan», e uma filha, que foi a mãe de minha mãe.
 
Recebi mais informações da mãe de Franz, com quem falava frequentemente, até ela morrer em 1934 (sobreviveu ao filho cerca de dez anos). Era uma senhora calma, bondosa, extremamente inteligente e muito culta. Segundo ela afirmava, a família Kafka é oriunda, pelo lado do pai, de Wossek, perto de Strakonic (Sul da Boémia). O pai de Hermann Kafka era carniceiro. A juventude de Hermann foi dura e laboriosa. A sua capacidade de trabalho e a sua tenacidade eram notáveis. Na opinião da Sr.ª Julie Kafka, mãe de Franz, também os seus irmãos (três irmãos e duas irmãs) eram «gigantes». Franz viveu toda a sua vida à sombra do pai, tão poderoso no seu aspeto imponente como forte nos negócios. Era muito alto, de ombros largos, e deixou no fim da sua existência — cheia de trabalho e de grandes sucessos comerciais, mas também marcada por preocupações e doenças — não só uma família numerosa (nutria um orgulho patriárquico pelos filhos e netos), como ainda um prédio de muitos andares no centro de Praga, que adquirira depois de ter vendido a sua loja de vendas por junto que ainda hoje (1937) existe no Altstädter Ring. Na imaginação e nas obras de Franz nota-se sempre a influência exercida, sobre a sua infância, pelas dificuldades inerentes ao sustento de uma família numerosa, a que o esforço, os sacrifícios e fadigas do pai tiveram de providenciar. Tinha pelo pai, neste capítulo, uma grande admiração, e havia mesmo nela alguma coisa de heroico: a um observador neutro, que não estivesse encantado pela magia do lar, como eu o estava, podia parecer que além de louvável era também exagerada. Para a educação sentimental de Franz, essa admiração era fundamental. Que não são fictícios esses seus sentimentos, mostra-nos uma passagem do diário, que eu cito, por nos dar uma ideia exata da juventude do pai. Franz escreve:

É desagradável escutar da boca do pai o que ele tinha de sofrer na sua mocidade, em comparação com a situação feliz dos seus contemporâneos e sobretudo com a dos seus filhos. Ninguém nega que, durante anos, teve feridas abertas nas pernas, por lhe terem faltado roupas em invernos sucessivos; que frequentemente passou fome; que foi obrigado, ainda com dez anos, a atravessar as aldeias empurrando um carro de mão, arrostando o frio das madrugadas de inverno. Todavia, estes factos verdadeiros, comparados com o facto igualmente verdadeiro de eu não ter sofrido nada disso, não são suficientes para o pai poder concluir que eu fui mais feliz do que ele, para se orgulhar de ter tido chagas nas pernas, para afirmar que não sei honrar aqueles seus padecimentos e, ainda, para pretender que eu lhe fique eternamente grato por esse sofrimento. E é isto que não quer compreender. Quanto eu gostava de o ouvir contar incessantemente a sua mocidade e a de seus pais, mas não naquele tom de bazófia e de desafio. Uma vez por outra, bate com as palmas das mãos e grita: «Quem percebe isto hoje!? Que é que sabem as crianças!? Hoje ninguém passa por estas coisas. Há atualmente alguma criança que possa compreender isto?» Hoje, foi novamente esta a conversa travada com a tia Julie, que nos veio visitar. Ela também tem um rosto enorme, como todos os membros da família do pai. Os olhos desagradam por assimetria na posição ou na cor. Aos dez anos, foi contratada como cozinheira. Nessa altura tinha de sair amiúde, para o frio, que lhe gelava a saia molhada e lhe rebentava a pele. Só à noite, na cama, secava a saia.
 
Agora seguirei, de novo, as informações da mãe de Franz. A avó paterna, da família Platovsky, fora descrita como dotada de grande bondade e como sendo muito respeitada entre os aldeões devido aos seus conhecimentos de medicina. Além disso, parecem transmitir-se por toda a linha ascendente paterna a robustez física e as qualidades de luta que forjaram as suas vitórias na vida. Hermann foi soldado durante três anos e, avançado em anos, gostava ainda de falar desses seus tempos e de entoar canções militares, quando estava bem disposto — o que aliás acontecia cada vez menos. O seu pai, isto é, o avô de Franz, conseguia levantar do chão, com os dentes, uma saca de farinha. Quando, uma vez, um grupo de ciganos indesejáveis entrou numa estalagem isolada, o estalajadeiro, receoso, mandou chamar o avô de Kafka, que facilmente afugentou com uma valente sova os hóspedes inoportunos. Tudo é diferente se nos reportarmos aos antepassados da mãe de Franz. Entre estes, há sábios, homens sonhadores, inclinados para o exotismo, para a aventura, para o capricho e para a solidão.
A passagem mencionada no diário de Franz refere-se à piedade e à fama de sábio de que gozavam o avô e o bisavô da mãe. Também os banhos no rio gelado devem ser tomados como ações rituais de uma pessoa fundamentalmente religiosa e não no sentido naturalista, que naquela época ainda não existia ou não era, pelo menos, conhecido entre os judeus. Os homens mencionados pertenciam à família Porias e viviam em Poděbrad.
O avô trazia sempre as  franjas1 que a sua religião impunha fazendo troça. Na escola (cristã), porém, eram admoestadas e ensinadas a não escarnecer de um homem tão piedoso. A única filha do avô, que morreu muito cedo e que terá levado, provavelmente, a avó ao suicídio, chamava-se Esther Porias e era casada com Jakob Löwy. Deste casamento nasceram seis filhos, o segundo dos quais, uma rapariga de nome Julie Löwy, veio a ser a mãe de Franz Kafka. O irmão mais velho (Alfred) emigrou, ainda jovem, para o estrangeiro e chegou a diretor geral dos Caminhos de Ferro espanhóis, onde obteve numerosas condecorações. Morreu solteiro. Visitou Praga várias vezes e exerceu influência sobre a mocidade de Franz, provavelmente por esperar que o tio o introduzisse na vida prática. Franz ansiava por conhecer terras longínquas, aspiração que lhe era sugerida pelo exemplo da carreira de um outro irmão da mãe, Josef, que dirigia uma companhia colonial no Congo e equipara caravanas que, às vezes, contavam cento e cinquenta membros. Mais tarde viveu em Paris, onde casou com uma francesa. O que aqui pertencia à vida real transformou-se, nas suas obras, na poesia com que descreveu as terras exóticas, as quais constituíam o cenário em que decorria a ação dos seus trabalhos. Embora o tio Alfred, de Madrid, fosse tido como reservado, também era afetuoso e dava grande importância à família. (Conheci-o, sem todavia ter conseguido formar uma opinião a seu respeito.) O desapontamento em relação a ele está bem patente numa carta dirigida a Oskar Pollak, amigo de infância. Franz perguntava ao tio se «não me podia ajudar nestas coisas, guiar-me de maneira a que pudesse dedicar‑me, finalmente, a uma obra nova». Franz sempre considerou a sua profissão de jurista como provisória, sonhando por isso com outra atividade. As suas relações com o tio, a quem ele, com certeza, apenas muito vagamente confidenciava os seus desejos juvenis, não eram falhas de afabilidade, apesar da indiferença que marcava as relações de parentesco. Outro irmão da mãe (Rudolf) fazia vida de excêntrico solitário, apesar de ter um emprego insignificante como contabilista na cervejaria de Košíře. Acabou por converter-se, convictamente, ao catolicismo. O irmão mais novo (Siegfried) e fora das roupas e não sob elas. Por causa disso, as crianças corriam atrás dele fazendo troça. Na escola (cristã), porém, eram admoestadas e ensinadas a não escarnecer de um homem tão piedoso. A única filha do avô, que morreu muito cedo e que terá levado,provavelmente, a avó ao suicídio, chamava-se Esther Porias e era casada com Jakob Löwy. Deste casamento nasceram seis filhos, o segundo dos quais, uma rapariga de nome Julie Löwy, veio a ser a mãe de Franz Kafka. O irmão mais velho (Alfred) emigrou, ainda jovem, para o estrangeiro e chegou a diretor geral dos Caminhos de Ferro espanhóis, onde obteve numerosas condecorações. Morreu solteiro. Visitou Praga várias vezes e exerceu influência sobre a mocidade de Franz, provavelmente por esperar que o tio o introduzisse na vida prática. Franz ansiava por conhecer terras longínquas, aspiração que lhe era sugerida pelo exemplo da carreira de um outro irmão da mãe, Josef, que dirigia uma companhia colonial no Congo e equipara caravanas que, às vezes, contavam cento e cinquenta membros. Mais tarde viveu em Paris, onde casou com uma francesa. O que aqui pertencia à vida real transformou-se, nas suas obras, na poesia com que descreveu as terras exóticas, as quais constituíam o cenário em que decorria a ação dos seus trabalhos. Embora o tio Alfred, de Madrid, fosse tido como reservado, também era afetuoso e dava grande importância à família. (Conheci-o, sem todavia ter conseguido formar uma opinião a seu respeito.) O desapontamento em relação a ele está bem patente numa carta dirigida a Oskar Pollak, amigo de infância. Franz perguntava ao tio se «não me podia ajudar nestas coisas, guiar-me de maneira a que pudesse dedicar‑me, finalmente, a uma obra nova». Franz sempre considerou a sua profissão de jurista como provisória, sonhando por isso com outra atividade. As suas relações com o tio, a quem ele, com certeza, apenas muito vagamente confidenciava os seus desejos juvenis, não eram falhas de afabilidade, apesar da indiferença que marcava as relações de parentesco. Outro irmão da mãe (Rudolf) fazia vida de excêntrico solitário, apesar de ter um emprego insignificante como contabilista na cervejaria de Košíře. Acabou por converter-se, convictamente, ao catolicismo. O irmão mais novo (Siegfried) era médico de província em Triesch. Também solteiro, mudou mais tarde para Praga, onde passou a morar na casa da família Kafka. Representou um papel ativo no final da vida de Franz, quando lhe prestou a assistência médica.”
Max Brod, in Sobre Franz Kafka, Relógio D’Água Editores, 2024, pp.13-17
 
* Esta secção baseia-se no seguinte texto: Max Brod, Franz Kafka. Eine Biographie, 5.ª ed., Frankfurt am Main/Hamburgo, Fischer Bücherei, 1963. Texto revisto pelo autor (6.ª ed.).
1-Faixas usadas pelos judeus nas suas orações, em que estão escritas passagens de livros religiosos. (N. T.)

Sobre a Obra:
"Max Brod, autor de uma extensa obra literária, foi amigo de Franz Kafka desde a juventude e permaneceu próximo dele até à sua morte a 3 de junho de 1924.
Foi seu executor testamentário e deve-se a ele a publicação de todos os textos que Kafka lhe pediu para destruir e que foram levados de Praga para Jerusalém.
Foi também Max Brod que se empenhou na divulgação da obra kafkiana, mesmo nos tempos sombrios em que parecia esquecida e só era conhecida de alguns leitores e celebrada por um punhado de escritores e filósofos como Robert Walser, Benjamin, Adorno e Hannah Arendt.
Este livro dá-nos não só uma imagem realista e quotidiana da vida de Kafka tal como foi vista por um dos seus contemporâneos, mas também uma fascinante descrição da interação entre dois escritores de temperamentos diversos, mas com numerosas referências comuns.
Reúne os três escritos mais importantes de Max Brod sobre Franz Kafka: Franz Kafka, Uma Biografia; A Fé e a Doutrina de Franz Kafka e Desespero e Redenção na Obra de Franz Kafka.
As memórias de Max Brod sobre a juventude e a idade adulta que partilhou com Kafka são insubstituíveis. Insubstituível foi também o seu papel na preservação dos seus escritos inéditos. Mas uma visão mais completa, sobretudo no que se refere à importância do humor na obra de Kafka, requer a leitura de toda a sua correspondência e de biografias mais recentes como a de Reiner Stach e mesmo a de Benjamin Balint."
Max Brod, 27.05.1884 - 20.12.1968
Sobre o autor:
Max Brod nasceu a 27 de Maio de 1884, em Praga, então integrada no Império Austro-Húngaro.
Foi autor de numerosas obras, embora tenha ficado sobretudo conhecido como amigo e biógrafo de Franz Kafka.
Brod conheceu o autor de A Metamorfose em Outubro de 1902, quando ambos estudavam na Universidade Carolina de Praga. Brod tinha acabado de dar uma conferência sobre Schopenhauer aos alunos de língua alemã. Kafka, um ano mais velho, abordou-o depois dessa palestra e acompanhou-o a casa. Foi o início de uma longa amizade, muitas vezes com encontros diários.
Kafka nomeou-o executor do seu testamento literário, dando-lhe indicações para destruir as suas obras inéditas depois da sua morte.
Em 1939, quando os nazis ocuparam Praga, Max Brod emigrou para a Palestina, então sob o Mandato Britânico, levando consigo uma mala com papéis com escritos, notas e apontamentos de Kafka.
Max Brod morreu a 20 de Dezembro de 1968, em Telavive, Israel."
Título: Sobre Franz Kafka
Autor : Max Brod
Editora: Relógio D'Água
Categoria: BiografiasEnsaios
Tradução: Ana Falcão BastosSusana Schnitzer da Silva
EAN: 978­989­783­456­1
Data de publicação: 18/06/2024
Nº de páginas: 440
Peso: 634 gramas
Preço:
21,60€