sábado, 13 de maio de 2023

A minha condição de ilhéu

 
A minha condição de ilhéu
por João de Melo
1.Nesse tempo, ainda não se sabia quase nada acerca do mundo. A vida era apenas uma ideia baça, tangida à superfície áspera das coisas, e eu via-a através de uma cortina diáfana (cor de cinza, como devia ser o fundo dos oceanos), orientando-me à flor da realidade mais pelo ouvido e pelo tacto do que pelo sempre abreviado sentido do olhar na infância. Apesar de estar ali tão perto – entranhado no ouvido e quase ao alcance da mão – eu ainda não tinha ido conhecer o mar. Nem a vila do Nordeste, sede do concelho, nem a cidade de Ponta Delgada (que ficava a pouco mais de dez léguas de um caminho batido a cascalho de bagacina e a ossadas pedregosas), nem as freguesias, ao lado da minha, que se perfilavam ao cimo da falésia, à sombra das torres das suas igrejas (cujas fachadas se postavam de frente para a gloriosa cidade de Jerusalém); e tão-pouco os verdes enevoados montes das terras a que então chamavam «mato do povo» – de cima dos quais se via mar e mar de um lado e do outro da ilha. Eram rasos os ventos marítimos que vinham da América, e húmidos os campos de milho, beterraba e tabaco. Solenes e sinistras, grandes aves de arribação, de hábitos nocturnos (os «cagarros» que nidificavam nas rochas) atravessavam a escuridão do céu dos Açores chorando por cima das casas, enquanto nós, crianças cismadas, tentávamos dormir com os seus grasnidos de cólera no ouvido. Diziam-nos as avós que com essas vozes plangentes das aves se misturava o pranto dos bebés mortos antes de serem baptizados, indo a caminho do Limbo, que diziam ser a estação infinita das almas. Não devendo penar injustamente no Purgatório nem no fogo eterno do Inferno, também não podiam aspirar ao bosque deleitoso do Paraíso. E porque não? Ora, porque não eram nem cristãos perfeitos, nem pecadores confessos e contumazes, pois não lhes fora administrado o sacramento do baptismo, que os pudera ter redimido do pecado original e levado à doce e serena presença de Deus. Quanto aos aviões, esses passavam alto de mais, lá muito acima do nosso mundo de animais terráqueos e com os pés grudados ao chão. Viajavam mais perto de Deus do que de nós, filhos dos homens. Os seus corpos de peixes metálicos, entrando e saindo de entre as nuvens carregadas de chuva, extinguiam-se no limite extremo do olhar, como um ponto final na última página de um livro. Por sua vez, os navios não iam além de miniaturas recortadas na cartolina branca do mar que a luz do Sol fixamente iluminava sobre a linha do horizonte, imóveis, sem rumo à vista – e perdidos (acreditava eu) nos imponderáveis e líquidos caminhos das suas viagens à volta do mundo. De sorte que (como esquecê-lo?) o grande dia da minha infância aconteceu quando pude enfim descer ao fundo da falésia e ir conhecer o mar de perto. Primeiro, fiquei ali de pé, extasiado perante aquela imensa planície de água que se erguia e enrolava ao largo; que depois movia o carro das suas sete ondas-rodas e vinha por fim desabar a meus pés, por entre o calhau rolado da costa vulcânica. Sentei-me na sua frente, chamei- o baixinho, uma, duas, três vezes, mar, mar, mar, e logo ele, cão ingénuo e faminto, me veio comer às mãos. Além de plano, cheirava mais a partida do que a chegada e lavava os meus olhos extasiados com o sal de palavras que me eram mais ou menos desconhecidas: adeus, saudade, despedida, regresso, Lisboa, Brasil, Venezuela, Canadá, América, América, América... Bastava puxar os fios do mar (ele possuía-os à superfície da água, boiando ao sabor das correntes e das ondas) e desejar um navio, uma cidade, um país ideal, um simples lugar de achamento num dos antigos continentes que nos haviam largado a meio do Atlântico, entre a Europa e a América. Puxando os fios do mar, podia acontecer que surgisse a tal ilha emersa no meio de uma utopia, ou um deus montado no seu carro de nuvens douradas à luz sangrenta do crepúsculo, um cavalo a galope sobre a espuma de um perfeito sonho de largada, ou outra qualquer personificação do desejo de viajar ao encontro do mundo. Também não se sabia, nesse tempo, o que era um vulcão – de onde vinha, de que funestos poderes ele se armava para nos fustigar. As desgraças maiores de então chegavam à frente dos devastadores ciclones, ou vinham com as chuvas de noventa e nove dias consecutivos, com os sismos que abriam fendas nas empenas das casas e no chão dos caminhos, ou no rol de umas esquisitas doenças, ditas estrangeiras, cujos nomes não cabiam na língua que então falávamos. Esses males, porém, existiam para que os esconjurasse o poder divino dos grandes remédios. Às vezes, íamos de procissão, Rua Direita acima e abaixo, com a Salvé-Rainha nos suspiros e nas vozes da alma, rezando, pedindo misericórdia e perdão à Padroeira, experimentando a sinceridade do arrependimento. E logo ali cessavam os sismos e os temporais, e amainavam as vagas e os ventos americanos, tudo isso por obra e graça da Nossa Senhora do Rosário. Por conseguinte, voltava a ser permitido pecar por pensamentos, obras e omissões, e ir ao confessor na semana da Páscoa, ajoelhar humildemente a seus pés, fazer o acto de contrição com ar compungido e contar com a absolvição do nosso confessor a troco de umas penitências leves, quase irrisórias. E assim era a felicidade. Um dia, chegou a notícia do vulcão dos Capelinhos, na longínqua ilha do Faial. Abismados, perguntámo-nos que estranha coisa seria essa de saírem jactos de fogo e lava cor de púrpura das profundezas do mar e do ventre da terra, cuja calda deslizava montanha abaixo, submergindo casas e ruas, matando os campos, as pessoas, os animais, sem que a nada e a ninguém valesse o Senhor Deus Todo Poderoso das catequistas, das avós religiosas e frias, dos sermões irados na missa de domingo pela voz do padre Correia, da verdade absoluta da Fé em todas as evidências da nossa idade. Não houve quem nos soubesse ou quisesse responder. Tornou-se-nos claro que existem lugares, tempos e pessoas junto dos quais e de quem nada adianta formular perguntas. Numa ilha dos Açores, um vulcão pode abrir uma porta de saída da terra para o mar, e abrir uma outra de regresso à origem do mundo e da vida. Foi isso que naquele tempo nos aconteceu. Como tínhamos nós, exilados, esquecidos entre três continentes (a Europa, a África e a América), ido nascer aos Açores? Por que motivo falávamos uma língua que datava do tempo das naus de África, da Índia, do Brasil e da América que amiúde aportavam à aguada das ilhas, ou a socorrer-se contra a investida do corso, da pirataria magrebina, das furiosas tormentas, dos naufrágios de Sepúlveda, das histórias trágico-marítimas coligidas pelo frade Bernardo Gomes de Brito ou escritas por um insigne e estupendo mentiroso, num tempo em que a ficção ainda não existia entre nós – Fernão Mendes Pinto, o autor de Peregrinação? De novo, pouco ou nada adiantava fazer perguntas. Os bichos da terra não podem esperar respostas sensatas à impostura dos seus próprios verbos interrogativos. Recorrem à imaginação explicativa do ser, põem de parte a chamada lógica natural, só crêem no bom propósito do que mais e melhor lhes convém. Existem teorias para tudo neste mundo. Por exemplo, acerca da largada dos primeiros tios solteiros para o Brasil e a Venezuela, à procura das terras do fogo, das minas, da riqueza fácil e impetuosa. Ou acerca dos outros tios que iniciaram a demanda dos distantes países do frio, onde então a neve se chamava «sinó», os comboios «treines» e a cerveja «bia». Chegavam a lugares e nomes como Québec, Toronto, Kitimat, Boston, New Bedford ou Fall River, doentes, exaustos de tanta guerra com a água salgada, de tanto enjoo do cheiro a resina e a óleo quente dos barcos, tanta tormenta de mar levantado pelos ventos. Mas depois mandavam cartas com um dólar dentro, dobrado no meio de papelinhos cor de tabaco, para não serem detectados à luz pelos olhos ávidos dos carteiros. Eram cartas com lágrimas e erros de ortografia, que nos davam a saber que o mundo, ao contrário do que nos tinham ensinado na escola, não era nada redondo, nem oval, nem curvo sequer, e sim plano, horizontal, contínuo, parado a céu aberto, sem princípio nem fim. À medida que sobre elas se caminhava, as águas abriam-se à passagem dos viajantes, como outrora ocorrera ao profeta Moisés no Mar Vermelho; o céu movia-se por cima das suas cabeças e o horizonte deslocava-se para diante, indo sempre à frente dos passos perdidos desses aventureiros do mar. Ninguém inventara, ainda, uma forma de regresso a casa. Sair da ilha significava ir a direito: passar a cancela do quintal, fechar o caminho atrás das costas e singrar à tona da água, como singram as garrafas lançadas na corrente, levando lá dentro uma mensagem de amor ou um pedido de socorro, até que de novo aparecesse terra à vista. Não vos pareça excessiva nem absurda a minha hipótese – mas esse não foi o movimento de partida dos Açores para o mundo de fora; tratou- se apenas de um reencontro com a morada universal de todos os viajantes que já não recordam um lugar de origem, nem sabem onde começa o seu ponto de chegada à outra margem do Atlântico. Como explicá-lo, aliás? Íamos de regresso aos continentes de onde havíamos sido expulsos antes de termos nascido; de regresso a tudo e a nada, de novo nas voltas do mar e do tempo, subindo de um século para o século seguinte, em ascensão para o alto e também para dentro de nós. Regressávamos a Coimbra e a Lisboa, onde tínhamos deixado os livros de estudo, a conspiração política e o amor das mulheres; íamos de volta à Europa e das suas velhas catedrais góticas, para nelas conhecer a vontade de Deus a nosso respeito; às Áfricas, como herdeiros dos que morreram às mãos da terra; à América única e numerosa como a mulher amada do poeta Ruy Belo; aos sonhos de pai e mãe, à ideia de que devia haver em nós uma ânsia de humanidade igual ao sangue da grande família universal. Mas, repito, como explicar os Açores enquanto lugar de partida para o seio do mundo, se afinal, ainda agora e sempre, nos limitamos a ir longe buscá-lo e nada mais queremos do que tomar o mundo nas mãos, sustentá-lo, tomar-lhe o peso, o mecanismo, a razão – e envolvê-lo no nosso sonho de regresso à casa do ser e da Ilha?
 
2. Não se trata de mero exercício da imaginação. Nem de retórica literária. O caso é que eu vivi os meus 500 anos do Nordeste. Nos seus hábitos e costumes herdados dos antepassados. Na língua portuguesa do século XVI que se falava na minha infância. Uma língua trazida do mar pelos povoadores da Ilha e do Nordeste. Vivi-os na etnografia e no uso prático dos instrumentos de trabalho: o sacho, a enxó, o arado árabe, a grade de aplanar a terra lavrada, o rodado, as sapatas, as ferragens, os fueiros e a sebe do carro de bois. Esses anos, vivi-os entre uma pobre gente implantada ao cimo das falésias nordestinas, tendo ali erguido casas, ruas e igrejas como fortalezas contra corsários, piratas e outros bichos da terra que porventura aportassem à foz das ribeiras, para ali procederem à aguada de naus e navios que iam ou voltavam das terras do Oriente. Conheci as últimas casas de palha da Achadinha. E muitas outras (quase todas) com chão de terra batida. A pedra das paredes à mostra. As arribanas com as suas reses presas à manjedoura. Os sótãos escuros que tanto me assustavam. Os cafuões e as tulhas cheias de milho e feijão. Andei, dez anos, com os pés descalços, como andavam os homens e as outras crianças. Sofri as minhas topadas nas pedras soltas e nos caminhos de cascalho: as unhas dos pés sangravam, destroçadas e dolorosas, e depois curavam-se com redes de «paranhos», teias de aranha (nunca soube como nem porquê). Subi vezes sem conta aos baldios do Mato do Povo, bem no alto da ilha, que o senhor Salazar mandou, mais tarde, esmoitar e pôr de renda a quem até então (no início do Verão) ali largava as suas vacas, cabras e ovelhas, sobre chãs, bardos e outeiros. Regressavam de lá (no fim do Outono) gordas, descabeladas e sobretudo prenhas. Conheci os férreos trens de cozinha. As trempes e peneiras. Os talhões de barro. Os alguidares de Santa Maria. E a engorda e a matança do porco. E a venda do peixe (chicharro e sardinha) ao cento para a salgadeira, tal como os torresmos e a carne de caçoila. Eu muita sopa de fervedouro comi. E inhame frito ou cozido, que até dava fastio. E muita fatia de pão de milho barrada com banha de porco, com outro tanto de feijão preto assado em forno de lenha. E caldos de carne de porco mal chamuscado, cujos pêlos se viam à transparência do couro cozido e da gordura do toucinho. Meu Deus, como éramos pobres, famintos, esquecidos e solitários; e como nos acusava o padre Correia, nas suas homilias dos domingos, de termos pecado tanto; e como, por vezes, parecíamos avaros e mesquinhos para com os nossos vizinhos, maus nas contas e nas heranças e obscuros no quotidiano. Houve sempre, ao longo destes históricos anos, dois movimentos opostos nos Açores: poucos vinham de fora para ali ficarem; muitos outros, que tinham filhos, sonhos e outras paisagens no olhar, iam-se para sempre e nem olhavam para trás. Emigravam dia após dia, saindo de manhã bem cedo, em demanda de países com nomes tão estranhos para mim que até pareciam inexistentes: Brasil, Venezuela, Argentina, Canadá, Estados Unidos – num movimento de partida que ameaçava despovoar os Açores. Depois chegavam cartas que falavam do «sinó», dos carros de fogo chamados «comboios», de uma língua estrangeira que só se falava lá longe, nas terras planas desse fim do mundo. As cartas cheiravam à América, traziam dentro notas de uma «dola», com muita dor de alma, saudade de tudo e de todos, alguns erros de ortografia. Eram, pois, o tempo e a história a passar por nós. Sentia-os em fuga dos meus sentidos. Um dia, também eu me enamorei do destino e da viagem. No espaço de cinco dias e quatro noites, levaram-me da mais rural freguesia do Nordeste para a maior cidade portuguesa – Lisboa, aquela a que vim a chamar, anos depois, a «cidade dos domingos». Onde a minha memória açoriana se tornou também nítida como um girassol. Confesso o orgulho de ter escrito livros com verdades que mentem e mentiras que dizem a verdade acerca destes 500 anos do meu Nordeste. Sou um homem de esquerda (fui-o desde menino, na Achadinha e no continente, sei muito bem aquilo de que falo), e considero-me um escritor que pretendeu olhar a sua «décima ilha» à luz de uma solidão universal, da condição humana, da existência única do Homem em toda a parte do mundo. Com essa escrita de protesto, sonhei outra realidade, uma utopia cultural e democrática para a terra que amei e amo à minha maneira, e como ninguém. Porque aconteceu o milagre da justiça e do progresso em volta das palavras que escrevi sobre a gente e a paisagem. O Nordeste, que já não é a décima ilha dos Açores, deixou de ser também o icebergue verdejante e florido, creio que excessivamente rural, ainda postado no limite extremo de São Miguel. Tornou-se num lugar igual a qualquer outro em todo o planeta. A pobreza de hoje já não é uma ferida no olhar, como outrora aconteceu. Rasgaram-se caminhos por cima das antigas veredas onde se cruzavam, de manhã e à vez da tarde, duas camionetas azuis entre Ponta Delgada e o Nordeste, nos dois sentidos. Agora, há o tempo veloz e a estrada segura entre a cidade e a vila. E há a paisagem toda una na ilha a que pertencemos e nos pertence a nós . Volto à minha terra da ilha sempre que posso: as novas cidades deixaram de ser os sítios longínquos e impossíveis do meu tempo, do meu mundo de criança. A liberdade de agora chama-se palavra, progresso, democracia, respeito pela diferença e pela opinião. Falta, porém, ouvir a voz dos que nunca a tiveram, acerca da ordem do mundo. Mais do que nunca, as paisagens e as pessoas são livres e mais belas do que antes; e limpas e desanuviadas sobre a linha do horizonte que está para além do mar branco, o mar eterno dos Açores e do meu coração.
  
3. Quinhentos anos de ilha é muito tempo. São milhões de vidas passadas, dezenas de gerações de homens e mulheres, histórias inúmeras que ficaram por contar. Só é possível imaginar uma pequena parte dessas memórias, individuais e familiares, tão carregadas de sonhos, alegrias, aventuras e sofrimentos à distância. Nunca seremos capazes de as reviver e reconstituir na pessoa e na circunstância de quem na realidade fez do Nordeste a sua morada ou o seu ponto de partida para o mundo. Não pareceria normal, a um nordestense como eu, ter desta terra uma visão apenas exterior, fora do sentimento e das vivências que aqui me aconteceram na infância e na juventude. Se me limitasse a esse olhar distante do Nordeste de ontem e de hoje, não teria sido um escritor, mas sim um notário ou um escrivão de usos e costumes históricos e familiares; ou um porta-voz das ciências humanas, não um criador de palavras e histórias. Deixem que vos diga: a Literatura tem mais poder visual e de observação ao penetrar na realidade quotidiana dos homens, do que toda a demais linguagem antropológica. Escrever ficção exige formas de saber e conhecimento que estão para além de tudo o que possa ser ensinado; requer alma, sentimentos, experiência de vida – e sobretudo a capacidade de transformar o real concreto no imaginário de uma linguagem que seja, ao mesmo tempo, de um lugar e de todos os lugares da terra, de um tempo determinado e de todos os tempos humanos. Todos nós temos direito, ainda que sendo apenas «gente insular», a uma dimensão de universalidade entre outros povos cuja vida decorra no meio ou nos confins do mar. A Literatura, tanto na narrativa como na poesia, ocupa-se da voz, das carências, dos direitos, da mundialização da condição do Homem como género dos homens. Essa condição não é diferente, não muda de conceito só por se referir especificamente a pessoas dos Açores, da China ou da Dinamarca. Pelo contrário, ela explica e aprofunda o estudo dos modos materiais da vida, dos hábitos e costumes de cada povo e das questões identitárias. Ao propor-me escrever livros de ficção partindo da vida social dos Açores para a do país continental, e desta para o mundo em que vivo, não tive senão duas opções a tomar. Ou bem que me refugiava no chamado «regionalismo literário», usando o português vernáculo das ilhas e cingindo-me ao quotidiano local e às formas de ser e pensar da nossa gente – ou então desprezava a realidade humana dos Açorianos e submetia-me à norma literária do centro e do nosso modo cultural, limitando-me, assim, a ser um escritor de Lisboa, para quem tudo o mais era paisagem. É sabido que a ideia de portugalidade reside muito mais na diversidade regional que nos caracteriza do que numa qualquer norma nacional que pretenda confundir-se com uma definição de identidade. Também é certo que o cerne da geografia insular e a expressão da insularidade, só por si, não determinam a existência de um imaginário distinto ou até oposto ao do continente. Disse, e muito bem, o grande açoriano Vitorino Nemésio que a geografia vale tanto como a história, no nosso caso. Falava ele de «açorianidade», cujo termo inventou. Eu falo de outra evidência, e muito mais vasta: em matéria de literatura autêntica, uma ilha pode valer por um continente inteiro, da mesma forma que um continente pode ser apenas uma ilha literária, ainda que grande e complexa como a Austrália. Quanto mais certeira for a identificação de uma realidade local, maiores possibilidades tem o escritor de a ver projectada sobre outras paragens do mundo, bem mais amplas do que o meio a que se refere. O debate entre o regional e o universal está sempre na ordem do dia, entre nós, como aliás não poderia deixar de ser. Miguel Torga definiu o universal como o local sem paredes. Vem esta definição mais ao meu encontro do que a de Nemésio. Porque é esse, para mim, o secreto desafio e o único milagre da criação literária e artística. Nessa medida, o meu Nordeste continua a ser para mim um lugar ao mesmo tempo real e simbólico, com importância para mim igual à do mundo inteiro. Considero-o a minha aldeia, a minha cidade literária, o meu mundo que não é deste reino, o meu reino que é deste mundo. Pode ser proposto à consciência do nosso tempo. Basta que a escrita dê expressão aos sonhos, anseios, trabalhos e dias da existência de quem aqui vive ou viveu e se foi embora. No meu caso, havia uma dificuldade prática a ultrapassar. Sabia que, para alguns poderes culturais do nosso país, só contava para o cânone da Literatura Portuguesa o que se escrevia nas cidades ou sobre elas; tudo o mais eram «regionalismos». Nunca me conformei com tal conceito, que de certo modo diminuía, se não anulasse mesmo, o imaginário insular face ao domínio absoluto de Lisboa sobre o culto do país. Não aceitando eu essa regionalização literária, nem um tratamento à margem da sua cultura, tentei impor a Ilha como tema e como voz intrínseca da Literatura Portuguesa. O propósito da dominação urbana sobre a ruralidade é típico do centralismo português (incluindo o cultural e o literário). Mas nem o Portugal histórico se resume a Lisboa, nem a capital possui qualquer monopólio expressivo acerca das nossas regiões. Quis fazer do Nordeste e das ilhas o princípio de um país, no tempo que nele me cabe viver. Nos meus livros mais «açorianos», a Achadinha da infância permanece ela mesma, isto é, no concreto da sua única realidade, como uma qualquer terra portuguesa – com a diferença de tentar projectar para mais longe de si mesma e de simbolizar, na mente do leitor, aquilo que ele possa ter vivido ou sonhado na sua aldeia da infância. Chamei- -lhe Rozário para que tivesse um nome masculino e maior conotação com Portugal. As histórias que sobre a ilha escrevi, muitas delas herdadas da voz do meu pai e da minha avó paterna, ou fruto da memória e do trabalho da minha imaginação, pretendem convertê-la no tal lugar de todo o mundo que, umas vezes, tem foros e carácter de cidade sem nome, outras de um país que importava referir e compreender na sua plenitude. Além de impor a ilha como tema, mote e território literário, em pé de igualdade com as geografias, imaginários e continentais, pretendi lançar um olhar açoriano sobre um país cheio de passado, que era também como um rio a desaguar no tempo presente. O meu Nordeste viaja comigo pelas sete partidas portuguesas: é um mito e um eterno retorno. Possivelmente, menti-o e exagerei-o nas suas reais dimensões. A insularidade do ficcionista atravessa o oceano de cá para lá e regressa à origem perfeita do homem e do escritor. Exagerei, sem dúvida, quando a queda de um avião no Pico da Vara, a 27 de Outubro de 1949 (tinha eu oito meses de idade, nessa história narrada pelo meu pai), se transformou, num dos meus livros, em motim e recontro entre vivos e mortos que se roubam e se maltratam; menti ao substituir o desembarque das tropas liberais no sítio do Pesqueiro, na Achadinha (a 1 de Agosto de 1831), pela chegada de uns marines loiros, os Americanos, que vieram ao Nordeste para impedir que ali se fizesse um golpe de Estado (querendo com isso simbolizar o fim desejado do Salazarismo e a libertação democrática do 25 de Abril); exagerei, ainda, quando transformei um pobre curador de vacas e outros animais, que então vivia na freguesia da Salga, em médico milagreiro e afamado das paragens nordestinas; e, sem dúvida, menti ao espalhar pela ilha fora a figura bíblica de João-Lázaro, primeiro como mendigo (inspirando-me num pobre tolo chamado José Andrade que percorria a Rua Direita a pedir esmola, não aceitando nunca dinheiro branco, que para ele não tinha valor, mas só moedas pretas, serrilhas e tostões); depois, fiz com que se transformasse num ser divino e prodigioso, com o seu quê de profético; e, finalmente, num revolucionário à imagem e semelhança de Cristo ou do guerrilheiro político-libertário «Che» Guevara – sendo então preso e levado num dos submarinos americanos, após o embarcarem no tal Pesqueiro da freguesia inventada do Rozário. Não sou um mentiroso, juro-o; sou apenas um ficcionista, um escritor da imaginação. E um pobre homem da Achadinha, como diria Eça de Queirós da sua Póvoa de Varzim. Contudo, não creio que tenha exagerado nem mentido no resto: nas histórias furiosas em que denunciei o isolamento e o abandono do Nordeste à sua sorte, durante os anos e séculos da sua existência; na denúncia das agruras e sofrimentos da minha geração de pés descalços, sempre mal alimentada, sem amor, sem festas de aniversário, sem prendas de Natal; nas narrativas sobre as famílias em geral numerosas, como a minha, que entre si multiplicavam a pobreza, enquanto os ricos dividiam as suas riquezas casando-se por conveniência e em negócios de família. Os exemplos seriam infinitos, paralelamente à feroz realidade do desamparo, do mau viver geral das pessoas, dos dramas sem nome da emigração, da injustiça social, do poder dos pequenos e médios tiranos: os políticos de então, alguns dos clérigos de outrora, uns quantos professores cruéis que nos vergastavam pelos erros no ditado ou nas contas com decimais, os ricos mais egoístas, os ladrões do povo. Livros furiosos, dizia, porque denunciaram os erros e os vícios, os pecados históricos da colonização e da guerra colonial em África, tal como acusam agora a mentira europeia da União e do euro, a nova pobreza lusitana, o ódio cego aos velhos reformados e o desprezo pelos jovens portugueses que, ao que parece, perderam o futuro no seu país. Se tivesse de pedir perdão a alguém por tais exageros, só aceitaria fazê-los perante os homens e as mulheres nordestenses destes 500 anos que povoam e explicam o universo da minha ficção. Que me sirva de desculpa, para tal ousadia, ter querido elevar ao alto, à ordem do planeta dos homens e dos povos, o coração dos Açores e dos Açorianos. Sendo embora suspeito estar eu aqui a dizê-lo, a minha alegria e os meus troféus foram e são os meus queridos leitores; aqueles que disseram ou escreveram que o Nordeste dos meus livros existiu ou existe de norte a sul de Portugal, como dentro e fora das ilhas deste mundo, noutros países europeus, nos cinco continentes da Terra e no tempo que nos é dado viver. Se nada disto for verdade, mas apenas uma outra das minhas ficções, peço, com toda a humildade do meu coração, aos nordestenses do presente e do passado, e aos demais insulares dos tão queridos e amados Açores, licença para continuar a sonhar. O meu sonho pertence-me, aqui ou noutras paragens. Façamos de conta que um futuro começa agora nesse sonho e nunca mais acabará. O futuro nordestino está dentro de si mesmo: na alma e nas casas dos que amam a vida, a terra, a democracia e as liberdades de Abril, a Autonomia, o municipalismo, a cultura popular e erudita, o povo, a paisagem, este mar de ida e regresso à nossa casa do ser. Carregadas de futuro, as mãos têm consciência dos direitos que lhes pertencem. «Com elas», escreveu o poeta, «tudo se faz e se desfaz». Oxalá as vossas sejam mãos exigentes e altivas para com o trabalho e a obra dos eleitos. Nunca permitais que sejam mãos solitárias, mas antes solidárias. Os nordestenses moram em terras com portas e varandas sobre o mar. Mas vivem também nos dois lados do Atlântico: nas Américas e no continente europeu dos que emigraram. Somos muitos e muitos milhares, se somarmos todas as margens a que o destino nos conduziu. Precisamos de entranhar a consciência da nossa multiplicidade. De ouvir as vozes que se nos anunciam ao longe. De fazer com que uma terra tão bela como a nossa, mas que outrora foi madrasta para tantos homens, mulheres e crianças, chame a si o progresso social e o regresso dos ausentes, a alegria do reencontro, o bem-estar dos que optaram por ficar – e o amor que a todos nós, habitando a ilha ou estando presentes nela para lá do horizonte, nos une para sempre à insularidade e ao Nordeste.”
João de Melo, in A Condição de Ilhéu, Concepção e coordenação de Roberto Carneiro, Onésimo Teotónio Almeida, Artur Teodoro de Matos , Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa,  Universidade Católica Portuguesa, Llisboa 2017, pp.146-155

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