terça-feira, 15 de outubro de 2024

Jorge Luís Borges

 
Jorge Luis Borges

A última entrevista de Jorge Luis Borges
por Carlos Willian Leite
“O escritor morreu alguns meses depois de ter concedido a entrevista ao jornalista e apresentador Roberto D’Ávila, em 1985
“Não criei personagens. Tudo o que escrevo é autobiográfico. Porém, não expresso minhas emoções diretamente, mas por meio de fábulas e símbolos. Nunca fiz confissões. Mas cada página que escrevi teve origem em minha emoção.”
Jorge Luis Borges nasceu em 1899 na cidade de Buenos Aires, Argentina, e morreu em Genebra, Suíça, em 1986. Entrelaçando ficção e fatos reais, Borges concentrou-se em temas universais, o que lhe garantiu reconhecimento mundial. É considerado o maior escritor argentino de todos os tempos e um dos mais importantes nomes da história da literatura.
Na entrevista, que foi concedida em julho de 1985 ao jornalista Roberto D’Ávila, Jorge Luis Borges fala sobre a infância, a cegueira, a morte. Afirma que o fracasso e o sucesso são impostores. E traduz o seu amor pela literatura em uma frase: “Se recuperasse a visão eu não sairia de casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim”. Borges morreria menos de um ano depois de ter concedido a entrevista.
 
Fale-me de sua infância, de suas memórias…
Minhas primeiras memórias são da biblioteca de meu pai. Não me recordo de uma época em que não soubesse ler e escrever. Meu pai era professor de psicologia e me disse que a memória começa aos 4 anos de idade. Aprendi a ler e escrever entre os 3 e 4 anos. A biblioteca de meu pai era essencialmente de livros ingleses. De modo que quase tudo que li na vida foi em inglês e depois em outros idiomas, já que, em 1915, fomos para Genebra e tive que estudar francês e também bastante latim. Depois disto, eu me ensinei alemão para ler Schopenhauer. Mas antes passei pela poesia e pelos expressionistas alemães: Johannes Becher, Wilhelm Klemm, Kafka e outros. Quando perdi a vista como leitor em 1955, para não “abound in loud self pity”, para não abundar em sonora autocomiseração, como diz Kipling, empreendi o estudo do inglês arcaico. Depois estive duas vezes na Islândia e estudei um pouco do escandinavo antigo. O islandês é a língua mãe do sueco, do dinamarquês e, parcialmente, do inglês. Agora pensei em estudar japonês ou chinês, que são idiomas tão estigmatizados.
Das leituras da infância, o que mais lhe impressionou?
“As Mil e Uma Noites”. Livros de diferentes épocas da vida de Kipling, que comecei a ler quando criança. Sempre gostei muito dos atlas e das enciclopédias. Curiosa­mente, continuo a comprar livros. Não posso lê-los. Aqui tenho, por exemplo, uma excelente enciclopédia italiana, a Garzanti, tenho duas edições da Brockhaus, alemã, e uma edição da Britânica. Gosto muito. Acho que é a melhor leitura para um homem ocioso e curioso como eu. Infelizmente perdi a vista. Se eu a recuperasse, não sairia desta casa. Ficaria lendo os muito livros que estão aqui, tão perto e tão longe de mim. Mas perdi a vista. Diversos países me convidam para dar conferências. Vou agora à Califórnia, à Nova York e depois à Roma. Depois volto à Roma no fim do ano para falar de meus livros. Continuo a escrever. Que mais posso fazer? É que não gosto do que escrevo. Nesta casa não encontrará um só livro meu. Por que quem sou para ficar ao lado de Euclides da Cunha, Camões ou com Montaigne? Não sou ninguém! Continuo a adquirir livros porque gosto de estar rodeado por eles. Como quando era menino, já que minhas primeiras lembranças são de livros e acho que minhas últimas o serão também. Quanto à minha memória, a única coisa que consigo lembrar são citações, mas, dos fatos de minha vida, me esqueci. As datas, não me lembro de nenhuma. Tenho lembranças de meus pais a quem adorava, dos meus amigos. Agora meus amigos estão embaixo da terra.
E as lembranças dos amores?
Agora estão menos vivas. Lem­bro-me de uma frase muito triste de Emerson: “Life itself becomes a quotation”. “A própria vida se converte numa citação.” Tenho a memória cheia de versos em tantos idiomas. E continuo escrevendo. Bem, escrevendo é uma metáfora; ditando. Como passo boa parte do tempo sozinho, vou povoando esta solidão com projetos literários. Não vão durar muito porque, aos 85 anos, não se tem muito por vir. Entretanto minha mãe morreu aos 99 anos com o terror de chegar aos 100. Eu tentava convencê-la de que os 100 são uma superstição. Mas, mesmo assim, o número 100 a apavorava. Quando fiz 80, achei horrível. Espero não chegar aos 90. Eu preferiria morrer esta noite. Agora não, porque quero conversar um pouco com você. Quando vocês se forem, eu morro. Eu gostaria. Assisti a várias agonias no curso de minha excessivamente longa vida. Minha mãe acreditava em Deus, eu não. Todas as noites lhe pedia que a levasse durante o sono. Uns meses antes de fazer 100 anos morreu, que era o que queria. Ela acordava de manhã e chorava ao ver que não tinha morrido durante a noite e se preparava para outro dia. 
Como é a cegueira?
Uma das primeiras cores que se perde é o negro. Perde-se a escuridão e o vermelho também. Vivo no centro de uma indefinida neblina luminosa. Mas não estou nunca na escuridão. Neste momento esta neblina não sei se é azulada, acinzentada ou rosada, mas luminosa. Tive que me acostumar com isto. Fecho os olhos e estou rodeado de luz, mas sem formas. Vejo luzes. Por exemplo, naquela direção, onde está a janela, há uma luz, vejo minha mão. Vejo movimento mas não coisas. Não vejo rostos e letras. É incômodo mas, sendo gradual, não é trágico. A cegueira brusca deve ser terrível. Mas se pouco a pouco as coisas se distanciam, esmaecem… No meu caso, comecei a perder a vista desde o momento em que comecei a enxergar. Tem sido um processo de toda minha vida. Mas a partir de 55 anos, não pude mais ler. Passei a ditar. Se tivesse dinheiro, teria uma secretária, mas é muito caro. Não posso pagar.
Nunca ficou desesperado por causa da cegueira?
Não. Como foi um processo lento, não houve um momento patético. Mas se uma pessoa perde a vista de repente, pode, inclusive, pensar em suicídio.
O sr. já pensou em suicídio?
Quando era jovem, sim. Mas quando a pessoa é jovem, quer ser o príncipe de Hamlet, Byron, Edgar Alan Poe, ou Baudelaire. Mas agora procuro a serenidade. As pessoas são muito boas para mim. Claro. Sou um velhinho inofensivo. Quem vai me molestar? Não pertenço a nenhum partido político. Sou um velho anarquista spengleriano. Principalmente neste país, as pessoas se interessam muito por política. Eu não. Mas tenho minha consciência tranquila. Falei e escrevi contra Perón. Minha mãe, minha irmã e um sobrinho meu estiveram presos. Ameaçaram-me de morte, mas eu sabia que, se alguém lhe ameaça de morte, você não corre nenhum perigo. Depois vieram todos esses governos. Falei contra o terrorismo, muitas vezes, contra a ditadura militar. Depois escrevi contra uma possível guerra com o Chile. Contra a invasão das Malvinas, escrevi dois poemas e uma milonga, que foi proibida pelo governo.
Pode recitar?
Não me lembro. Tenho um poema que se intitula “Juan Lopez y John Ward”. São dois rapazes, um argentino e um inglês, que poderiam ter sido amigos, mas que se matam na guerra. Tenho uma milonga que se chama “Milonga del Muerto” sobre um soldado que morreu na guerra. As pessoas riem um pouco dessa guerra, mas toda guerra é terrível, até mesmo uma pequena como essa. Morreram 2000 argentinos e 500 britânicos. Conversei com sodados que me disseram que se tivessem um rifle na mão teriam matado seus oficiais. Os sargentos quando viram, fugiram e deixaram os soldados. É que não eram soldados; eram recrutas. Era gente trazida das províncias semitropicais do norte e os mandaram às cercanias do Polo Sul combater soldados verdadeiros. Eram todos rapazinhos de 18 ou 20 anos, ainda que houvesse uma superioridade numérica grande.
Quais foram as grandes sensações de sua vida?
São as grandes sensações da vida de todo homem. O amor, a amizade, a leitura, o gosto por escrever, embora não goste do que escrevo. Nesta casa não há livros meus nem sobre mim. A partir dos 30 anos, não li uma única linha que se escreveu sobre mim. Sei que há bibliotecas inteiras, mas não li nada. Acho que deve-se viver para o futuro. Quando publico um livro, não sei se teve êxito, se está vendendo. O que disse a crítica. Meus amigos sabem que não devem falar do que escrevo.
Por que?
Porque é incômodo falar da própria pessoa. Prefiro falar de outros autores. Deve acontecer o mesmo com outros escritores. Há uma frase muito bonita de Kipling que fala sobre o fracasso e o sucesso. O fracasso e o sucesso são impostores. Ninguém fracassa tanto como imagina. Ninguém tem tanto sucesso como imagina. Além disso, o que importa o sucesso e o fracasso? No fim das contas, todos seremos esquecidos, o que aliás é melhor. Não creio em imortalidade pessoal. Meu pai dizia: “Quero morrer eternamente — corpo e alma”. Segundo a Bíblia, depois dos 70, tudo é aflição. Mas eu diria que antes também. Não é preciso fazer 70 anos para conhecer a aflição. Segundo a tradição, os 33 são a idade perfeita, porque é quando morre Cristo e nasce Adão. Adão nasceu aos 33 anos. Na Idade Média, houve uma discussão muito séria sobre se Adão tinha ou não umbigo. Adão não pode ter umbigo porque não nasceu de mãe, porque foi criado do pó por Deus. Mas, ao mesmo tempo, se lhe falta o umbigo, é imperfeito. Então Adão tem que ter umbigo, embora não tenha tido cordão umbilical. Isto se discutiu com toda seriedade durante muito tempo. Havia teólogos encarniçados em ambos os lados. Sir Thomas Brown, um escritor do século 18, diz “The man without a navel lives in me”. “O homem sem umbigo vive em mim”; ou seja: “Adão vive em mim; sou também o primeiro homem”.
O sr. leu muitos de livros?
Não. Li muito poucos. Sempre reli os mesmos livros. Não conheço a literatura contemporânea. Desde que perdi a vista como leitor em 1955, não li nada de novo.
Mas quando era menino, na biblioteca de seu pai, lia muito?
Não lia muito. Folheava os livros. Não creio que tenha lido quase nenhum livro do princípio até o fim, salvo livros de filosofia. Romances li muito poucos. Para mim, o romancista é Conrad.
O sr. leu pouco, mas sua vida é a literatura. A realidade para o sr. não importa muito. O que importa são as sensações?
Se eu tivesse interesse na realidade europeia, leria jornais. Nunca li um jornal na vida. Pra que lê-los? É tudo bobagem. Só falam de viagens de presidentes, congressos de escritores, partidas de futebol. Por isso gostaria de recuperar a visão para poder folhear um livro, escolher o que vou ler ou omitir. Quase não li romances na vida, fora Joseph Conrad, que para mim é o romancista. Fracassei com grandes romances, com Zachary, com Flaubert.
Mesmo com “Cem Anos de Solidão” o sr. não foi até o fim?
Com “Cem Anos”, não. Completei no máximo 50 anos. Mas é um excelente livro. Gostaria de conhecer o autor.
Não o conhece?
Não tive oportunidade. E possivelmente nunca terei. Ele vive na Colômbia, não? Estive duas vezes na Colômbia. Todo mundo foi muito amável comigo, sobretudo porque sou um ancião inofensivo. Inimigos pessoais não tenho. Às vezes me ameaçam de morte, mas por telefone, o que não tem nenhuma importância. Se uma pessoa quer matar a outra, não avisa porque seria um imbecil. Bem, os assassinos são imbecis.
Queria mudar um pouquinho a assunto. Queria que o sr. falasse do amor.
Ocupou tanto lugar na minha vida, que ocupa pouco em minha obra. Estive casado por três anos e compreendemos que o único modo de continuarmos amigos era a separação. Mas agora também não somos amigos porque não a vejo nunca. Não sei se morreu ou não.
Quer dizer que o sr. acha que o casamento mata mais que o amor?
Três anos de casamento foram um pouco onerosos.
Fale-me de seu sentimento por Buenos Aires.
Mudou tanto a cidade… Já não a conheço… Nasci aqui no centro de Buenos Aires: Rua Tucumán, quatro ou cinco quadras daqui. Toda a Buenos Aires era de casas baixas com terraços, pátios, campainhas manuais. Só havia algumas casas altas perto da praça do Congresso. A cidade toda tinha casas com pátios, poços. Sempre havia uma tartaruga no fundo para comer os bichos: uma espécie de filtro vivo. Buenos Aires mudou completamente. Minha mãe se lembrava des­ta rua sem calçamento.
Mas o sr. é um homem universal, tem todos os sangues…
Não tenho tantos. Meu bisavô era lisboeta. Era Borges de Mon­corvo, uma cidadezinha de Trás-os-Montes. Depois tenho uma maioria de sangue espanhol, uma avó inglesa, algum sangue judaico-português e, muito distante, algum sangue normando dos Bittencourt, uma família de Rouen, noroeste da França. Devo ter ainda algum sangue escandinavo e isto é tudo. Mas eu trato de ser cosmopolita, de ser digno deste planeta.
A sua genialidade vem de que lado?
Não tenho genialidade de ne­nhuma espécie. Sou apenas um pequeno escritor sul-americano, um mínimo argentino."
Carlos Willian Leite, em”Entrevistas” da Bula Revista, 15/06/2013 - 11:16

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Pensamento do dia


"Aquele que adere a uma lei não teme o julgamento que o reinstala numa ordem em que crê. Mas o maior dos tormentos humanos é ser julgado sem lei. Nós vivemos, porém, neste tormento.

Uma pessoa das minhas relações dividia os seres em três categorias: os que preferem não ter nada que esconder a serem obrigados a mentir, os que preferem mentir a não ter nada que esconder e, finalmente, os que amam ao mesmo tempo a mentira e o segredo. Deixo à sua escolha o compartimento que me convém.

Que importa, no fim de contas? As mentiras não conduzem finalmente à via da verdade? E as minhas histórias, verdadeiras ou falsas, não tenderão todas para o mesmo fim, não terão o mesmo sentido? Que importa, então, que sejam verdadeiras ou falsas se, nos dois casos, são significativas do que fui e do que sou?"
Albert Camus, "A Queda"

domingo, 13 de outubro de 2024

Ao Domingo Há Música

 

Verdes são os campos, da cor de limão 
Assim são os olhos do meu coração 
Campo que te estendes, com verdura bela 
Ovelhas que nela vosso pasto tendes
De ervas vos mantendes, que traz o verão
E eu das lembranças do meu coração 
        Luís de Camões

Portugal tem poetas e vozes que sabem dar à poesia o som que nelas se esconde. 
Apresentam-se três grandes vozes que vestiram belíssimas canções de  Zeca Afonso.

Cordis & Cuca Roseta, em Verdes são os Campos. Letra de Luís de Camões e Música de Zeca Afonso.
 
Sara Correia e Ângelo Freire, em Balada de Outono. Letra e Música de Zeca Afonso.
Águas passadas do rio
Meu sono vazio não vão acordar
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai 
que eu não volto a cantar
Rios que vão dar ao mar
Deixem meus olhos secar 
Águas das fontes calai
Ó ribeiras chorai
Que eu não volto a cantar
  
Dulce Pontes, em  Canção De Embalar, canção de Zeca Afonso.
 

sábado, 12 de outubro de 2024

Centro Histórico de Guimarães

Centro Histórico de Guimarães
Distrito: Braga
Concelho: Guimarães
Tipo de Património
Centros Históricos
Proteção Jurídica
Classificado pela UNESCO desde 2001
Descrição
O Centro Histórico da cidade de Guimarães é formado por um conjunto de edifícios, praças e ruas, de grande valor histórico e artístico. Encontra-se classificado pela UNESCO como Património Mundial.
Num território com povoamento muito antigo, onde se encontram vestígios arqueológicos da Pré-História (Citânia de Briteiros) e da Romanização, a cidade, protegida por muralhas, formou-se a partir da Idade Média e foi local de residência da corte no período da formação de Portugal. Da história do Castelo de Guimarães fazem parte vários cercos, como o efectuado pelos castelhanos no reinado de D. Fernando I, suportado vitoriosamente pelos sitiados, e durante a crise de 1385, em que demorou a rendição desta praça a D. João I.
Percorrer, a pé, as ruas do Centro Histórico e descobrir os segredos de um património cultural ancestral é a melhor forma de conhecer a cidade. Ao caminhar pela malha urbana de ruas estreitas, descobrirá a beleza de outros largos e praças, como a Praça de Santiago. A Rua de Santa Maria é uma das mais importantes, pela sequência harmoniosa de fachadas quinhentista, varandas de madeira e casas nobres, como a Casa do Arco. Nesta rua, destaca-se a fachada gótica do edifício medieval de Santa Clara, onde estiveram instalados os antigos Paços do Concelho.
O estilo gótico predomina na fundação dos edifícios de arquitetura religiosa monumental. Muitos deles foram remodelados nos sécs. XVII e XVIII com a introdução de decoração barroca. A igreja de S. Francisco e a Igreja de S. Domingos merecem uma visita. Os cruzeiros são monumentos característicos, com a representação da cruz e decoração escultórica. Não deixe de entrar na Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, onde está instalado o Museu Alberto Sampaio.

UNESCO aprova ampliação de zona classificada como Património Mundial em Guimarães
"O Comité do Património Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, na sigla em inglês) aprovou em setembro de 2023, a ampliação da zona classificada de Guimarães.
A proposta já tinha recebido parecer positivo para reclassificação e viu agora ser confirmada a ampliação da área classificada como Património Mundial.
A proposta da Câmara Municipal de Guimarães previa “duplicar a área classificada, inscrevendo a Zona de Couros na lista indicativa para obter o estatuto de Património da Humanidade”, como se podia ler num comunicado da autarquia de 2015.
“No caso de a candidatura ser bem-sucedida, a área de proteção passará a ser cinco vezes superior à atual, criando-se uma zona tampão desde o topo da montanha da Penha, onde nasce a ribeira de Couros, à Veiga de Creixomil, foz de cursos de água”, acrescentava o texto da altura.
A autarquia do distrito de Braga sublinhou, noutro documento, que “a área classificada agora proposta aponta um novo sentido à leitura do ‘Centro Histórico de Guimarães’, incorporando os espaços primitivos do trabalho na compreensão da génese e desenvolvimento”.

“Até à candidatura, estava consolidada a ideia de que a génese de Guimarães era bipolar: em torno da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e em torno do Castelo, à cota alta. Hoje sabemos que, à cota baixa, se desenvolviam as atividades de curtimenta (certamente, entre muitas outras) e, nesse sentido, é incompleta a noção do burgo medieval sem a compreensão destas inter-relações”, pode ler-se no texto.
A Câmara de Guimarães acrescentou: “O que hoje se vê em Couros resulta do desenvolvimento da indústria nos últimos 100-200 anos, sobrepondo-se, por exigências funcionais, produtivas, às preexistências. Documentalmente, já no século XII o rio é designado como ‘rio de Couros’. Mas parece cada vez mais certa a hipótese da génese desta atividade, neste local, ser muito mais remota, por exemplo, considerando as referências às trocas comerciais presentes no testamento de Mumadona Dias (ano de 959)”.
Percorrer, a pé, as ruas do Centro Histórico e descobrir os segredos de um património cultural ancestral é a melhor forma de conhecer a cidade. Ao caminhar pela malha urbana de ruas estreitas, descobrirá a beleza de outros largos e praças, como a Praça de Santiago. A Rua de Santa Maria é uma das mais importantes, pela sequência harmoniosa de fachadas quinhentista, varandas de madeira e casas nobres, como a Casa do Arco. Nesta rua, destaca-se a fachada gótica do edifício medieval de Santa Clara, onde estiveram instalados os antigos Paços do Concelho.
O estilo gótico predomina na fundação dos edifícios de arquitetura religiosa monumental. Muitos deles foram remodelados nos sécs. XVII e XVIII com a introdução de decoração barroca. A igreja de S. Francisco e a Igreja de S. Domingos merecem uma visita. Os cruzeiros são monumentos característicos, com a representação da cruz e decoração escultórica. Não deixe de entrar na Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, onde está instalado o Museu Alberto Sampaio.

Guimarães
UNESCO aprova ampliação de zona classificada como Património Mundial em Guimarães
O Comité do Património Mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO, na sigla em inglês) aprovou em setembro de 2023, a ampliação da zona classificada de Guimarães.
A proposta já tinha recebido parecer positivo para reclassificação e viu agora ser confirmada a ampliação da área classificada como Património Mundial.
A proposta da Câmara Municipal de Guimarães previa “duplicar a área classificada, inscrevendo a Zona de Couros na lista indicativa para obter o estatuto de Património da Humanidade”, como se podia ler num comunicado da autarquia de 2015.
“No caso de a candidatura ser bem-sucedida, a área de proteção passará a ser cinco vezes superior à atual, criando-se uma zona tampão desde o topo da montanha da Penha, onde nasce a ribeira de Couros, à Veiga de Creixomil, foz de cursos de água”, acrescentava o texto da altura.
A autarquia do distrito de Braga sublinhou, noutro documento, que “a área classificada agora proposta aponta um novo sentido à leitura do ‘Centro Histórico de Guimarães’, incorporando os espaços primitivos do trabalho na compreensão da génese e desenvolvimento”.
“Até à candidatura, estava consolidada a ideia de que a génese de Guimarães era bipolar: em torno da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira e em torno do Castelo, à cota alta. Hoje sabemos que, à cota baixa, se desenvolviam as atividades de curtimenta (certamente, entre muitas outras) e, nesse sentido, é incompleta a noção do burgo medieval sem a compreensão destas inter-relações”, pode ler-se no texto.
A Câmara de Guimarães acrescentou: “O que hoje se vê em Couros resulta do desenvolvimento da indústria nos últimos 100-200 anos, sobrepondo-se, por exigências funcionais, produtivas, às preexistências. Documentalmente, já no século XII o rio é designado como ‘rio de Couros’. Mas parece cada vez mais certa a hipótese da génese desta atividade, neste local, ser muito mais remota, por exemplo, considerando as referências às trocas comerciais presentes no testamento de Mumadona Dias (ano de 959)”.

Núcleos mais importantes:
Citânia de Briteiros
Citânia de Briteiros
Trata-se de um povoado fortificado da Idade do Ferro/época romana. Após quase um século de escavações mais ou menos contínuas, foi posto a descoberto um aglomerado de habitações (cerca de duzentas). Muitas têm planta circular com cerca de cinco metros de diâmetro, por vezes possuem um pequeno ou alpendre; outras têm a forma elíptica ou, ainda, rectangular.
Castelo de Guimarães
Castelo de Guimarães
A construção primitiva, possivelmente em terra e madeira, foi edificada entre 959 e 968, pela condessa Mumadona viúva do conde Hermenegildo Mendes, para proteger o seu mosteiro e a povoação local das invasões normandas. Mais tarde, o conde D. Henrique remodelou o castelo, em cuja alcáçova terá nascido D. Afonso Henriques, 1º rei de Portugal.
Igreja do Convento de S. Francisco., Guimarães
Igreja do Convento de S. Francisco., Guimarães
Igreja do Convento de S. Francisco 
É de raiz gótica e foi edificada no séc. XV. Da sua primitiva traça, resta, atualmente, o pórtico, flanqueado por dois elevados contrafortes, envolto pela decoração de semi-esferas das três arquivoltas que são sustentadas por seis colunelos de capitéis esculpidos, e a abside, poligonal, apoiada nos seus cantos por maciços contrafortes escalonados. Bastante acima do portal, abre-se o óculo da anterior rosácea.
Igreja de Nossa Senhora da Oliveira, Guimarães
Igreja de Nossa Senhora da Oliveira
Também conhecida por igreja da Colegiada, supõe-se que o primitivo templo foi fundado, no séc. XI, pela condessa Mumadona. Daquele período não restam vestígios; o edifício pré-românico sofreu, ao longo dos tempos, acréscimos e alterações."
Fonte de informação
CNC / LUSA
Bibliografia
ALMEIDA, José António Ferreira de (orientação e coordenação), Tesouros Artísticos de Portugal, Selecções do Reader's Digest, Lisboa, 1982.
GIL, Júlio e CALVET, Nuno, As mais belas igrejas de Portugal, vol. I, Verbo, Lisboa, 1988.
LOPES, Flávio (coord.), Património Classificado - Arquitectónico e Arqueológico - inventário, vol. I, IPPAR, Lisboa, 1993.
OLIVEIRA, Manuel Alves de, Guia de Portugal de A a Z, Círculo de Leitores, Lisboa, 1990.
Data de atualização
22/09/2023
e-Cultura. pt , Centro Nacional de Cultura

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Canção

Canção
Que me nivela ao que me amarga! Voa
E acima , além da minha vil tristura,
Se eu não perdoo, tu perdoa!
José Régio, Mas Deus é grande

  . 

HAUSER e Aida Garifullina interpretando Les Contes d'Hoffmann: Barcarolle, de Jacques Offenbach, no Classic Gala Concert ,no Royal Albert Hall, Londres, Maio de 2024, acompanhados pela Royal Philharmonic Orchestra , sob a direcção do Maestro Robert Ziegler.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Nobel da Literatura para escritora da Coreia do Sul

Han Kang , The New YorK Times

Nobel da Literatura para escritora da Coreia do Sul, Han Kang
"A poeta sul-coreana, sucede ao norueguês Jon Fosse ao receber a maior distinção literária do mundo, atribuído pela Academia sueca, pelo valor de 11 milhões de coroas suecas. A entrega do prémio decorrerá a 10 de dezembro.
O Nobel da Literatura 2024 acabou de ser atribuído à romancista e poeta sul-coreana Han Kang numa cerimónia que teve lugar em Estocolmo e foi difundida em streaming. Han Kang sucede ao romancista e dramaturgo norueguês Jon Fosse, que foi premiado o ano passado.
Como acontece anualmente, há dias que se especulava sobre quem seria o vencedor, sendo que as apostas recaíam sobre a chinesa Can Xue, o japonês Haruki Murakami e o australiano Gerard Murnane. Tinha-se a perceção de que o prémio não recairia sobre um autor europeu ou ocidental, o que acabou por confirmar-se.
“Quando lhe telefonámos, ela tinha acabado de jantar com o filho, num dia normal. Não estava preparada para isto mas já começamos a discutir os preparativos para dezembro, teremos muito gosto em tê-la aqui”, disse o secretário da Academia Sueca. A escolha do seu nome celebra "a sua prosa poética intensa que confronta traumas históricos e expõe a fragilidade da vida humana”.
Nascida em Gwangju, na Coreia do Sul, em 1970, lançou-se como romancista em 1995, vencendo anos mais tarde o Korean Fiction Award. Em 2007, escreveu “A Vegetariana”, romance por cá publicado pela D. Quixote que acabaria por receber Man Booker International Prize em 2016. Além deste livro, em Portugal foram traduzidas outras obras suas, tais como “Lições de Grego”, “O Livro Branco” e “Atos Humanos”, pela mesma editora.
“Os seres humanos não hesitam em dar a sua própria vida para salvar uma criança que caiu na linha do comboio, mas também são autores de violências terríveis, como em Auschwitz. O vasto espectro da humanidade, que vai do sublime ao brutal, tem sido para mim, desde criança, um problema difícil e trabalhoso. Pode dizer-se que os meus livros são variações sobre este tema da violência humana", declarou em 2016 à “The White Review”.
Desde 1901, o Nobel da Literatura foi outorgado a 120 escritores. E Han Kang é a 18ª mulher que o recebe, ao lado de Annie Ernaux, Olga Tokarczuk, Doris Lessing, Herta Müller e Louise Glück, entre outras. A entrega do prémio, com o valor pecuniário de 11 milhões de coroas suecas - o equivalente a cerca de 967 mil euros - decorrerá numa cerimónia a 10 de dezembro." (Luciana Leiderfarb, Jornalista do Expresso)
Prémios Nobel 2024 já outorgados:
Nobel da Fisiologia ou Medicina - Victor Ambros e Gary Ruvkun
Nobel da Física - John J. Hopfield e Geoffrey E. Hinton
Nobel da Química - Demis Hassabis, John M. Jumper e David Baker
Nobel da Literatura - Han Kang
Próximos anúncios:
Nobel da Paz - sexta-feira, 11 de outubro
Nobel da Economia - segunda-feira, 14 de outubro

This is my song

 
VOCES8, em This Is My Song (Finlândia), de Jean Sibelius
 arranjos de  Blake Morgan
This is my song

This is my song, O God of all the nations,
A song of peace for lands afar and mine. This is my home, the country where my heart is, Here are my hopes, my dreams, my holy shrine. But other hearts in other lands are beating, With hopes and dreams as true and high as mine. My country’s skies are bluer than the ocean, And sunlight beams on cloverleaf and pine. But other lands have sunlight too, and clover, And skies are everywhere as blue as mine. *This is my song, O God of all the nations, A song of peace for their land and for mine. So let us raise this melody together, Beneath the stars that guide us through the night; If we choose love, each storm we’ll learn to weather, Until true peace and harmony we find, This is our song, a hymn we raise together; A dream of peace, uniting humankind.

*modified from Stone’s original poetry 

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Duas garrafas de Chianti ou um verso de Racine?

Eugénio Lisboa

É impossível não publicar textos literários sem que Eugénio Lisboa não seja o primeiro grande nome que se insinue. É tal a dimensão da sua obra , que bastava para justificar. Mas não se trata apenas de dimensão, a qualidade mergulhou em toda a sua obra . Trata-se de um escritor maior, multifacetado, que nunca teve pejo de ir onde muitos não foram para abordar qualquer tema e, naquele franco falar, produzir obras de verdadeira genialidade.
O texto, que se apresenta, foi extraído do livro Portugaliae Monumenta Frivola ou As verdadeiras e as Falsas Riquezas, e recebeu o Prémio Jacinto Prado Coelho pela Associação Internacional dos Críticos Literários , em 2000.
 
Duas garrafas de Chianti ou um verso de Racine?
por Eugénio Lisboa
"Não há artes menores, só há artistas menores. Quando Mozart compunha uma música de fundo, para banquetes nos palácios dos seus patronos, não estava a produzir música menor. Quando Rui Coelho escrevia música orquestral séria e ambiciosa, fabricava pastelões abaixo de menores.
Uma cortina , o design de um copo ou de um vaso, uma máquina de fazer  café podem surpreender-nos, desencadeando em nós uma emoção estética tão forte como um alexandrino de Racine.
Julgo ter razões para pensar que, para um espírito como o de Leonardo, nada estava abaixo do seu apetite criador ou do seu olho voraz. " Se Botticelli estivesse hoje vivo " , dizia Peter Ustinov, " estaria a trabalhar para a  Vogue".
Há quem goste de troçar, sem razão, do grande químico inglês Humphry Davy que, ao ser-lhe perguntado que impressão lhe causavam as galerias de arte de Paris, respondeu: " São a melhor colecção de molduras que até hoje vi.". A resposta é menos tola do que possa parecer, porque não só uma moldura  pode ser uma admirável obra de arte como, em muitas galerias, se se não salvam as molduras, pouco se salvará.  Humphry Davy mostrou apenas uma grande e intrépida candura e um espírito esplendorosamente  despido de preconceitos.
Muitas vezes troça-se do que é admirável só porque o que é admirável não é pomposo.  Nada mais ridículo  - ou até odioso - do que pretender-se transformar a arte em Arte.  Um personagem da famosa peça  Equus,  de Peter Shaffer, fala da sua mulher com um desprezo mal fundado: " Tudo quanto a minha mulher  conseguiu trazer do Mediterrâneo - de toda essa vasta cultura  intuitiva - foram duas garrafas de Chianti, para as transformar em candeeiros, e dois burrinhos para condimentos, em porcelana, com os nomes de Sally e Peppy". Pensar que duas garrafas  de Chianti não podem  dar, com imaginação criativa, dois candeeiros elegantes e clássicos, releva daquela estupidez pomposa de quem não gosta de confundir arte com Arte.
Toda a arte começou por não ser pomposa mas arrisca-se a acabar soterrada em pompa. Muita da audiência para que Shakespeare  escrevia as suas peças  era apenas a escumalha de Londres. Thomas Mann via no artista  criador - mesmo no mais insigne - um "entretainer" e até um clown.
O design tem potencial e às vezes tem competência para produzir , em nós, a emoção equivalente à que em nós constrói um verso de Racine.  Comprei em Nápoles e em Barcelona, uma máquina de café e um pequeno bule de bronze, que gosto de revisitar como revisito -  com a mesma emoção - os versos que de há muitos anos nos devolvem , com elegância trágica, a mortal angústia de Fedra.
O moderno design dá à vida um estilo e uma elegância que a vida normalmente não tem. Só isso mostra que o design tem o estatuto de arte, se é verdade, como queria Voltaire, que o segredo das artes está em corrigir a natureza. Acrescentando-a, proporia eu."
Eugénio Lisboa, in Portugaliae Monumenta Frivola ou As verdadeiras e as Falsas Riquezas,  1ª edição,  2000, Universitária Editora, Lda. , pp.135,136.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Viajar no Outono: Vermont e a deslumbrante folhagem

VERMONT 4K Scenic Relaxation Film | Flying Over Vermont | Cinematic Drone Movie 
Vermont é um estado no nordeste dos Estados Unidos, conhecido pela sua paisagem natural, composta principalmente de florestas. O estado faz parte da região da Nova Inglaterra dos Estados Unidos da América e abriga mais de 100 pontes de madeira cobertas do século XIX. Trilhas e pistas de esqui atravessam milhares de acres de relevo montanhoso.
Os Scenic Relaxation Film,  que produziram este magnífico filme, lançam-lhe o seguinte convite: "Fuja para a beleza pitoresca de Vermont com o nosso hipnotizante filme de relaxamento panorâmico 4K. Junte-se a nós numa jornada aérea de tirar o fôlego enquanto sobrevoamos as paisagens exuberantes, lagos tranquilos e cidades encantadoras que fazem de Vermont um verdadeiro paraíso para os amantes da natureza e para aqueles que buscam serenidade. Neste filme cinematográfico de drones, nossa câmara de alta definição leva-o a um voo imersivo sobre as colinas e florestas vibrantes que definem a essência de Vermont. A deslumbrante folhagem de outono pinta a paisagem num caleidoscópio de cores, criando um espetáculo de tirar o fôlego que é um espetáculo para ser visto. Enquanto o drone desliza sem esforço pelo ar, testemunhará a majestade das icónicas pontes cobertas de Vermont que são testemunhos da rica história e herança arquitectónica do estado. Capture a essência da Nova Inglaterra enquanto passamos por celeiros pitorescos, casas de fazenda idílicas e charmosas pequenas cidades aninhadas nesta beleza natural. Prepare-se para se encantar enquanto exploramos as margens imaculadas dos serenos lagos e rios de Vermont. Das margens tranquilas do Lago Champlain às águas cintilantes do Lago Willoughby, as águas cristalinas reflectem as montanhas circundantes, criando um cenário perfeito para cartões postais que acalmará a sua mente e acalmará a sua alma. À medida que nos aventuramos ainda mais, descobrirá as impressionantes cadeias de montanhas de Vermont, incluindo as majestosas Montanhas Verdes. Maravilhe-se com os picos escarpados, cachoeiras em cascata e florestas exuberantes que criam um playground para os entusiastas do ar livre, oferecendo oportunidades para caminhadas, esqui e reconexão com a natureza. Experimente as alegrias simples da charmosa vida rural de Vermont enquanto capturamos os vibrantes campos agrícolas, aldeias pitorescas e habitantes amigáveis que incorporam o espírito caloroso e acolhedor do estado. Mergulhe no ritmo mais lento da vida e deixe a beleza natural de Vermont lavar o stress do mundo. Se procura relaxamento, inspiração ou uma escapadela virtual, nosso filme de relaxamento panorâmico 4K irá transportá-lo para as paisagens idílicas de Vermont. Sente-se, relaxe e deixe as imagens e sons deste estado pitoresco preencherem os seus sentidos. " 4K Scenic Relaxation Film

domingo, 6 de outubro de 2024

Ao Domingo Há Música

Escutando no vento
Tua voz secreta
Que me sopra por dentro
Deixa-me ser só ser 

No teu colo eu me entrego 
Para que me nutras
E me envolvas
Deixa-me ser só ser

Um ponto de luz
Que me seduz
Aceso na alma 
    Sara Tavares 

Há vozes que permanecem para lá do tempo. Deixaram registos que são sempre inéditos a cada audição. Descobre-se uma outra tonalidade que seduz e se espalha na luz que dela emana. 
Recorda-se ,hoje, uma cantora-compositora que desapareceu jovem, mas  deixou um acervo de canções que  marca o cancioneiro musical.
Sara Tavares, a cantora luso-cabo-verdiana, morreu a 19 de Novembro de 2023.Tinha 45 anos .

Sara Tavares, Ala dos Namorados  e  Nuno Guerreiro , em Solta-se o beijo ( duetos) .
 
Sara Tavares com Paulo Flores, em  Flutuar , no programa Eléctrico da Antena 3.
  
Sara Tavares, em Perdidamente. Poema de  Florbela Espanca e Música de  João Gil. Campo Pequeno ,  Lisboa , 14-12-2017 .
  
Sara Tavares, em  Ponto de Luz, do Álbum Xinti , editado em 2009.
 

sábado, 5 de outubro de 2024

O Homem e o Livro

O Homem e o Livro
por Eugénio Lisboa
"As relações do homem com o livro vão, desde a indiferença, passando pelo amor e podendo chegar até ao ódio. Por mais estranho que pareça, há pessoas para quem o livro é, de todo, indiferente: há lares onde se não vê um único livro. Sim, há quem de todo não leia. A família real inglesa, por exemplo, é notoriamente conhecida como amando imenso os cavalos mas sendo, completamente, indiferente aos livros. Foi até, baseado neste facto, que o escritor Alan Bennett escreveu um livro delicioso – The Uncommon Reader - , no qual imaginou a actual rainha Isabel, que, tendo, por desfastio, tomado de empréstimo, um romance de Ivy Compton-Burnett, se pôs a lê-lo, assim adquirindo um inesperado e, para todo o Palácio de Buckingham, escandaloso vício da leitura. O cómico reside no improvável do caso. O pior, na história, é que a rainha não só adquire o hábito de ler, como, até, supremo sacrilégio, passa também a ter o gosto de escrever! Para quem saiba da profunda indiferença dos Windsors por tudo quanto seja leitura ou escrita, a improvável congeminação de Bennett tem um sabor ultrajantemente delicioso.
Um episódio picante foi também o ocorrido com o duque de Gloucester, irmão do rei Jorge III, a quem o grande historiador Edward Gibbon ofereceu o primeiro volume da sua hoje famosa The History of the Decline and Fall of the Roman Empire. Quando o segundo volume desta obra apareceu, julgou apropriado oferecê-lo também ao duque. Este recebeu o volume com afabilidade, mas com estas palavras de algum fastio: “Mais um calhamaço chato! Sempre a escrevinhar, a escrevinhar, a escrevinhar! Eh, Mr. Gibbon?” A relação dos “royals” com o livro não foi nunca de grande empatia… E há muita gente para quem o livro é apenas aquilo de que se faz um filme para a televisão ou para o cinema. Por outro lado, há os que, como o poeta galês, Dylan Thomas, leram apaixonada e indiscriminadamente até os olhos lhes saltarem das órbitas (palavras do próprio Thomas). No outro extremo, estão os que perseguem o livro, proibindo-o ou queimando-o. Um exemplo de instituição encarregada de censurar livros foi o Index Librorum Prohibitorum, estabelecido pela Igreja Católica, em 1559. Entre os grandes escritores “apanhados” na rede persecutória do Index, estão Bacon, Milton, Locke, Daniel Defoe, Richardson, Hume, Sterne, Goldsmith, Descartes, Montaigne, Spinoza, Rousseau, Pascal, Kant, Stendhal, Hugo, Balzac, Casanova, Dumas, Flaubert, Zola, Gide, Sartre e Moravia, entre outros.
Nem sempre foi precisa a inquisição católica, para se perseguir, com eficácia, o livro. A rainha Isabel I, que não gostava da cena, na peça Richard II, de Shakespeare, na qual o rei é deposto, mandou “apagá-la” em todos os exemplares da obra. E, entre 1788 e 1820, o King Lear foi proibido nos palcos ingleses, para não se fazer a ligação entre a peça e a loucura do rei Jorge III.
No primeiro quartel do século XX, a Watch and Ward Society, em Boston, fez também uma razia censória, de que uma das vítimas foi o grande dramaturgo americano Eugene O’Neill: o censor foi, para o caso, um primo do presidente da câmara, que, tendo perdido um braço, se viu despedido do seu emprego de tocador de tambor, pelo que obteve o trabalho de censor.
Mas a suprema forma de censura ao livro é a queima na praça pública. Os nazis foram magníficos incendiários de livros de que não gostavam e não convém também esquecer os bombeiros incendiários de livros, do famoso romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Mas os nazis não inventaram nada: a queima de livros vem de tempos muito remotos, não é uma invenção do século XX. Os Analectos, de Confúcio, foram queimados (c. 240 A.C.) e centenas dos seus discípulos enterrados vivos. Em 1497, as obras de Ovídio, Propércio, Bocaccio, Dante e outros foram queimadas pelo monge Savonarola, na grande “Fogueira das Vaidades”, de Florença; em 1521, as obras de Martinho Lutero foram destruídas pelo fogo, por ordem do Papa Leão X; em 1599, as obras de Ovídio viram a fogueira, em Londres; em 1660, as Lettres à un Provincial, de Pascal foram incineradas por ordem de Luis XIV; as Lettres Philosophiques e o Temple du Goût, de Voltaire viram a fogueira em 1734; em 1795, as obras de Cagliostro foram devidamente queimadas.
Hoje, fico-me por aqui. Talvez ainda volte a esta estranha relação do homem com o livro. Muito ficou por dizer. "
Eugénio Lisboa, em Ensaio publicado na rubrica " Ipsissima  Verba", da  Revista LER, 2017    

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

O beijo

 

O BEIJO 
por Anton Tchékhov 
“ Às oito da noite do dia vinte de Maio, as seis baterias da brigada de artilharia de reserva N., em marcha para o acampamento, fizeram alto para pernoitar na aldeia de Mestétchki. No auge da barafunda, enquanto uns oficiais se atarefavam em volta dos canhões e outros, na praça, num magote encostado à cerca da igreja, se entendiam com o quartel‑mestre sobre o aboletamento, surgiu por trás da igreja um cavaleiro à civil montado num cavalo invulgar. Era um baio malhado, pequeno e raboto, de pescoço lindo, que não andava a direito, mas ladeava em passinhos curtos de dança como se estivessem a chicotear‑lhe as pernas. Chegado ao pé dos oficiais, o cavaleiro ergueu o chapéu e disse: 
— Sua senhoria o tenente‑general e proprietário von Rabbeck manda convidar os senhores oficiais para tomarem chá lá em casa, agora mesmo…
O cavalo fez uma vénia, dançou e recuou ladeando; o cavaleiro voltou a erguer o chapéu e, num instante, desapareceu mais o cavalo por trás da igreja.
 — Raios o partam — resmungava‑se entre os oficiais, que se puseram a caminho dos alojamentos. — Apetece é dormir, e vem este von Rabbeck com o chá dele! Já se sabe que rico chá vai ser!
Todos os oficiais das seis baterias recordavam nitidamente um caso do ano passado, durante as manobras, em que eles, juntamente com os oficiais de um regimento de cossacos, tinham sido convidados da mesma maneira para o chá, por um conde, também proprietário rural e militar na reserva; o conde fora hospitaleiro e simpático, serviu‑lhes o jantar e bebidas e não os deixou ir para onde estavam aboletados, fê‑los dormir em sua casa. Tudo bem, até óptimo, não fora o homem ter‑se, infelizmente, alegrado de mais com a visita dos jovens. Toda a noite falou, até ao amanhecer contou à rapaziada os episódios do seu belo passado, passeou‑os pelos aposentos, mostrou‑lhes telas caras, gravuras antigas, armas raras, leu‑lhes cartas que personalidades altamente colocadas lhe tinham endereçado, e os oficiais extenuados ouviam, olhavam e, na ânsia de uma cama, bocejavam à socapa nas mangas; quando, finalmente, o anfitrião os largou já não eram horas de dormir.
Não será igual, este Rabbeck? Seja ou não seja, nada a fazer. Os oficiais mudaram de roupa, aprontaram‑se e foram em bando à procura do solar do Rabbeck. Na praça, perto da igreja, tinham‑lhes dito que se podia chegar à propriedade por dois caminhos: o de baixo — descer, por trás da igreja, até ao rio, marginá‑lo até ao parque e, do parque, qualquer alameda os levava ao destino; o de cima — a partir da igreja, seguir a direito pelo caminho que, uns quinhentos metros mais à frente dava para os celeiros da propriedade. Escolheram o de cima. — Que Rabbeck será este? — cogitavam alto enquanto andavam. — Não é o que comandou em Plevna a divisão de cavalaria N.?
— Não, esse não era von Rabbeck, era simplesmente Rabbe, sem von.
— Mas que rico tempo está!
Junto do primeiro celeiro da propriedade, o caminho bifurcava‑se: um ramal seguia em frente e perdia‑se na bruma do crepúsculo; o outro metia para a direita, até à casa senhorial. Os oficiais viraram à direita e começaram a falar mais baixo… De ambos os lados do caminho erguiam‑se celeiros e mais celeiros de pedra com telhados vermelhos, pesados e severos, um pouco como casernas de cidade de província. Em frente luziam as janelas do solar.
— Meus senhores, bom sinal! — informou um dos oficiais. — O nosso setter vai à frente: fareja caça…
 O tenente Lobitko, à frente de todos, alto e forte mas imberbe (passava dos vinte e cinco e não se lhe via um único pêlo na cara redonda e cevada), famoso na brigada pelo seu faro e capacidade de adivinhar à distância a presença de mulheres, virou‑se e disse:
 — Sim, há mulherio para estes lados, o meu instinto sente‑o. À porta de casa, foram recebidos pelo von Rabbeck em pessoa. Andaria pelos sessenta anos, bem apessoado, trajando à paisana. Enquanto apertava as mãos aos convidados, ia dizendo que estava feliz e contente, mas pedia encarecidamente aos senhores oficiais, por amor de Deus, que lhe perdoassem por não os ter convidado a pernoitar lá em casa; é que tinham chegado de visita duas irmãs com os filhos, mais uns irmãos e uns vizinhos, não tinha um único quarto livre.
Pedia muitas desculpas, apertava as mãos de todos e sorria, mas via‑se‑lhe pela cara que estava, de longe, menos contente com a visita do que o conde do ano transacto e que só convidara os oficiais porque as conveniências assim o exigiam. Os oficiais sentiam‑no ao subirem a escadaria atapetada e, à vista da criadagem em roda‑viva a acender as luzes em baixo, à entrada, e em cima, no vestíbulo, começou a parecer‑lhes que estavam ali só porque seria indelicado não os convidarem e que introduziam naquela casa um incómodo e uma inquietação. Numa casa em que, por um fausto de família qualquer, se reuniam duas irmãs com os filhos, e mais uns irmãos e uns vizinhos, alguma vez agradaria a invasão de dezanove oficiais desconhecidos?
Em cima, à entrada da sala, os convidados foram recebidos por uma matrona de idade, alta e esbelta, (...)”
Anton Tchékhov , in O Beijo, Relógio D’Água Editores, pp.7-11
Sobre o livro
"Riabóvitch é a imagem da autoconsciência, claramente ciente do seu comportamento desajeitado, da pequena estatura e aparência incomum. Ao frequentar uma glamorosa recepção organizada pelo tenente-general von Rabbeck, Riabóvitch evita os outros convidados e acaba por se refugiar numa sala escura, onde de repente se encontra nos braços de uma mulher que lhe dá um beijo apaixonado. Mas, assim que a mulher percebe que Riabóvitch não é o homem que esperava, desaparece.
Com a memória daquele beijo gravada na sua mente, Riabóvitch sai da festa transformado, ignorando ainda o efeito que aquele beijo terá no seu futuro."
Anton Tchékhov
Sobre o autor:
"O avô de Anton Tchékhov era servo; O pai, um pequeno comerciante. Na década de 1870 arruinou-se, pelo que toda a família se mudou para Moscovo; Anton Tchékhov ficou sozinho em Taganrog (Sudeste da Rússia) a fim de terminar o curso dos liceus. Viu-se obrigado a ganhar a vida. Terminado o curso, em 1879, mudou-se também para Moscovo e entrou na universidade.
Tchékhov começou a escrever os seus primeiros contos para ajudar a família.
Ao acabar o curso de Medicina, tornou-se assistente do médico distrital de uma pequena cidade de província.
As duas primeiras colectâneas de contos de Tchékhov — Contos Matizados e No Crepúsculo — foram editadas em 1886 e 1887 e mereceram de imediato o reconhecimento dos leitores. A partir daí, e com a publicação de contos, novelas e de peças como A Gaivota e O Ginjal, passou a ser considerado um dos mais importantes escritores russos, tendo a possibilidade de publicar as suas obras nas melhores revistas literárias, de abandonar a prática clínica e de se dedicar a tempo inteiro à literatura. Depressa comprou uma pequena casa perto de Moscovo, onde se instalou com toda a família.
Em Junho de 1904, já muito enfraquecido pela tuberculose, viajou pela última vez em busca da cura — desta vez para Badenweiler, na Floresta Negra alemã. (…) Morreu a 2 de Julho de 1904, longe da família e dos amigos. (A partir de um texto de Vladimir Nabokov)"
Título : O Beijo
Autor: Anton Tchékhov
Categoria: Contos Singulares
Tradução: Filipe GuerraNina Guerra
Data de publicação: 11/06/2024
Nº de páginas: 56
Acabamento: capa mole
Preço: 6,30 €

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Essa memória persistente

Lourenço Marques, Avª Pinheiro Chagas nos anos 30

Lourenço Marques, final da Avª Pinheiro Chagas ,
no Alto Mahé, anos 60.
Começar
por Eugénio Lisboa
"Eu tinha seis anos e entrei para a chamada “classe infantil” (que, nessa altura, ainda existia, tendo, depois, sido abolida). Tive, ali, duas professoras excelentes, a viúva Chaves Maia (como era conhecida) e a D. Ernestina Machado, pedagogas notáveis. Foi o que se pode chamar uma iniciação sem dor e mesmo com grande prazer lúdico. Com plasticina, carimbos e jogos vários, aprendemos a ler, escrever e contar, como se de nada se tratasse. Uma festa! Tudo, num ambiente de grande ternura maternal, onde não havia nem a suspeita de um castigo. Julgo que acabei por saltar depressa a primeira e a segunda classes, indo desaguar na terceira classe da D. Laurinda Magalhães: uma Senhora sobre o pletórico – mas não gorda – de voz um pouco cheia ou mesmo ligeiramente rouca, maternal, mas exigindo disciplina, de um modo amistoso mas não “camarada” (o que seria um erro). Eu adorava‑a, pura e simplesmente. Gostávamos dela, mas não abusávamos. E sentiamo‑nos tanto mais aconchegados quanto, na sala ao lado, uma outra professora – Amena Cassanhe – metralhava com a sua fúria sádica, a golpe de gritos e violentas palmatoadas, uma turma de garotos pálidos e aterrados. Por vezes, perdia literalmente a cabeça e despenhava‑se por ali abaixo, numa gritaria de fêmea mal saciada. A gritaria chegava até nós, furando a opacidade das paredes e nós olhávamos para a D. Laurinda, pedindo protecção. Não sei se, por acção do sr. Garradas, a Cassanhe foi transferida para outra escola lá mais para os lados da Polana. Mas creio que veio a ter um processo disciplinar, tendo sido afastada.
Trinta e muitos anos depois de ter frequentado a terceira classe da D. Laurinda, por ocasião de uma entrevista que dei ao Rádio clube de Moçambique, tendo‑me sido perguntado de que professores me lembrava com particular carinho, referi a D. Laurinda, procurando justificar essa memória persistente. Eu não sabia se ela ainda era viva ou, sendo, se ainda viveria em Moçambique. Mas eis que, um ou dois dias depois da entrevista, atendo um telefonema: era aquela inconfundível voz, cheia, quase rouca, agradecendo, com lágrimas (que eu “ouvia”...), as palavras bonitas do “Sr. Engenheiro”... Quase chorei eu, também, a pedir‑lhe que me tratasse por “tu”, como nos tempos da Paiva Manso e do sr. Garradas. Com a D. Laurinda, tudo tinha sido fácil, fluente e apetecido: a leitura, o ditado, a aritmética,a geografia... Nós gostávamos daquilo, porque gostar daquilo era como gostar da D. Laurinda. Com a idade que agora tenho, a D. Laurinda já não pode estar viva – mas está viva dentro de mim e de algum colega meu, desse tempo, que, por acaso, ainda viva. Ao ter‑me iniciado na escola, no estudo, com estas três inesquecíveis senhoras, acho que tive uma sorte prodigiosa. Tudo teria podido ser diferente – para pior ou muito pior – se, em vez de três pessoas inteligentes, sensíveis, competentes e bondosas, me tivesse saído na rifa uma ressabiada, com desejo de sangue e violência. Que as havia, como se viu...
Falando da Paiva Manso, é imprescindível referir os intervalos entre as aulas: era durante o segundo intervalo da manhã que comíamos a merenda – no meu caso, um pãozinho circular, fofo, só muito ligeiramente adocicado, com manteiga, e uma garrafinha de “Toddy”. Esta merenda deixou‑me, na memória, uma marca mais profunda do que não sei quantas madeleines do Proust! Sabia‑me que nem nozes. Quem queria, jogava o berlinde e era, também, durante os intervalos que se armavam as zaragatas entre os que aspiravam ao título de campeão. No território da escola, não se lutava: ficava tudo aprazado para “lá fora”, depois da última aula. Os aspirantes ao “título”, naquela altura do campeonato, eram o Gui e o irmão, de que me não lembro do nome (chamar‑lhe‑ei, por comodidade, Fernando). O Gui era mais novo e mais pequeno, mas era também o mais fogoso e atrevido. Estava absolutamente convencido de que daria uma abada ao irmão, mas o Fernando deu‑lhe, com alguma dificuldade, uma sova mestra, e o caso ficou arrumado. Esta vitória, arrancada a ferros, subiu‑lhe à cabeça e tornou‑o perigosamente provocador: começou a pensar que o seu poder não tinha limites e desatou, sem motivo que se visse, a provocar um colega mulato, grande, gordo e algo balofo. Era uma alma pacífica, pachorrenta e estava pouco virado para zaragatas, “lá fora”. Estas tinham sempre lugar num vasto terreno baldio entre a 24 de Julho e a Pinheiro Chagas. O Fernando, apesar do desinteresse do gorducho, queria, à força, juntar mais uma vitória ao seu currículo. É que, apesar de molengão e passa‑culpas, o potencial adversário pesava uma abada de quilos mais do que ele. E bater aquele latagão dar‑lhe‑ia material q.b. com que alimentar a sua bazófia. Um dia, finalmente, depois de muito assediado e gozado, o latagão dignou‑se dizer, com o seu costumado ar de pachorra arrastada: “Está bem, encontramo‑nos à saída.” O Fernando exultou! Ia, finalmente, mostrar que os homens não se medem aos palmos. Durante o resto da manhã, o Fernando desenvolveu uma infatigável actividade, arregimentando público para assistir ao seu triunfo: nervos e audácia contra uma massa bruta e amorfa! A malta engoliu, impaciente, a última aula, sem quase prestar atenção ao que o professor dizia e, mal a campainha tocou, precipitamo‑nos, de atropelo, para a entrada do baldio. O Fernando começou aos saltinhos nervosos, dando socos no vazio, como boxeur que aquece para a refrega. Pachorrentamente, o matulão desembaracou‑se da mochila, com ar de quem se prepara para almoço e sesta, aproximou‑se do dançarino, deu‑lhe um piparote desenfastiado, que o deitou ao chão e deixou‑se cair, de barriga, em cima dele, ficando ali a espremê‑lo. “Diz quando chega...”, disse ele, como quem se prepara para passar ali a tarde toda, sendo preciso... O Fernando, sufocado, lá disse que chegava e se dava por vencido. O latagão removeu aquela tonelada de carne mulata de cima do Fernando, levantou‑se com uma lentidão cheia de ameaças, sacudiu‑se molemente, pegou na mochila e pôs‑se a andar para casa, ao ralenti. Todo o seu corpo parecia resmungar: “Haja pachorra!” O Fernando sacudiu‑se, vexado. Foi o fim do mito dos dois irmãos imbatíveis: o Gui apanhara do irmão e este apanhara do mulato pachorrento. De aí em diante, não me lembro de ouvir bravatas de qualquer aspirante ao título. Era tudo diabolicamente imprevisível: podia sempre aparecer uma valente sova, vinda de onde menos se esperava. As aparências iludem, como acabara de verificar o Fernando
."
Eugénio Lisboa in “Acta Est Fabula, Memórias I, Lourenço Marques”, Opera Omnia Editora, Novembro de 2012  pp.27-31