terça-feira, 7 de maio de 2024

Eugénio Lisboa por ele próprio

TOADA ÍNDICA
(Apontamento biográfico
em versos de sete sílabas)

Em tempos de antigamente,
quando andava no liceu,
numa terra que era quente,
com um mar que era meu,
ali sendo o paraíso,
de pouco fazendo tudo,
muito não sendo preciso,
buscando prazer no estudo,
estudando-me já eu,
a descobrir os mistérios
do sexo no apogeu
e dos dramas do império,
nesses tempos, eu dizia,
em que tudo era grande
e o amor descobria
que a vida se expande,
nesses tempos de começo
de um mundo que se abria,
de viagens sem regresso,
num tempo em que já sabia
que a dor também existe
e que o triunfo se paga,
mesmo quando se não desiste,
pelo preço de uma chaga
que o tempo não amacia;
naquele tempo enriquecido
por tudo que acontecia
e era por mim sentido
ser tesouro amealhado,
- eu sonhava, com fervor,
num futuro apontado
à grandeza e ao amor!
Que sonhar, nessa idade,
mesmo sendo o sonho alto,
não é grande enfermidade
nem dá grande sobressalto!
Foi assim que certo dia,
- havia sol e promessa
e meu coração ardia –
parti, com dor e com pressa,
deixando amores e festas,
a caminho do futuro
que eu pensava sem arestas,
radioso e bem seguro!
Quando se deixa um tesouro,
em busca de outro maior,
trocamos talvez um ouro
por outro muito pior.
E foi assim que parti,
nesse dia de Setembro,
saindo de onde nasci
-ai como disso me lembro!
Foi o futuro o que foi,
cheio do bom e do mau,
pleno de tudo o que dói,
logo que saí da nau.
Nas águas de um novo mar,
comecei nova aventura,
aprendi outro voar
e ganhei grande fartura!
Mas foi no outro oceano,
lá longe, no além mar,
que eu abri todo o pano
e me pus a navegar!
15.05.2020

Eugénio Lisboa,
Num regresso ao meu passado Índico, a um tempo que nunca mais esquecerei!
Eugénio Lisboa , in Poemas em Tempo de Peste, Editora Guerra & Paz, Setembro de 2020, pp.67-69


A surpresa do natural, a autobiografia de Eugénio Lisboa
"Falar de mim, na primeira pessoa, não é, talvez, o protocolo que melhor me convém. O homem é menos ele próprio, quando fala em seu próprio nome, sugeria o pérfido e certeiro Oscar Wilde. Nos desvãos da pouca poesia que escrevi e no romanesco clandestino em que me escondo como quem se revela, quando escrevo ensaios, está talvez algo de mim que é mais fundo e genuíno, nesse «fingimento», do que em textos que dão abertamente voz ao nu e haïssable moi.
Por outro lado, dizer muito em 8500 caracteres…
Tentarei.

Descobri o incrível e improvável milagre de existir, na antiga Lourenço Marques, uma das mais bonitas cidadezinhas do continente africano.
Não nasci num berço de ouro e quase dou graças aos deuses por esse dom que me ofertaram: o da pobreza. Meu pai, natural de Alcobaça, era um homem altamente inteligente e um estudioso cheio de iniciativa, mas, tendo apenas a instrução primária,começou a vida como pequeno funcionário dos CTT de Moçambique. Por mérito, chegaria a director; porém, em 1930, quando nasci, o funcionário era ainda pequeno e o salário ainda mais pequeno, o que me fez vir ao mundo com estatuto de quase marginal. Vi a luz num bairro limítrofe e paupérrimo o Quebra Bilhas, numa casa de madeira e zinco, que o sol sub-tropical aquecia impiedosamente. Este estatuto de outsider, em outros pelouros, iria permanecer comigo pela vida fora.
Ser pobre tem vantagens eminentes: ganha-se um gosto prodigioso pelas coisas que se quer ter.
Leva-se mais tempo a consegui-las e, enquanto se não conseguem, passa-se o tempo a namorá-las.
Quantas horas não passei a cocar, com desejo sofreado, as montras da Minerva Central, de onde me desafiavam O Retrato de Dorian Gray, O Moinho à Beira do Rio ou os Filhos e Amantes. Os meus colegas mais ricos tinham belos estojos de desenho, imponentes godés, pastilhas para aguarelas e abundantes bisnagas para guaches, dicionários novos e reluzentes, livros de Salgari e Júlio Verne.
Iam ao Scala e ao Gil Vicente ver tudo quanto havia de bom e de mau no cinema. Eu ficava-me pelas «borlas» do Scala e invejava, de longe, os filmes da Metro e da 20th Century Fox, que passavam só no Gil Vicente. Mas, a mim, sabia-me melhor e mais fundo o pouco que ia conseguindo e com que sonhara muito, antes de conseguir.
Na Escola Primária, tive óptimas professoras: a D Ernestina Machado, na Infantil e na 1ª classe grande pedagoga que nos pôs a ler e a contar com uma energia fácil e bondosa e a D. Laurinda Magalhães que, com a sua voz um pouco rouca e calorosa, nos metia no coração e nos fazia gostar da gramática e de outras coisas. Era uma espécie de mãe substituta, bondosa sem pieguice e bastante competente. E não gostava de nos bater. A escola era a Paiva Manso e ficava no extremo pobre da Avenida 24 de Julho, ao lado do Esquadrão de Dragões, que nos fascinava por causa dos cavalos.
Ali não havia meninos ricos e o director, de cabelos já brancos, era o sr. Garradas, espécie de avozinho passa-culpas, a quem as mães pediam, em vão, que nos «chegasse». A campainha estridente e amiga anunciava os intervalos libertadores: a meio da manhã, eu comia um pãozinho de forma circular e massa fofa, com manteiga, e bebia uma garrafa de leite com Toddy. A minha mãe lá se arranjava para esticar o parco dinheiro e nos permitir esses luxos. Da escola à casa que ficava no Alto Mahé, isto é, na Lourenço «profunda» ia a pé, por caminhos quase só de areia.
A escola e, depois, ainda mais, o liceu, eram lugares sagrados e os professores uns senhores veneráveis que olhávamos com um misto de respeito e inveja. Deviam saber muito e, desse muito, ensinavam-nos apenas umas pepitas avaras, para não nos magoarem demasiado.
O Liceu, que se chamara 5 de Outubro e passou a chamar-se Salazar no ano em que nele entrei 1940, ficava no extremo afluente da 24 de Julho, entre esta e o Cabo Submarino.
Foi aí que entrei num Novo Mundo. Muitos dos meus colegas eram obviamente bem aviados de finanças: tinham bonitos relógios de pulso, vestiam com algum requinte, sobraçavam pastas com as quais eu nem sonhava e os pais vinham buscá-los de carro, no fim das aulas.
E, à tarde, tinham as chamadas «aulas de estudo», pagas, durante as quais lhes davam «explicações» e os ajudavam a fazer os deveres. E comiam amendoim torrado, que dava, ao ambiente das aulas, um cheirinho forte que ainda hoje me «atinge» a memória bem mais fundo do que todas as pífias madeleines de quantos Prousts haja por aí.
Os meus colegas afluentes não eram diferentes só pelo que tinham e eu não tinha: sentiam-se sobretudo à vontade com um certo vocabulário sofisticado que, para mim, vindo dos subúrbios, era chinês. Lembro-me, em particular, da estranha palavra «ironia», para a qual eles se voltavam com desenvoltura e eu à rasca sem saber o que aquilo queria dizer. Talvez, por isso, mais tarde, para me desforrar e ir mais longe do que «eles», pus-me a aprofundar a «ironia transcendente» do Antero e a «ironia trágica» do Jaime Franco, isto é, do Régio (rindo-me, à socapa, da pífia ironia «deles»). Dizia implicitamente, com os meus botões: «Só queria que eles me vissem agora, a saber mais de ironia do que eles todos juntos!» Recalques…
Mas, em suma, sabia que andava a travar uma luta desigual: eles, equipados até aos dentes, eu, com armas desadequadas que escondia, envergonhado.
Por isso, melhor me soube a vitória de que nunca me jactei quando me comecei a destacar como aluno. Tive, no liceu, professores inesquecíveis: o Reis Costa, imprevisível, perigoso cultíssimo e sedutor (de Francês), o Jaime Rebelo (também de Francês, exímio pedagogo e ex-futebolista, além de oposicionista convicto), o Vieira Júnior (excepcional professor de Matemática que nos transformou a todos em «viciados» em problemas de Álgebra e Geometria), o Duarte Marques, o «caçador» (declamatório, enfático, falando com itálicos sublinhadíssimos mas entusiasta genuíno de literatura, com um poder de quase exaltante -só lhe não perdoo ter preferido Balzac a Stendhal…), a Maria Luísa Soares, a «mamba» (mulher sábia e brilhante, professora de «tudo» e, no meu caso, de Filosofia, de que me tornei, para sempre, freguês), o Cardigos dos Reis (fascinante, sardónico, poseur, pronto no bote, ecléctico, geógrafo, jurista, historiador, encantador de serpentes, provocador, no melhor sentido, fazia-nos pensar: «Quero ser como ele…»), tantos outros! Foram anos de aprendizagem e descoberta. Mesmo sem grandes meios, acabei por ler muito: meu pai, sabendo-me esfomeado, baratinava a minha mãe e comprava-me livros à sorrelfa. Por outro lado, os colegas de meu pai, que iam de licença graciosa à metrópole, por vários meses, deixavam as suas estantes com livros em nossa casa e eu ia-me refastelando. Melhor ainda: em viagem de Lisboa para Lourenço Marques, muitos dos livros encomendados pelas livrarias «apanhavam» água nos porões e chegavam imprestáveis para venda e iam para o refugo.
Mas ficavam legíveis. Foi assim que me chegou um dia às mãos, todo estragado mas convidativo, cheio de luzes e buzinas, o romance de Stendhal, Le Rouge et le Noir, numa primorosa tradução de José Marinho. Apaixonei-me logo pela Senhora de Rênal para o resto da minha vida e tomei como modelo sedutor a vivacidade, a clareza, a frontalidade e a acutilância da prosa de Stendhal.
Li Voltaire, Charlotte Brontë, Thomas Mann, Lawrence, Plutarco, Platão, Panait Istrati, Balzac Edgar Poe, Hemingway, Conrad, Saroyan, Martin du Gard e tutti quanti e, em 1947, despedindo-me de Lourenço Marques e do Nero, embarquei para Lisboa, que me desapontou, mas a que me fui habituando (o principal defeito de Lisboa era não ser Lourenço Marques).
Fiz o curso de Engenharia, que começou por ser civil mas passou a electrotécnica, no 4º ano fui a Paris, em Volkswagen de amigos, em 1953 (retive, dessa viagem, dois highlights, o Museu Rodin e o quadro de Leonardo, «A Virgem, Santa Ana e o Menino» e, é claro, os grandes boulevards), retomei o serviço militar que tinha começado em Moçambique, num período que ali passei, em 1952, fui colocado, como oficial miliciano, em Portalegre (por mau comportamento em Mafra) e, aproveitando para meu bem o mal que os deuses fazem, conheci ali e frequentei-os assiduamente o Régio, o dr. Feliciano Falcão e o inesquecível capitão Carlos Saraiva (hoje, coronel Saraiva, reformado, mas, para mim, o incomparável, discreto, bondoso, compreensivo, subtil e empenhado capitão Saraiva que me salvou de tantas tropelias e «protegeu», com riscos óbvios, as minhas idas a Lisboa para concluir o último ano da licenciatura).
Em 1955 regressei a Moçambique, onde tinha nascido e onde fiquei até 1976. Foi um período cheio, a que se sucederam a Suécia, Londres e, de novo, Portugal. Mas isso é outra História que aqui não cabe… Em tudo o que tenho dito e escrito, procurei usar sempre daquela «surpresa do natural » de que falava Pascal. Tem custos mas vale a pena."
Eugénio Lisboa, autobiografia publicada no JL 979, em 2008 .

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