quarta-feira, 31 de julho de 2024

Mar, rio e céu

Mar, rio e céu
por Raúl Brandão 
"É que tudo, até as coisas, num dado momento, foram para mim seres de uma vida extraordinária; um ser esplêndido, o rio, a que me entrego dentro de quatro tábuas; o cabedelo cheio de mistério, onde ponho os pés com terror; o largo, o profundo mar, que me levou alguns dos meus, constante preocupação dessa gente e que de quando em quando os mata à minha vista. As figuras em sonhos tornam-se a debruçar para mim, estendendo-me outra vez as mãos... E é sonhando também que me recordo de certas coisas sem importância: do jeito que era preciso dar às portas manhosas, para as poder abrir, de uma expressão de que me separam léguas de esquecimento, de pequenos nadas que duram um segundo, um olhar ou um sorriso molhado de ternura. Acontece que às vezes acordo tendo diante de mim intacto um rosto consumido pela terra. Os meus mortos estão cada vez mais vivos. É saudade, mas não é só saudade. Isto vem de muito fundo. Os meus actos são guiados por mãos desaparecidas e minha convivência é com fantasmas. Este cheiro de alcatrão vou levá-lo nas narinas para a cova; esta paisagem – mar, rio e céu – entranhou-se-me na alma, não como paisagem mas como sentimento. Ressuscito as horas que perdi debruçado no velho muro e sinto o grão de pedra onde punha as mãos quando contemplava a engenhoca do meu vizinho António Luís."
Raúl Brandão, in Memórias, Aillaud Lisboa Bertrand

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