terça-feira, 16 de maio de 2023

Começar

Começar
por Eugénio Lisboa

O homem nasce criança,
o seu poder é o poder do crescimento.
         Rabindranath Tagore

"Ponho-me a olhar para trás, para esses dias intensos de uma Lourenço Marques hoje desaparecida e recordo momentos singulares. Na Rua Norte, no Alto-Mahé, na fronteira entre a cidade do cimento e a cidade do caniço, lembro-me de instantes desgarrados: o dia em que, vestido com um fato de veludo (teria três, teria cinco anos?), fomos à “baixa”, ao fotógrafo, para me fazer fotografar. Na Rua Norte, vivíamos (lembro-me!) numa casita manhosa, só com rés-do-chão, mesmo ao lado da cantina do sr. Almeida. Contornando esta, para a direita, subíamos, por terrenos de areia, até à “Padaria Serrano” e à Estrada do Zixaxa, que nos levava ao Xipamanini (o mercado africano). Era nessa área que viviam brancos pouco abonados (pequenos operários, polícias, pequenos funcionários), mulatos e negros. Era um reino colorido, informal e apetecido. Aí se compravam coisas saborosas como a tchintchiva, que se comia, deixando-nos na boca um travo ácido e um pó fino e alaranjado. Era um mundo pobre, mas cheio de vida. Vejo momentos que nunca saíram da memória: a minha mãe, com a caderneta na mão, a fazer compras na cantina do sr. Almeida, de onde se exalava um cheiro a vinho barato, a cebola, a café e a sacos de batata. Na “Padaria Serrano”, sentia-se o cheiro bom do pão a sair do forno – o gozo intenso que isso me dava! –: poder comer aquele pão todo! O apetite pantagruélico que aquele cheiro abria em mim e nos meus irmãos! Outra imagem: a rua em tumulto, ao fim da tarde e, nos lábios assombrados de cada um, a exclamação: “Morreu o Torre do Vale!” Tratava-se de um lendário caçador de elefantes, que fora, por fim, empalar-se nas presas de marfim de um elefante enfurecido. Dizia-se que tinha ficado feito em papa... O Torre do Vale simbolizava, para todos, a força imbatível, a certeza, a argúcia, a imortalidade. E, afinal, jogara e perdera. A mortalidade dele tornava-se, assustadoramente, a nossa. Afinal, éramos frágeis. Afinal, estávamos só em trânsito! Se até o Torre do Vale... Julgo que foi o meu primeiro confronto com a fragilidade da vida. Ao fim da tarde, regressado dos correios, o meu pai regressava sempre. Mas, depois do fim do Torre do Vale, aquele sempre soava a duvidoso. E se ao meu pai acontecesse alguma coisa? Se fosse atropelado? Se adoecesse subitamente? Afinal estávamos num mundo tão imprevisível! A morte do Torre do Vale aproximou-me, insuportavelmente, da possibilidade da minha. Era só uma questão de tempo. Nesta altura da vida, eu não lia quase nada, porque não dispunha de livros. Em casa, não havia, nem telefonia nem telefone. As informações vinham de boca em boca, quando vinham... Quando havia visitas, eu aproximava-me: queria ouvir, queria saber coisas. Bebia as conversas, com sofreguidão, e era assim que conseguia sair um pouco do universo da Rua Norte. O mais longe que ia era a “casa das tias”, logo no começo (ou no fim) da Pinheiro Chagas, ali a dois passos. Havia lá as avós (a avó gorda, que era mesmo avó, e a avó magra, que era tia-avó). E havia as tias, irmãs do meu pai, e o terrível tio Tropa, de bigodes em riste, severo, não dando muita confiança a ninguém, muito menos a putos. Stalinista e anticlerical assumido, perceberia eu mais tarde. A casa era, para mim, enorme, quase proibitiva, porque tinha rés-do-chão e primeiro andar e, como disse, uma pesada e majestosa porta de madeira trabalhada, a barrar severamente a entrada a putos. A avó gorda andava já a perder gás e lembro-me dela como de uma figura de mater dolorosa, já muito pisada pela vida. A avó magra era magra, de altura diminuta, eléctrica, sempre mal disposta e imensamente vituperativa. Revelar-se-me-ia, mais tarde, como solteirona amarga e irresignada. Perdia a cabeça com os solteirões endurecidos (mal empregados!) e fazia comentários brejeiros e maldosos, com insinuações alusivas a órgãos subaproveitados. Nunca a vi que não fosse a resmungar, movendo-se sempre a alta velocidade, levando a sua ira a todos os recantos da enorme casa. Estava contra o mundo, contra as pessoas e, suspeito hoje, contra si própria. Viver no deserto, sem a mais pequena esperança de oásis, deve ser terrível. 
Aos três, aos quatro anos, eu registava tudo isto, mas não percebia tudo isto. Só mais tarde o retrato se foi compondo e fui ligando uma coisa a outra coisa.
O tio Tropa tinha horror aos padres (a “padralhada”), como bom republicano da velha apanha, e as suas imprecações eram quase sempre deste gosto: “Ah, Cristo negro!” Crispava-se todo, quando via “aqueles homens de saias” e mobilizava, então, um glossário sonoro (extremamente sonoro!) com tonalidades junqueirianas e altitudes wagnerianas. Era um espantoso profissional, como marceneiro, um verdadeiro artista, que poderia ter ganho fortunas, se a sua ética lho permitisse. Trabalhou toda a vida, até morrer, já com os oitenta feitos, mas era sempre chapa ganha, chapa gasta, sendo a chapa quase sempre muito pequena. Lia, como era de regra, Zola, Victor Hugo, Junqueiro e... o Deão da Cantuária (e Stefan Zweig). E venerava, sem quaisquer reservas, “o homem dos bigodes” (Staline). 
Da Rua Norte, como disse, lembro-me pouco, ou, por outra, lembro-me com grande nitidez da rua mas não de coisas que lá aconteceram. Apenas de momentos isolados, mas, esses, com grande clareza, como se fosse hoje. A seguir, mudámo-nos para ali perto, embora um pouco mais longe da “cidade dos brancos”: fomos para uma casa de alvenaria, no Largo João Albasini. Esta humilde moradia situava-se num nível muito inferior ao do Largo e ruas que nele desembocavam, sendo o acesso a ela feito por meio de uma rampa tosca. Do Largo, saía-se para a Estrada do Zixaxa (que levava ao Xipamanini), para a Latino Coelho, para o Alto-Mahé... O proprietário da modesta moradia era um velho colono, antigo combatente, em Moçambique, na primeira Guerra Mundial (a Grande Guerra): o Silva Maneta – dizia-se que perdera a mão, em combate, daí a alcunha pouco generosa. 
Tinha uns portentosos bigodes republicanos e pouco aparecia por ali. A casa tinha um só piso, mas ficava sobreelevada, acedendo-se-lhe por uma íngreme escadaria. Possuía uma grande e escura cave selvagem, onde crescia o capim e onde suspeitávamos que houvesse cobras. E um pequeno quintal, escondido das vistas, apropriado para as “brincadeiras proibidas” com as raparigas da vizinhança. Quando perguntámos a uma delas – uma mulata lindíssima – quantas vezes poderíamos “brincar” com ela, respondeu, ladinamente, que um número de vezes igual ao número de cruzes que iria traçar na parede: e desatou a encher a parede altíssima da casa e os compridíssimos muros em volta de cruzes a nunca mais acabar... Ficámos em ânsias, com mais olhos que barriga! Havia também uma vizinha loira, a Fantina, maria-rapaz fogosa e sempre prestável: “Como é que queres fazer?”, perguntava, com ar dadivoso, “Deitados ou de pé?” Estava sempre disponível, de puro desejo de agradar. Um momento muito vivo na minha memória: à noite, ao jantar, uns amigos de meus pais, regressados de férias em Portugal, a contarem-nos coisas pavorosas da guerra civil espanhola. 
Eu andaria, por esta altura, na casa dos sete anos de idade ou coisa por aí. Mas a descrição viva de casos acontecidos, de coisas impensáveis, para uma criança, perturbou-me, de modo intenso, a imaginação. Começava-se a ver que o ofício de viver não era a brincar. Pouco tempo depois, já mudados para a Estrada do Zixaxa (cada vez mais longe da “cidade dos brancos”), vir-nos-ia bater à porta um velho pianista espanhol – Pagès Rosès – fugido à guerra civil, por ser republicano. Oferecia lições de solfejo em troca de dinheiro ou de habitação. Dinheiro, meu pai não o tinha: ofereceu-lhe uma garagem, onde se arrumavam malas velhas e alguns tarecos sem valor. O pianista aceitou gulosamente e ali se acomodou. Dava lições a domicílio, escarranchado numa bicicleta a cair de podre, ganhava uns magros cobres com que confeccionava umas refeições sobre o pobre e aceitava, sem orgulho, mas com dignidade espanhola, uma ou outra oferta de refeição, que os meus pais, condoídos, lhe faziam. Com a crueldade própria dos muito novos, gozávamos o pobre pianista, que assumia, para o nosso gosto, um formato demasiado ridículo. Quando, ao fim da tarde, vinha ensinar-nos o solfejo, escondíamo-nos dentro de casa e não respondíamos ao seu bater à porta. Insistia, durante algum tempo, depois, desistia, resmungando um “Bueno...”, meio amargo, meio áspero. E ia-se embora, tristemente rejeitado. Há um momento pungente, que hoje me visita a memória e me fere como um remorso: um dia, ao partir para a sua ronda de lições, saiu da garagem, montou na velha bicicleta e, ao começar a pedalar, a corrente, já podre, partiu-se: “Oiga, está podrida!” Eu e meus irmãos desatámos a rir. O ser humano, ao contrário do que pretendia Rousseau, não é naturalmente bom! 
Algum tempo depois, soubemos que o velho Pagès fora viver em Angola: o Estado Novo permitia a refugiados como ele a estadia, não na metrópole, mas, sim, numa das colónias – e sempre por tempo limitado em cada uma delas. Quem me dera ter podido reencontrar o pianista, para lhe pedir perdão pela nossa cruel irreverência! Mesmo assim, ainda pude dar-lhe uma alegria: um dia, vendo-me a ler uma decrépita edição brasileira da História da Filosofia, de Will Durant, cobiçou-ma. Emprestei-lha e autorizei-o a sublinhá-la onde lhe apetecesse. Foi como se lhe tivesse dado o melhor presente do mundo: sempre que nos víamos, desfazia-se em agradecimentos e lia-me passagens, que, de alguma forma, o impressionavam e confortavam dos desastres da vida. Foi, para mim, a primeira demonstração, ao vivo, de como a filosofia pode servir para nos compensar dos males do mundo! Pudesse ser esta a recordação que de mim levou aquele pobre destroço de uma revolução! Já velho, como era, e sem grandes condições de sobrevivência (má alimentação, higiene precária, habitação rudimentar em climas assassinos...), não é provável que tenha vivido muito tempo. Mas tem vivido dentro de mim, com toda a força de um remorso. Fora, parece – a julgar pelos programas de concertos seus, que nos mostrava – um pianista de alguma fama internacional, aclamado na Europa e nas Américas."
Eugénio Lisboa, in " Acta est Fabula. Memórias - I - Lourenço Marques ( 1930-1947)", Editora Opera Omnia, Novembro de 2012, pp.21-26

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