quinta-feira, 9 de maio de 2024

A Carta para Eugénio Lisboa

Eugénio Lisboa
 (Lourenço Marques. 30.05.1930 - Lisboa, 09.04.2024)

Passou um mês que nos deixou. Será impossível deixar de evocar Eugénio Lisboa. Tem uma  obra volumosa, plural e de soberbo fascínio. Lê-lo é e será sempre um imperioso anseio de prazer, de aprendizagem  de descoberta. A Cultura  perdeu o seu maior intelectual dos tempos hodiernos. A Literatura,  apesar de enriquecida com o seu fértil legado , não poderá ser acrescentada e iluminada  com novas e fecundas contribuições deste grande escritor.
Como homem, Eugénio Lisboa  foi um ser humano singular que tocava pela afabilidade, pelo desprendimento da coisa efémera , pela  atenção ao outro.
Tocou- nos profundamente. 
É para Eugénio Lisboa que se fixa o nosso olhar  e se humedece o nosso coração de saudade.
Assim, Livres Pensantes publica, hoje, uma carta inédita que José Régio poderia ter escrito a Eugénio Lisboa , na época do lançamento do V volume das suas Memórias, "Acta Est Fabula, Memórias V - Regresso a Portugal (1995-2015)".



Vila do Universo
17/11/2015

                                                               Meu caro Eugénio Lisboa
 
Não encarrego o nosso Orlando Taipa de escrever estas linhas porque, no lugar onde me encontro, as máquinas escrevem o que lhes  ditamos. A minha incapacidade foi resolvida sem que me tivesse sido imposta a  recuperação total  daquelas complicações penosas que me debilitaram rudemente. Longe vai o agoiro do Lumiar. Aquele casarão ainda me assombra. Lisboa nunca  me seduziu. Fugi-lhe  sempre, mas apanhou-me pela  doença.
Não imagina o que tenho pensado em si e há que tempos estou para lhe escrever e corrigir a minha incorrecção na questão de responder aos amigos. Abuso , pois, da sua benevolência e já nem lhe peço perdão da longa demora desta carta. Mas de hoje em diante, o caso muda. Agora estou livre. Se eu , agora, não lhe responder, ao menos com relativa prontidão, zangue-se comigo. Mas, meu amigo, deixemos esse capítulo.
Falemos de si. Venho, sobretudo, para lhe dizer que muito me regozijo por ter escutado a minha “ admoestação” e se ter resolvido a dar-nos livros. Tinha esse dever perante si próprio, perante os Seus, perante os amigos…e perante a cultura nacional. Repeti-lhe estas palavras inúmeras vezes.  Se  fosse  hoje, eu diria perante a cultura universal já que se tornou um cidadão  do mundo.
A 19 de Novembro de 2015, será o lançamento do V volume  das suas Memórias que optou por estender,  apenas,  até 20 de Abril deste ano de 2015.
“Acta Est Fabula” relata uma longa e brilhante trajectória de um jovem talentoso que conheci como oficial miliciano, em Portalegre, há sessenta e um anos. Fazer parte desse relato é um prazer que muito  me orgulha porque a minha  crença em si era real. O facto de me ter descoberto pela prosa e não pela poesia, revelava já muito da sua argúcia, da sua verdadeira índole. Possuía a necessária sensibilidade e a subtil agudeza de espírito  para perscrutar e apreender a essência de uma obra  , o valor autêntico de um  escritor e o prazer indizível da escrita.
E o caminho foi feito. Sinto-me no dever de lhe participar que não  deixei de estar atento ao seu percurso, desde aquele dia fatídico de 1969. A construção da sua carreira literária foi firme , sábia , rica e profunda.
A profusão e variedade de juízos e perspectivas que sugeriu sobre a minha obra descem a particularidades de análise  com tal arte e minúcia que todas as sombras que  teimavam nela resistir se iluminaram com uma  intensa e singular claridade. Transformou a minha obra num luminoso monumento literário que, por vezes, se me insinua mais seu do que meu. O leitor, o estudioso,  neste caso, ultrapassou o escritor. E ao ultrapassá-lo, excedeu-o  em talento, génio e significado.
Em suma: só tenho vontade de o aplaudir. E para isso aqui me tem.
Se tivesse que destacar alguns dos momentos que mais apreciei durante todos estes anos, escolheria,  além daquele que vai celebrar no dia do lançamento do quinto tomo das suas Memórias, o tempo que passou em Londres e os anos de intensa produção e actividade literária em Portugal.  Sei que tem um apreço especial pelo tempo africano.
Desse tempo, pudemos partilhar algumas confidências e impressões. Recordo ainda o seu desafio para ir a Lourenço Marques. Como lamento não o ter aceitado, pois sonhava às vezes com essa ida. Mas estava a envelhecer, meu amigo, e até para  as viagens mais curtas  que projectava me ia faltando energia , ou entusiasmo.
Por causa desse amor por África, saltou, em Acta Est Fabula, o relato da época em que esteve em Lisboa a estudar e veio fazer o serviço militar a Portalegre, circunstância que possibilitou   o nosso encontro. Uma época que nos marcou para sempre. Não só a mim. Os nossos amigos comuns de Portalegre, muito falaram de si, lamentando não o ter mais  entre nós.
Aguardarei, com curiosidade impaciente, esse tomo que sei já ter iniciado a escrita. A verdade é que a sua obra me agradou muito, e tenho verdadeiro prazer em lho dizer.
Estou enjoado ( é o termo)  da imensa maioria de livros que por aí se escreve, nacionais ou estrangeiros. Tudo isso é , por vezes, muito hábil e bem calculado para bom resultado, junto não só do público, mas até de alguns críticos. Mas nenhuma ( ou quase nenhuma) sinceridade humana, nenhuma intenção verdadeiramente séria, nenhuma fantasia original ou nenhuma poesia autêntica nessas obras cujo principal fim é o comércio. Falta-lhes autenticidade que é o essencial. Ora a sincera alegria que me deu a sua obra – foi precisamente de ter encontrado uma que é excepção.
Com todas as minhas impertinências e rudezas ( de que aliás não desisto porque sou brutalmente  sincero, precisamente com os amigos que mais estimo!) não vá pensar que eu não estou convicto de que Deus lhe deu dons que não pode guardar já, e com que tem de contar a nossa cultura. A verdade foi sempre uma das minhas fundas tentações ( e das mais perigosas ) a despeito de todos os embustes acumulados na minha vida.
Sei da sua intenção antiga de escrever um romance e uma peça de teatro (Henrique de Sagres) da qual já tem vários diálogos.  Uma peça precisa de qualquer história-pretexto como base, como sustentação. Tendo já essa história-pretexto deveria ter começado  a escrevê-la, ou ter dado prioridade à sua escrita.  Sei que não se deve precisar datas ou impelir alguém a escrever. Mas , a verdade  é que uma obra pode viver obscuramente  dentro de nós para sempre  - sem nunca chegar a ser obra: Obra.
Veja, no meu caso, a “ Confissão dum Homem Religioso” e o sexto volume da “ Velha Casa”. E logo a “ Confissão” que saía com uma facilidade espantosa porque andava a ser feita dentro de mim há tantos anos. Não a acabei. E a “ Velha Casa”, uma grande casa, tão minha, ficou sem  outro volume, sem continuidade. Incompleta.
Senti-me infindamente lisonjeado e vaidoso quando sobre mim escreveu, no tal fatídico dia de 1969, em que deixei de estar visível.  Recordo-o com emoção:
“ José Régio morreu há pouco.(…) Era um espírito autónomo e corajoso. (…) Régio  lega-nos uma obra incompleta por ter sido ambiciosa. A Velha Casa era por si só uma empresa de vastas proporções. Mas foi metendo pelo meio outros livros  que também trazia  no ventre.  Por isso,  não pôde acabar coisas que começou, ou não chegou  a empreender  outras com que sonhou. « O que não possas acabar, isso mesmo te engrandece.», dizia Goethe sob o olhar aprovativo de Thomas Mann. José Régio, na fase final, pensava ainda poder escrever uma peça por ano…”
Não se permita o mesmo. Escreva o que germina em si. O tal romance está todo construído na sua forma e conteúdo dentro de si. Vive consigo em desassossego. Solte-o e será um magnum opus. Eu e o mundo ficar-lhe-emos gratos e felizes.
E não se esqueça  das palavras  que colocou sobre mim , num dos seus livros ,de tão magnânima produção que  me faz credor de uma dívida muito superior àquela que o nosso país tem vindo a contrair. No livro, José Régio,- A Obra e o Homem,  o meu perspicaz amigo afirma  : “ A  obra  de Régio não nos deixa uma esperança. Não é uma obra optimista. Nada resolve. Mas enche-nos de uma estranha felicidade e mesmo alegria, pelo simples facto de ser uma grande obra. (…) Nascida de um ser frágil, o artista , a obra acaba por sustentá-lo em vez de sustentar-se dele. Acaba também  por fazer-nos um pouco a todos nós.
(…) O desprezo de José Régio por modas e cartilhas era genuíno e, direi mesmo, quase espectacular. Nada enfurecia tanto aquele homem de uma grande serenidade  aparente como ver diante de si um papagaio debitando, numa justaposição “à la page” e sem nexo, todos os “mots du jour” aceites sem crítica nem esforço interpretativo. (…) Régio se muito se entregava, muito se fechava também «com os seus mistérios».(…)
José Régio morreu. Morreu o nosso maior escritor dos últimos trinta anos. Enquanto vivo soube resistir a todas as tentativas de sedução e absorção. Tentaram-no com tudo: com palavras de ameaça e de promessa, com prémios , com punições, com silêncio. A tudo opôs a grandeza de um não , conforme prometera no  Cântico Negro.”
Cesso de o citar porque não é de mim que venho falar. Faço-o para ilustrar o que sempre pensei e pelo orgulho que tenho na sua obra. Ela reflecte o homem inteiro. E ao reflectir, pretendo que esse homem não esmoreça. Que complete a sua obra. Sei que,  sobre ele,  já muito foi escrito. Não esqueço a homenagem que lhe prestaram, em Aveiro. Tenho o livro que daí resultou, ( Eugénio Lisboa, vário, intérprido e fecundo). Como lamento não ter podido comparecer e/ou através de  um texto ( acredite que seria produzido com a mais inabalável isenção) integrar a lista de tantos admiradores prestigiados. Conheço e distingo, com muita nitidez, os galardões que mereceu a sua produção literária, embora recatado e  probo como o meu amigo é, sempre se tenha  furtado a essa exposição , a essa premiação. Outros virão   e muitos dirão ainda mais da sua obra, com maior intensidade verídica e em crescente e  merecido cariz laudatório . Ela é superiormente uma grande obra - uma obra viva. Uma obra diferente . Original.
Em arte , é vivo tudo o que é original . É original tudo o que provém da parte mais virgem, mais verdadeira e mais intima duma personalidade artística. A primeira condição duma obra viva é pois ter uma personalidade e obedecer-lhe. O meu amigo  tem-na.
Literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço.
Tão ligados estamos , de há tantos anos, que umas palavras minhas sobre a sua obra poderiam ser  precipitadamente julgadas partidárias. Quero dizer viciadas , do ponto de vista crítico, por uma velha amizade. Mas não é justo, nem leal fazer tal juízo.
A arte já  definiu e vestiu a sua obra. Além do mais e recordando  a famosa frase do  meu dilecto Fernando Pessoa - O que em mim sente está pensando-  contraponho, com muita  veemência, sublinhando para  si: O que em mim pensa está sentindo.
A verdade não se esconde. Rebelde , ela emerge sempre. Fez Arte : genuína, autêntica e intemporal ao edificar  um  ímpar e grandioso  monumento literário.
Ah, se toda a gente soubesse como eu gosto  de ver toda a gente a dar tudo quanto pode! Cá por mim , sempre foi o meu sonho ser ao mesmo tempo um criador e um operário.
O seu sonho foi o mesmo.  Já o cumpriu, embora não nos resignemos que  nos diga “ Acta Est Fabula”.  Cumpre-lhe ainda muito mais para nosso gáudio e consolação.
Reserve para mim a apresentação da sua próxima obra. Um outro magnum opus.  Estive atento a todos os oradores a quem entregou essa distinção. A 19 de Novembro será   o seu estimado e brilhante amigo Marcelo Duarte Mathias. Escutá-lo-ei . 
Prometo que saberei honrar a sua nova obra , fazendo da cerimónia de apresentação  o mais sublime momento . Aquele que aguarda . Não pelas minhas palavras, mas pela riqueza da sua nova obra. Aquele momento  que lhe permite ainda surpreender-se porque o assombro sempre o manteve e manterá  de pé.
Tem o meu perene apreço e a minha total  estima. Dê-me notícias suas.
Um abraço do velho amigo.
José Régio

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