sábado, 4 de maio de 2024

No dia da cor preta

No dia da cor  preta
 
                                      
Os Mortos
Os mortos mais do que os vivos, estão vivos.
Surgem, fortes, intensos, aparecem,
depurados e cheios de motivos.
Visitam-nos e acham que merecem
Todo o vigor da nossa atenção.
A morte deu-lhes, pensam, nova vida:
vê-se neles uma concentração
de virtudes - de vida reflectida.
Os mortos ensinam-nos a viver:
dão um valor novo ao que nos rodeia,
dão ao quotidiano acontecer
um brilho vivo que nos incendeia.
Os mortos acendem, em nós, a chama
de uma nova vida. Julgo que pedem
que olhemos fundo a luz que se derrama.
Exigem. Clamam. Os mortos não cedem.
                                  Eugénio Lisboa
   
 
"O tempo adensara-se. A aproximação do fim provocava-lhe alguma soturnidade, o vislumbre de  estados de alma que nunca experimentara.  Tinha-lhes  um total desconhecimento. Nunca os  sentira. Era avesso a qualquer estado de alma. Apenas cuidava das palavras. Afiná-las  era restituir-lhes a alma.  A alma que lhes dava cor e sentido.
Conviver com a finitude nunca o atemorizara. Sabia-lhe o ventre. Quase que a sua própria gestação  fora o prelúdio  de um processo bifrontal. Nascera com a certeza de morrer, como um acto que se realiza a dois tempos .
Não sendo  uma certeza imposta é  uma verdade intestina e  intemporal.   Contudo uma verdade nem sempre assimilada. Um acto de gnose que nem todos exploram. Entre a resistência e a  resiliência , vai acumulando pó em muitas mentes que pretendem esquecer o mesmo  pó em que  se transformarão.
Ligar a cor preta ao acabado , ao terminado, ao fim passa por algumas situações de dolorosa rejeição. Ninguém quer o preto  com esse peso simbólico, com essa radicalidade semântica. Num tempo francês da  primeira metade do século XIX, o preto era o irmão do vermelho – a cor da sotaina eclesiástica  ou o fascínio  rouge da farda militar. Preto como negrume de alma, o ódio que replica da cor do sangue, a cor  do amor, da paixão  que Stendhal imortalizou. O amor e o ódio. (Rouge ou noir ,  une partie de vie ou de mort). Rouge comme le sang, noir comme l’hypocrisie. Julien, o herói de “Le rouge et le noir”, representa-o em excelência. Stendhal a fechar o cerco ao negrume da cor. O Homem gerador de  extremos , o homo sensiblis   que se atraiçoa a si mesmo.
Mas no preto insurge a silhueta da morte. Veste –se de negro para muitos. Um negrume que não se esquece. Que dilacera a alma. Quando se assiste a uma morte, além de uma dor indescritível,  guarda-se  um episódio marcante para sempre.
Tolstoi criou um denso e  agónico  Ivan Ilich , enquanto personagem de uma obra de puro requinte literário. No leito da morte , Ivan não encontra  alívio para as dores funestas que vão aumentando o seu martírio. Numa prolongada agonia, de estertor em  estertor , esvai-se num crescendo doloroso, interminável durante três longos dias. Uma orquestra de gritos, de urros lancinantes até que tudo se transforma num suspiro derradeiro, quando a morte desce para o pacificar. O suspiro da finitude,  da serenidade, da aceitação. A  consciência do nada sobre o nada. A sabedoria do último instante que só emerge  e se desenha na poeira do adeus. Morrer é longo.
O preto e a morte. Há outras mortes. Nem sempre vestem preto. Acontecem numa cor  dorida que soma todas as cores  e cor nenhuma. É a cor da inevitabilidade. A cor da impotência. Aquela que guarda dentro de si, escondida, no fundo onde o olhar se perde e os braços não alcançam. Alguém que amou. Viu-a morrer. Ali, sem o socorro que lhe exigia o coração. Morria com ela sem entender a certeza que tanto apregoava - somos finitude desde que nascemos. Soava-lhe como uma falácia , a maior naquele momento. Quando a morte entrou naquele corpo,  soltou-se um som cavo, vindo do mais fundo daquele ser amado.  Soube que acabara. Era o fim.  Já não pertencia àquele corpo. Saíra. Partira. E o corpo ali estava inerte. Sereno sem vida. Nesse momento, o coração quase explodira. Sucumbia. A angústia matava-o também. Desejara ir . Que a perda era maior do que a vida.
A morte é o fim  que nos espera e que nos surpreende. Porém, tudo dói quando ela colhe quem amamos.
Na literatura universal,  há um enorme e rico filão de grandes amores que  arrebata e rouba lágrimas, quando a força das  palavras   retrata  a morte que  une ou  separa. Desde  Sófocles  a Racine , de Luís de Camões a Shakespeare, de Stendhal a Tolstoi, de Dostoievski a Charlotte  Brontë, de Camilo Castelo Branco a  Turguenev, de Petrarca a Pablo Neruda, de Goethe a Jane Austen, de Gabriel García Márquez  a Julio Cortázar, de Eça de Queirós a Erico Verissimo. Uma fascinante galeria de grandiosidade dramática que soube  vestir  sumptuosamente as palavras  quer para a vida , quer para a morte. Os mestres da palavra, qual plêiade universal da medida exacta da  palavra.
Em O caos e a noite, o notável  escritor Henry de Montherlant produziu a obra prima à volta da morte. Uma morte patética, mas grandiosa na efabulação. Um registo soberbo de como a morte pode ser inconscientemente procurada pela loucura, pela alienação da realidade. Um exercício  inteligente  na exploração da mente humana, traduzido em palavras com uma singular e magistral  destreza. Um discurso claro,  rico e exuberante  que causa profundo prazer literário.
Por onde andaria todo esse eloquente manancial de palavras. Algumas revira por entre aquelas que fora afinando. Outras estavam adormecidas, emparedadas sem que alguém as soubesse manejar. O joio tomara conta das searas.Agora  era o tempo final . O tempo que não se anuncia, que não se poupa, que não se procura.  Mas que chega. Firme e certeiro. O tempo que dá tempo ao Homem, para descobrir  que é tudo e nada  num só corpo. Igual a todos os outros.  E, apenas, ficará  dele ,  a marca  que souber  deixar em quem   lhe sobreviver. Será essa marca  que definirá a sua passagem. E aqueles, que por ela forem tocados, lembrá-lo-ão. E, se fizer acender a chama de uma nova vida,  perdurará na lembrança dos tempos até que  a era  crepuscular se vista de preto.
A noite  chegara. Era agora o seu  não-tempo. Partiria.
 
Morreu! - disse alguém  que se debruçava sobre ele . Ele ouviu estas palavras  e deixou que  a sua alma  as repetisse  em leve variação.  «Terminou  a morte – disse . – A morte  não existe. » Fez uma inspiração, ficou a meio, inteiriçou-se  e adormeceu na morte.1
 
Em verdade, naquela noite, o Afinador de Palavras  vestira-se do mais intenso e espantoso preto."
Maria José Vieira de Sousa, in O Afinador de palavras, 2016, pp.16-18 
 
1 - Leon Tolstoi, in “ A Morte  de Ivan Ilich”, Editorial Verbo, p 73 

2 comentários:

  1. Nossa cultura religiosa ocidental nos deixou perdidos diante da morte, assim como nossa cultura filosófica materialista nos fechou a porta da imortalidade, ante a “lógica” niilista da finitude. E, contudo, a primeira sensação dos que “morrem” é a surpresa diante da vida.

    Morrer não é morrer. Morrer é mudar-se, afirmou Victor Hugo, por entender que há duas realidades de uma mesma vida. Na sua poética metafísica, Fernando Pessoa interpretou, espiritualmente, o fenômeno físico da morte ao dizer que: “Morrer é não ser visto” e Guimarães Rosa intuiu a glória da imortalidade ao expressar que “A gente não morre. Fica encantado”.

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  2. A morte é a curva da estrada,

    A morte é a curva da estrada,
    Morrer é só não ser visto.
    Se escuto, eu te oiço a passada
    Existir como eu existo.

    A terra é feita de céu.
    A mentira não tem ninho.
    Nunca ninguém se perdeu.
    Tudo é verdade e caminho.
    23-5-1932
    Poesias. Fernando Pessoa. (Nota explicativa de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1942 (8ªed. 1970).pg - 144.

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