terça-feira, 16 de julho de 2024

Um mundo para mim

 Lourenço Marques, Moçambique
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por Eugénio Lisboa
"O nosso mundo – o meu e dos meus irmãos, o Fernando, mais velho do que eu um ano, e o Ilídio, mais novo também um ano – era o do Largo João Albasini, do Alto‑Mahe, com incursões pela Latino Coelho, paralela à 24 de Julho, para o lado do aeroporto e das Mahotas. Na Latino Coelho, havia a loja do sr. Pimentel, onde passávamos as tardes a “lançar” piões, que ele nos deixava “experimentar”, ainda que não tivéssemos dinheiro para consumar a compra. É que não tínhamos mesmo cheta. Namorávamos os piões, os amendoins e as castanhas de caju, mas era tudo platónico.
Havia, também, a praia, enorme, de boa areia fina, e um Índico que nunca mais acabava. Falar do mar é um risco, porque acabamos a fazer retórica barata e o mar não o merece. O gozão do Flaubert, caçoando com as banalidades sumptuosas que os poetas para aí virados debitam de vez em quando, aludindo ao mar, dizia do líquido elemento, no seu Dictionnaire des Idées Reçues: “Donne de grandes pensées”. Grandes pensamentos, acho que o Índico não mos deu, por então, mas deu‑me grandes visões e estranhas ambições. Um dia, cavalgaria o oceano e iria por ali fora ver outras terras e outras gentes. Estava‑me prometida uma grande viagem.
Nestes anos de infância e, depois, de alguma adolescência, eu e os meus irmãos tínhamos, aparentemente, pouco a que nos agarrar, visto que não havia dinheiro e a minha mãe se via obrigada a fazer malabarismos com o pouco que havia. Mas nunca nos faltou boa comida nem atenção à saúde (na Cruz do Oriente, no Alto‑Mahe, e no Hospital Miguel Bombarda, porque era de borla). Não se compravam livros (só uma ou outra vez, às escondidas...), não tínhamos telefonia (nós dizíamos “rádio”), nem telefone, nem dinheiro para diversões e a roupa passava de uns para outros. Mas tínhamos espaço e todo um mundo para observar (e, às vezes, “conquistar”) e com que aprender. O Largo João Albasini era um mundo prodigioso e a vizinhança de outro que não ficava muito longe dali: o mercado indígena, o Xipamanini. Muitos anos mais tarde, já depois de licenciado em engenharia, casado e com filhos, levei ao Xipamanini os célebres Jograis de S. Paulo e, mostrando‑lhes aquele mundo, perguntei candidamente ao Ruy Afonso, o criador do grupo: “Ruy Afonso, o Xipamanini não faz lembrar o Brasil?” Ao que o jogral respondeu:“Não faz lembrar... O Xipamanini é o Brasil!”
Quando, aos domingos, íamos ao Xipamanini, sentia que entrava num mundo de magia: a batata‑doce, o piripiri, a tcintchiva, os gigantescos bolos mata‑fome faziam‑me salivar. As capulanas de cores muito acesas, os instrumentos musicais de sonoridades estridentes e reboladas, tudo ali nos dizia África e não Europa (e, contudo, o que nós sonhávamos com a Europa!)
O clima de Lourenço Marques era (e é...) um clima subtropical: quente ou muito quente, durante nove meses, e temperado, nos restantes três. A humidade relativa, no verão, atinge os 98%. A estação das chuvas é o verão, sendo o “inverno” um período delicioso: sol e temperaturas amenas. O governo em Lisboa, a bem da unidade do Império, decretara que o ano lectivo nas colónias deveria sintonizar com o da metrópole: abertura das aulas em Setembro, fecho em Junho‑Julho, o que levava os alunos a terem aulas no pior período do ano (calor, humidade e chuva) e férias no mais ameno. Sem qualquer justificação: de facto, se o ano lectivo decorresse entre Março e Novembro, poupavam‑se as crianças e os adolescentes à tortura de terem aulas em clima tão agressivo. Havia, é claro, os alunos do 7.º ano que, terminando o curso liceal em Novembro, só no ano seguinte, em Outubro, poderiam ingressar na universidade, em Portugal (visto que, em Moçambique, não existiam, nessa altura, estudos superiores). Mas os alunos que, por ano, iam estudar para Portugal eram tão poucos que não se justificava sacrificar tantas centenas por causa de um punhado: até porque o ano de atraso na carreira dos finalistas poderia ser aproveitado no reforço da aprendizagem e numa melhor preparação para a entrada na universidade. Porém, como é, de resto, frequente – e não só em ditadura! – a ideologia passa à frente dos interesses da saúde, do conforto e da razão.
Seja como for, durante todo o período da minha infância e adolescência, nunca dei por que o clima me incomodasse. Nunca tinha conhecido outro, portanto... Mesmo quando, após uma correria ou uma zaragata, em pleno verão, ficava a pingar suor, com a camisa encharcada e  as faces a arder, não me parecia que houvesse ali qualquer particular desconforto. Era assim o mundo ou, pelo menos, aquele que eu conhecia. Pegar no cão e “fazer” a pé a compridíssima 24 de Julho, até à praia e volta, ao meio dia, com o sol a pino e a castigar com força – era canja!
         (Faço aqui uma interrupção porque me assaltam escrúpulos.Lanço, neste papel, memórias que me parecem importantes – a mim. Escrever memórias é tentar imprimir a marca de eternidade a momentos, para nós inesquecíveis e inesquecidos, intensos, mágicos, às vezes, quase insuportavelmente vivos... mas que serão, para outros, provavelmente despidos de interesse. Captar a atenção destes, a sua cumplicidade, atrai‑los a esta narrativa de minúcias e convence‑los de que estes momentos foram realmente algo de especial – eis a tarefa gigantesca do memorialista. Tarefa impensável, se calhar impossível, mas que, de quando em quando – uma vez num milhão – resulta... A loucura está em convencermo‑nos de que a nossa vez é essa “uma num milhão”. É que é mesmo muito difícil dar, com palavras, a intensidade das emoções que nos assaltaram numa idade em que elas nos marcam como nunca mais voltará a acontecer. Diderot dizia que, para falar de Mozart, seria preciso mergulhar a caneta no arco‑iris. Eu não sei onde seria preciso mergulhar a caneta com que agora tento ressuscitar todos os grandes momentos iniciáticos da minha infância e adolescência. Mas tento, de qualquer modo, fazer o melhor que posso: até porque me parece que não há arco‑iris que me resolva a dificuldade...)
Eugénio Lisboa, in Acta Est Fabula, Memórias – I  - Lourenço Marques (1930- 1947), Opera Omnia Editora, Novembro de 2012 , pp.30-33

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