sexta-feira, 5 de maio de 2023

O pior são os que atrapalham

Homem Velho , Van Gogh
O VELHO
por Mario Quintana
“O que eu mais temo não é o Sono Eterno, mas a possibilidade de uma insónia eterna, o que seria uma verdadeira estopada, um suplício sem fim. Porém, em uma das minhas costumeiras noites de sonho acordado, o meu amigo morto me pediu um cigarro e disse-me:
- Não é como tu pensas, todos nós trabalhamos numa série infinita de escritórios (cada geração de mortos num deles), onde a gente se entrega a um trabalho de estatística: tem-se de anotar a chegada de cada um e comunicar-lhe o respectivo número, pois isso é de mera convenção terrena. O pior são os que atrapalham a escrita, morrendo antes do tempo, ou porque se mataram ou por culpa dos médicos, e estes ainda são culpados quando fazem os doentes morrer depois da hora, numa espécie de sobrevida artificial, já que os médicos (diga-se em sua honra) julgam criminosa a prática da eutanásia... Uma pena!
- E fora do expediente, o que vocês fazem?
- Bem, a hora do almoço não deixa de ser divertida por causa dos Santos: põem-se a discutir acaloradamente qual deles fez na Terra o maior número de milagres e outras futilidades.
- E nos serões, eles jogam prenda?
- Mais respeito, seu vivo! Bem! Nos serões eles fazem concursos para ver quem é que diz de cor mais versículos da Bíblia. Uma bobagem! Todo mundo sabe que o único que sabe a Bíblia de cor, tintim por tintim, é o Diabo.
- E Deus? Me conta como é Ele...
- Ah, o Velho? Desconfio que certa vez O vi...
- Só certa vez? Mas Ele não está sempre no Céu?
- Bem, tu deves compreender que Ele se preocupa principalmente com os vivos. O Velho está quase sempre é na Terra, lidando com os assuntos humanos. Ele e o Diabo. Sim, os dois vivem a maior parte do tempo na Terra.
- Ora, eu pensava que vocês soubessem mais do que nós... Mas conta-me lá como foi que desconfiaste de ter visto o Velho?
- Foi há tempos, eu era recém-chegado, quando uma tarde apareceu de surpresa no escritório um velhinho muito simpático. Com as mãos às costas, curvava-se sobre cada mesa, inspecionando o nosso trabalho, por sinal me atrapalhei, errei uma palavra. Ele bateu-me confortadoramente no ombro, como quem diz: “Não foi nada... não foi nada...”. Ao retirar-se, já com a mão no trinco da porta, virou-se para nós e abanou: “Até outra vez, se Eu quiser!”.
Mario Quintana, in “Sapato Furado”, Editora Global, 6ª edição, SP, 2006

Madame de Sevigné

Poder de síntese
por Mario Quintana
"Um dia, Madame de Sevigné sentenciou: “O café passará, como Racine.” Ah, que poder de síntese, minha cara Madame! Como foi que a senhora conseguiu dizer duas barbaridades numa única frase?"
Poder de síntese, esse o tinha, de facto, Racine, quando, para darmos apenas um exemplo, conseguiu expressar a paixão, a crueldade, a complexidade do caráter de Nero num só verso de doze sílabas: “J’aimais jusqu’à ses pleurs, que je faisais couler!” (Eu amava até as suas lágrimas, que eu fazia correr!)
Sim, porque o verdadeiro sádico ama verdadeiramente a quem faz sofrer.
Que o digam esses pretensos casais desunidos, que jamais conseguem separar-se. Só os sádicos? — pergunto eu. Recordemos aquelas palavras de Oscar Wilde, na Balada do cárcere: “Mata-se sempre aquilo que se ama; os fortes com um punhal, os covardes com um sorriso.”
Aliás, o Nero do alexandrino raciniano já tinha decretado a morte da sua amada, cujas lágrimas agora tanto o enterneciam.
Haverá os santos do inferno? Nero deverá ter sido um deles…
Porque na verdade é idêntico o nosso pasmo, quase incrédulo, tanto ante a vida de Nero como ante a vida de São Francisco de Assis. Porque os extremos sempre se tocaram. Porque os Santos — no seu prodigioso arrebatamento — são uma espécie de celerados do Bem."
Mario Quintana, in "A Vaca e o Hipógrifo", Editora L&PM, Porto Alegre, 1979

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