sábado, 25 de maio de 2024

No 94º Aniversário de Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa (25.05.1930 - 09.04.2024),
com um dos gatos que teve ao longo da vida

Sobre a minha pouca importância
 
O que é ser e o que é não ser?
Haverá, então, alguma diferença?
Meu ser fez a galáxia estremecer?
Pra luzir, ela pede-me licença?
 
Que peso tem, na galáxia, meu ser?
Que peso tem minha insignificância?
Fez alguma diferença o meu nascer?
Trouxe significado e importância
 
eu ter nascido e ter tido infância?
O mundo, sem mim, seria pior?
Trouxe comigo alguma concordância?
 
Ou tornou-se o mundo melhor?
Eu, quanto mais penso, menos existo
e, não existindo, fico-me nisto.
                     05.07.2023
Eugénio Lisboa, (poema inédito)

Neste soneto inédito , o poeta questiona-se sobre a  sua importância . Se a sua existência terá tido alguma significância. Era assim Eugénio Lisboa. Um escritor extraordinário que tornava maior qualquer forma literária onde espraiasse o seu talento. Poeta , cronista, memorialista ,  crítico literário , ensaísta, jornalista, Eugénio Lisboa escreveu páginas admiráveis que marcaram a sua passagem e engrandeceram a Literatura. 
Sim, Eugénio Lisboa marcou a diferença. Trouxe às Letras e à Cultura a argúcia, o saber inteligente de um homem erudito, independente e que teimava sempre pensar pela sua própria cabeça , apesar da  unanimidade podre que , por vezes,  grassava no meio cultural português. Nunca pretendeu ser a voz dissonante , mas  ser claro , profundo   em todas as  muitas  iluminadas asserções que foi produzindo. Com ele, o mundo ganhou significância  ao tornar-se fonte de prazer , de  conhecimento, de aprendizagem. 
Neste 25 de Maio  de 2024, Eugénio Lisboa faria 94 anos. Deixou-nos a 9 de Abril. É o primeiro aniversário em que não o podemos saudar em pessoa. Fica-nos a grande presença das suas palavras, nesta  sentida ausência.  
Homenagear um escritor é recordar a sua obra. Fomos a um dos diários de Eugénio Lisboa e seleccionámos algumas das entradas sobre uma viagem a Moçambique. Lourenço Marques,  a cidade natal que  se tornou Maputo, é revisitada e  a memória de um tempo vivido chega aposto e  em confronto com a  nova realidade. A África, onde nasci, sobrava./ Era África por todos os lados,/olhava-se e nunca mais acabava,/nasciam pra sempre laços sagrados . 
Nesta viagem,  Eugénio Lisboa é homenageado pela Escola Portuguesa de Moçambique.
"Maputo, 08.05.2007 (Terça feira) – Cheguei aqui no domingo de manhã, após oito anos de ausência. Vim sem apetite e sem grande tumulto interior. Uma viagem infernal, de avião, depois de uma partida surrealista, na Portela: quarenta minutos de pé no autocarro que nos levaria ao avião. Quarenta minutos à espera de Godot. E, como de costume, sem a cortesia de uma explicação e de um humilde pedido de desculpas.
À chegada, à minha espera, a directora da Escola Portuguesa de Moçambique, Albina dos Santos Silva. Mulher das Arábias: autêntica construtora de impérios. Levou-me ao hotel e, depois de um banho, passeio pela marginal, Costa do Sol e a Ilha dos Pescadores. Estava tudo ainda na minha memória, isto é, estava e não estava: o velho Pavilhão da Polana desapareceu, embora o Clube Naval ainda lá esteja, referência imortal. De resto, centenas de casas que já são dos últimos anos.
Indo pela estrada do Palmar (não sei se ainda se chama assim), sinto pungir-se-me o coração: como eu já fui feliz, aqui, num tempo em que o presente era cheio e havia ainda tanto futuro à minha espera (à nossa espera). Um tempo em que toda a gente estava viva (a mãe, o pai, a tia Maria, os sogros, os amigos) e em que se festejava ainda o dia dos meus anos. Agora quase só há passado e mortos e o futuro é melhor não pensar nele.
No próprio domingo, depois de ter encontrado, por acaso, a Luísa Agapito no Restaurante Cristal (em frente ao que foi o meu velho liceu – que já não existe!), fui visitar, com ela, o nº 510 da outrora Av. Massano de Amorim, onde vivemos de 1964 a 1975. Desta vez, tinham arrancado os taipais em frente à casa e pude espreitar a sala de visitas, a janela do que fora o meu escritório e a do nosso quarto de dormir; o jardim por onde cirandava a generala e o Riscadinho (gatos) e onde, uma vez por outra, fazíamos um jantar ao ar livre. Parece que foi tudo há tanto tempo, noutra encarnação, impossivelmente nesta mesma casa… Há, no que sinto, um misto estranho de alegria e de angústia, de sentimento de uma enorme perda irremediável, de vontade de ir muito depressa para outro lugar, de onde possa recordar estes sítios, com as pessoas que lá tinham estado e enchido a minha vida – agora a esvaziar-se e a esmorecer. Como tudo era bom! Como tudo era cheio de sentido e de promessas! E como os deuses se divertem connosco!
 
Maputo, 09.05.2007 – Armando Guebuza congratula Sarkozy. L’on aura tout vu. Quem os vê e quem os viu, em 1975 – todos então muito puristas, muito puritanos, muito espartanos, muito fundamentalistas de um marxismo-leninismo muito quimicamente puro, isto é, muito incontaminado pelos vícios burgueses. Quem os vê e quem os viu.
Resultado da explosão do paiol: os americanos ajudam maciçamente. O mundo é feito de mudança. Grande Camões.
A Escola Portuguesa: uma obra de grandeza, ambição e teimosia. E uma infinita atenção ao pormenor. Tão pouco português, até certo ponto… 
Ainda não contactei quase ninguém. Falta de tempo, de energia, de tudo. 
O outono está bonito como estava no tempo de antigamente. Eu é que já não estou tão bonito: nem por dentro nem por fora. 
Ouvir os políticos na televisão: as mesmas fórmulas vazias, a mesma retórica arredondada, o mesmo paleio que tão bem contorna a realidade pelintra e, às vezes, trágica.
Na televisão, um pescador queixa-se: há peixe e camarão em abundância, mas não tem nem frigorífico nem barco. Vai para o mar de canoa. Perguntam-lhe quais as dificuldades que sente. Diz que não há dificuldades, só que não existe nem barco nem frigorífico. Portanto, o peixe que pesca, com dificuldade, apodrece.
Ontem à noite, jantar, a convite da Luísa Agapito. No Zambi, reaberto ao fim de dois anos de estar fechado. Só vagamente reconheço, por dentro, o Zambi dos meus tempos moçambicanos. Tudo muda tanto e tão depressa, que podemos ler, nisto, o que será o desaparecimento rápido de nós na memória dos outros. 
Encontro um simpático José Esteves, que foi aqui professor, nos tempos em que eu me “agitava” intelectualmente em Lourenço Marques. Diz que eu era um “guru”, para ele e para outros, “muito acima de tudo quanto aqui se escrevia”. Exagero, claro, mas é sempre bom saber que já fizemos bem a alguém, que estimulámos intelectualmente algum contemporâneo. O Lourenço do Rosário também me chamou “guru”, ontem, no colóquio. Não há dúvida: devo estar prestes a desaparecer. Quando os mimos chegam, o fim não anda muito longe.
À tarde, de regresso ao hotel. A manhã foi-me, em parte, consagrada. A mesa presidida, na 1ª parte, por Fernando Cristóvão, depois substituído pelo Calane da Silva (sempre amistoso, minucioso e inteligente) (...) Depois, passou-me, para eu ler, um soneto que eu em tempos escrevera para a revista O Escritor: “Paráfrase camoniana, com paisagem mas sem ninfa (A pensar em Moçambique)”. Quando cheguei ao primeiro verso do último terceto, a voz ameaçou fraquejar; quando cheguei ao segundo verso, embargou-se-me a voz por completo e não consegui continuar: “Sem ela, eternamente miserando” parou no “sem ela”. Se continuasse romperia a chorar. Em suma, dei raia. 
Li o meu texto: “50 Anos”. Creio que o li bem e, no fim, tive uma longuíssima salva de palmas (de pé e tudo). Abraços, beijinhos, accolades. A prodigiosa presidente da Escola Portuguesa, a grande Albina, chamou-me depois ao palco, deu-me o título de “aluno honoris causa”, ofereceu-me uma camisa da escola e um presente que ainda não tive a coragem de desembrulhar. E mandaram, entretanto, fazer um marcador de livros, com o poema em que eu emperrara, 3 fotografias minhas e a minha assinatura. Veio a televisão e não sei que mais. O carinho de semelhante acolhimento deixa-me sem palavras. Sempre que venho à minha terra natal é isto. Poder-se-ia perguntar: por que a deixei? 
À tarde, inauguração de um obelisco, com um poema de Miguel Torga, na Escola.  Depois, fui com o Nataniel Ngomane a casa do José Craveirinha, na Mafalala, ver o espólio do poeta, a pedido da Ana Mafalda. Tenho a impressão de que me vim despedir de Moçambique, onde descobri que estar vivo era bom e que com pouco se conseguia ser feliz. Aqui aprendi a alegria de ler e amar, aqui tive tudo quanto vale a pena ter. (Nota: comprei aqui um gala-gala, em arame, pintado de azul, que todo eu me consolei! O gala-gala levou-me aos meus tempos de infância, no Largo João Albasini e na Estrada do Zixaxa.)
 
Maputo, 11.05.2007 – Esta terra. Passo pelos sítios que conheço e penso: foi aqui – só aqui – que me senti, alguma vez, protegido. Sobretudo, na adolescência, quando, à noite, terminado o ano lectivo, vinha da matiné do Scala – a matiné das cinco da tarde – a caminho de casa, noite fechada, depois de ter visto um filme de terror com o monstro de Frankenstein, e me esperava, em casa, um jantar de apetecidos rissóis de camarão. Ali, havia eternidade à minha espera… Tudo aquilo, aquele conforto (conforto de pobre, mas conforto), aquela certeza, aquela confiança – davam-me uma grande e deliciosa segurança. Foi nessa altura – e nunca mais.
Ontem, visita ao Kruger Park. A última: não voltarei lá. Vimos tudo: girafas, elefantes, impalas, pacaças, zebras, macacos, hipopótamos, crocodilos, porcos espinhos e um grupo impressionante de três rinocerontes pretos e enormes. Cada um deles – dez toneladas de estupidez e mau feitio. Um dos “meninos” voltou-se decididamente para nós e esteve uns minutos a decidir se “carregava” ou não. Finalmente, decidiu-se a votar-nos ao desprezo.
Na fronteira de Ressano Garcia (o lado moçambicano), é o caos burocrático. Maneira eficaz de desencorajar o turista. Do lado sul-africano, as empregadas negras quase nos atiram o passaporte à cara, talvez num descomprimir de ressentimentos antigos. E as empregadas brancas fazem quase o mesmo, para mostrarem zelo e sintonia com as camaradas negras (quem as não compreende?) Eu, embirrento, compreendo tudo mas, mesmo assim, não gosto. 
Leio pouco: cansado, à noite, dá-me o sono. E temos sempre de nos levantar cedo.
Telefona-me o Armando Monteiro, meu antigo colega de gasolineiras (ele, da Shell). Reconheço-o logo pela voz. Vou vê-lo à tarde. Diz-me que o Teles, colega electrotécnico, está bom de cabeça, mas frágil, fisicamente. Que se repete muito, sinal que não mente. Lá chegaremos todos, como diria o Álvaro de Campos. E, no fim e ao cabo, os escritores e os artistas, em geral, também passam a vida a repetir-se.
O nosso grupo é extraordinariamente simpático. Nem uma ovelha ranhosa a estragar o baralho, o que é sensacional. Gente descontraída, bem humorada, boa conversadora, prestável. Que bela Arca de Noé, se disso fosse caso!
Dentro de meia hora, saímos para uma volta à cidade. Vamos ver o que nos mostram. Felizmente, já fui à nossa casa da Massano de Amorim e já espreitei o nosso último apartamento no Miradouro. E passámos ao largo do Língamo, onde eu e a MA e a Geninha vivemos, de 1959 a 1964. Uma médica simpática (e bonita), que diz ter sido nossa vizinha na Fernandes da Piedade, veio falar-me e trazer-me o desejo de ali ir espreitar um pouco do meu passado… Talvez convença o Armando Monteiro a levar-me lá. Com isso fico com as contas todas arrumadas.
A manhã toda a revisitar lugares: o mercado, a Casa Elefante (onde comprei quatro lenços para levar à MA), a Biblioteca Nacional (que guarda, no jardim, uma estátua do Salazar), a Fortaleza (onde cavalga, altivo, o Mouzinho de Albuquerque e onde jaz e apodrece o Gungunhana, se é que os restos dentro daquele caixão são realmente dele), o Jardim (Vasco da Gama) e o Teatro Gil Vicente, de que desapareceu a entrada para o Café adjacente (informar a Maria de Lourdes Cortez), a Pastelaria Hazis, em cuja esplanada se sentava todas as manhãs o Aristides Coelho, admirável cronista e implacável republicano que odiava Salazar 24 horas por dia, a Casa de Ferro, etc. Ao lado da Pastelaria Hazis, um rapaz novo vendia livros velhos. Comprei-lhe, perversamente, adivinhem o quê? Um manual de electricidade…
De manhã, fomos ainda à estação dos caminhos de ferro, na Praça MacMahon. Fui variamente fotografado, na plataforma de onde saí de Moçambique, em Março de 1976. Foi um momento dilacerante, que nunca esquecerei, com o Francisco Bomba (meu empregado na TOTAL) a chorar desabaladamente no meu ombro. Causou-me agora impressão ver aquela plataforma: os momentos intensos ali vividos, o embarque, a viagem tormentosa, com a “generala” alucinada a trepar por todo o compartimento da carruagem. O fim de uma era. E o fim de um tempo feliz, onde prevaleceram o amor, a amizade, o convívio, a cultura…"
Eugénio Lisboa, in Aperto Libro IV - 2007-2012,  pp.7-11

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